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OPINIÃO | Da onde vem a escassez de vacinas?

No meio do caos sanitário no país e no mundo é necessário ir na raiz dessa pergunta.

sexta-feira 12 de março de 2021 | Edição do dia

Enquanto o Brasil entra na pior fase da pandemia, a vacinação anda a passo de cágado. Enquanto cresce a catástrofe, cresce também a raiva contra Bolsonaro e seu negacionismo, principal responsável pela situação em que nos encontramos. Se aproveitando disso, a grande mídia tenta apresentar como se as grandes farmacêuticas tivessem se proposto um enorme esforço para garantir as vacinas ao Brasil e tudo se resumisse a que Bolsonaro teria negado. Se evidentemente o negacionismo de Bolsonaro é uma das principais razões pela atual calamidade, tal explicação seria um tanto quanto simplista e não iria na raiz dos problemas.

A escassez de vacinas é um problema em quase o mundo todo. A nível mundial, apenas Israel, este enclave imperialista no Oriente Médio já possui grande percentual da população vacinada, com praticamente metade da população vacinada com a segunda dose. Atrás deste se encontram o Reino Unido (34,5% com a primeira dose), Chile (23,6% com a primeira dose), Bahrain (21% com a primeira dose), EUA (19,3% da população com a primeira dose) e Emirados Árabes Unidos (60 doses por 100 habitantes, não especifica entre primeira e segunda dose). Com exceção do Chile, todos países imperialistas ou então ou então pequenos países superprodutores de petróleo da região do golfo pérsico. Ainda temos algumas pequenas ilhas no Oceano Índico que já vacinaram mais de 50% de sua população como as Maldivas e as Seychelles, cuja população somada não chega a nem 1 milhão de habitantes.

Portanto, vemos que a escassez se constitui a regra. Nem mesmo a União Europeia consegue fugir. Nos países do bloco onde a vacinação está mais avançada, essa cifra não ultrapassa os 10% - com exceção da Sérvia, que ainda pleiteia uma vaga no mesmo. Para tentar escapar do problema, mesmo o Reino Unido tem priorizado dar a primeira dose a todos, sem reservar a segunda, de forma que apesar de terem 34,5% da população vacinada com a primeira dose, apenas 2% estão vacinadas com a segunda.

Fonte: Bloomberg Covid-19 Tracker - extraído no dia 11/3/2021

Isso não se dá à toa. Se Lenin definia a época do imperialismo como época do capital monopolista, na indústria farmacêutica é um dos ramos onde isso se mostra mais forte. Segundo o vaccine tracker do NYTimes, há apenas 11 vacinas sendo usadas ao redor do mundo, sendo produzidas por 11 empresas farmacêuticas de 6 países diferentes.

Com o sistema de patentes, essas empresas condicionam a produção e aquisição de vacinas no mundo inteiros. Aproveitando a emergência do momento, colocam em seus acordos cláusulas das mais absurdas, que as isentam da culpa em caso de efeitos colaterais e obrigam os litígios judiciais a serem resolvidos em tribunais internacionais. E para piorar, as cláusulas são todas secretas. Isso tudo mesmo tendo recebido rios de dinheiro e de investimento público – muitas das vacinas foram testadas por institutos público, como aqui no Brasil a Fiocruz e o Butantã. Apesar disso, todo o lucro se mantém privado.

Enquanto colocam cláusulas draconianas em seus acordos, as empresas farmacêuticas – apoiadas nos monopólios e nas patentes – se sentem confortáveis para descumprir todo tipo de prazos e fazer todo tipo de tramoia. Os sucessivos atrasos deixam claro o que muitos vinham anunciando: as empresas farmacêuticas firmaram acordos prometendo doses acima da sua capacidade de produção, ou seja, acordos que não tinham capacidade de cumprir desde o início.

