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FUTEBOL | Democracia Corinthiana: quando o futebol desafiou a ditadura – Parte I

Primeira parte de uma nota que retoma a experiência de democracia direta dentro do time brasileiro de futebol, Corinthians, durante a última ditadura civil-militar no país.

segunda-feira 4 de julho de 2016 | Edição do dia

“No déspota senhorio da bola, os jogadores são os últimos macacos de circo. Não têm direito a dizer nenhum ‘pio’. Mas nem sempre foi assim.
Por volta de 1982, em plena ditadura militar, os jogadores do Corinthians tomaram o poder. Eles, os jogadores, decidiam tudo, se reuniam e democraticamente, por maioria, elegiam o método de trabalho, o sistemas de jogo, os horários de treinamento, a repartição do dinheiro... Votavam absolutamente tudo. Se previam os piores augúrios, mas durante esses anos o Corinthians convocou as maiores multidões nos estádios do Brasil, além de ganhar consecutivamente o campeonato paulista durante 2 anos oferecendo o mais bonito futebol de todos. A experiência da ‘Democracia Corinthiana’ foi breve, mas valeu a pena.”
Eduardo Galeano

O futebol, em muitos âmbitos, é considerado, por alguns, parafraseando Marx, como “o ópio dos povos”; outros o definem historicamente como “o pão e circo romano” e outros mais formados academicamente dirão que é “o novo sistema de controle social”, por considerarem que aliena os trabalhadores das tarefas que estão colocadas em tempos de ajustes.

Eu vejo essas frases como totalmente errôneas, por que por mais que jogue o melhor time de todos os tempos, o prato de comida não se enche sozinho. Não entender o que o futebol desperta, você gostando ou não, é não entender a paixão que esporte gera. Em termos gerais, é uma das poucas vias de divertimento que restam ao trabalhador depois de ficar enclausurado numa fábrica ou em seu posto de trabalho; as vezes é a única alegria ou tristeza que te pode dar um estranho somente ao tocar a bola ao fundo da rede. Vivemos em um sistema no qual a cultura é para poucos e onde nos vendem que poder se desenvolver como artista é mérito daqueles excepcionais hiper destacados, ou dos que nascem em berço de ouro. Nos negam um direito que os patrões têm somente por serem donos dos meios de produção: direito ao ócio.

Uma partida de futebol a cada semana (ou a cada 3 dias, se tiver sorte de sua equipe classificar-se em algum campeonato) significa dividir com os amigos, familiares ou companheiros de trabalho um momento de espairecimento. Meninos e meninas olham cuidadosamente para cada rosto e expressões com o rolar de uma bola em um gramado verde, e sonhamos, para além de poder comprar o aquecedor de água, geladeira ou a casa que você precisa, também dar-lhes a alegria que lhes dá seu time, ou assim mesmo, brincar para que não se sinta triste ou irritado com os maus jogadores, por quem seguramente o Greenpeace poderia fazer uma campanha para que não lhes cortem as pernas de pau que eles têm. Assim é em todos os bairros populares onde há terrenos baldios que bolas de pano rolam o tempo todo. Porque para uma partida não se precisa de mais de 4 pedras, as camisetas dos que vão jogar para formar dois times e um par de meias velhas para fazer a bola e nada mais.

Historicamente, o futebol serviu inclusive para que os trabalhadores pudessem organizar-se por fora da fábrica; depois do jogo é um bom momento para conversar sobre aquele supervisor chato, os ajustes, os motivos pelos quais demitiram companheiros sem justa causa e discutir como fazer frente a essas situações.

E como estão sempre prontos os grandes tentáculos capitalistas que tudo tocam para que nada fique livre do seu alcance para tudo virar lucro; dependendo do que e como convém, podem até modificar uma partida a seu gosto: assim o Boca Juniors na Copa Argentina ‘roubou’ a partida frente o Rosário Central pelas mãos de Delfino. Assim o Huracán de Ángel Cappa foi prejudicado pelo árbitro para dar a copa ao Vélez. Mas ainda que lhes incomodem, ainda que hoje em dia a maioria dos jogadores tenham se profissionalizado e alguns sejam milionários, o futebol é parte da vida do povo trabalhador.

Mas vamos a historia que ocupa hoje.

As origens da Democracia Corinthiana

Desde os fins dos anos 60 rondava um fantasma na América do Sul, o fantasma dos levantamentos operários e seus grandes gestos heroicos que se espalhavam como rasteio de pólvora, assim como todo momento de auge da luta de classes, era contagiante. Frente a isso o imperialismo yankee e as burguesias locais decidiram impor na região uma série de golpes cívico-militares em quase todos os países da América Latina. Com Kissinger a frente começa o Plano Condor, um plano de extermínio da vanguarda operária por parte dos governos. Usando os métodos utilizados pelos militares franceses na Argélia, desaparecem, torturam e exterminam estudantes, trabalhadores, jornalistas... Desaparecem com grande parte dos que combatiam a este sistema de fome.

No Brasil de 1982 já se passavam 18 anos de ditadura, o Golpe havia sido dado antes: em abril de 64 Humberto de Alencar Castelo Branco toma o poder pela força. Em 1981 o Corinthians havia chegado quase ao fundo do poço: uma série de maus resultados o deixaram em péssimas condições futebolísticas. Como sempre na historia das equipes de futebol, maus resultados e más administrações em benefício de uns poucos deixam também grandes problemas econômicos. Em abril de 1982, por uma questão estatutária que lhe impediram de ser eleito novamente como presidente do clube, Vicente Matheus designa, como seu sucessor, Waldemar Pires. Poucos meses depois, quando Pires obtém a presidência por meio de eleições, rompe relações com Matheus e oferece o cargo de diretor de futebol corinthiano a um ex-militante e jovem sociólogo chamado Adílson Monteiro Alves que pouco sabia de futebol, assim como gerenciá-lo. Talvez exatamente por não entender de manejar o futebol e por vir formado por uma militância na universidade, trouxe ideias inovadoras e nunca antes levadas adiante no esporte (e em quase nenhum lugar). Disse na primeira reunião com os jogadores, assim que assumiu o cargo, as primeiras palavras: “o país luta pela democracia. Se conseguisse, o futebol ainda assim ficaria à margem, porque mesmo nos países democráticos o futebol é conservador. Temos que mudar isso”. Os jogadores se olharam estranhados entre si, exceto um: ali estava um magro de 1,91 cm, de pernas compridas e uns pés 41 (considerados pequenos), mas que no campo de jogo resolvia tudo com o calcanhar. Esse jogador era Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira, ou simplesmente Sócrates, em homenagem ao filósofo ateniense considerado por muitos eruditos da matéria como “o pai da ética”, como prevendo que muitos anos depois um pai colocaria nome igual a seu filho e que este daria aulas de ética com o rolar de uma bola.

Esta historia continuará na parte II em breve...

Tradução Raphael Mouro




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