O efeito disso já é palpável. As farmacêuticas como AstraZeneca já anunciaram a redução de sua entrega de doses na União Europeia durante o primeiro trimestre em 60%, alegando problemas em algumas fábricas. Já a Pfizer tem atrasado sistematicamente sua entrega de vacinas ao bloco europeu, alegando que estariam fazendo mudanças no processo de produção. A Johnson & Johnson, cuja vacina foi recém aprovada no bloco, agora alega que a falta de insumos dificultará a entrega no prazo. Além disso, também é escandaloso o vazamento revelado pelo Le Monde, de que estaria havendo uma pressão sob as agencias reguladoras para liberar a distribuição de vacinas da Pfizer com qualidade inferior as que foram usadas nos testes.

Ver também: Depois da Pfizer e da Moderna, a AstraZeneca reduz suas remessas. De onde vem a escassez?

No Brasil vemos isso também de forma clara. O acordo que havia sido anunciado pelo Ministério da Saúde falava em 15 milhões de doses em dezembro do ano passado e mais 15 em janeiro desse ano. As doses não chegaram sem explicação alguma, pois inclusive os próprios acordos secretos impedem que se revele isso com clareza à população. Recentemente, um grupo de especialistas denunciaram as cláusulas abusivas do contrato com a Fiocruz. Além disso, vemos diariamente as notícias sobre o atraso na entrega dos IFAs (Ingrediente Farmacêutico Ativo).

Longe de ser um problema logístico “normal”, a verdade é que o oligopólio de uma dúzia de capitalistas sobre o setor farmacêutico – apoiado no sistema de patentes - limita ao extremo a produção de vacinas global e deixa a população mundial refém desses burgueses, que lucram em cima da nossa morte. E nem mesmo a maior emergência sanitária mundial em 100 anos foi capaz de fazer os governos e as organizações de saúde como a OMS moverem um dedo para tocar nesse assunto. Não podíamos esperar coisa tão diferente, visto que os governos burgueses são os representantes diretos do capital financeiro, assim como a OMS também é representante direta da big pharma. Para comprovar seu total capachismo, Bolsonaro insiste em votar na OMC contra a suspensão de patentes proposta pela ìndia. Não que uma saída real poderia vir desse órgão do imperialismo, mas é chamativa a postura do governo tupiniquim.

Outro aspecto que o imperialismo se mostra é na competição entre as nações e na divisão do mundo entre países imperialistas e países coloniais e semi coloniais. O “nacionalismo das vacinas” é mais uma face disso. Um relatório da Oxfam em setembro mostra que os países ricos respondiam por mais de 50% das doses que já haviam sido acordadas mundialmente. Situação que deve ter se agravado, pois com o recrudescimento da pandemia em muitos lugares e com o atraso nas entregas, os países ricos trataram de separar mais doses para eles, o que vai aumentar ainda mais o atraso da entrega de doses nos países subdesenvolvidos. Atualmente, possuem acordos de doses que permitiria vacinar sua população diversas vezes. Além disso, há enormes suspeitas que os países-sede das farmacêuticas estejam “sequestrando” doses, o que abriu uma crise diplomática entre a União Europeia e o Reino Unido, sede da AstraZeneca. Mais escandaloso aconteceu nos EUA. Ontem, no mesmo dia que Biden anunciou que pretende abrir a vacinação para todos os adultos a partir de 1º de maio, o NYTimes mostrou que os EUA estão “sentando” em 30 milhões de doses da vacina AstraZeneca estocadas. A vacina ainda não foi aprovada nos EUA e, portanto, essas doses poderiam estar salvando vidas em países subdesenvolvidos que enfrentam a escassez. No entanto, em conversa recente com o presidente do México, Biden negou qualquer possibilidade de ceder vacinas.

Esse cenário mostra que a escassez de vacina, longe de ser responsabilidade simplesmente de uma má gestão, é fruto da irracionalidade do capitalismo em sua fase de decomposição, a fase imperialista. Portanto, uma solução que busque resolver esse problema pela raiz necessitaria de medidas anticapitalistas que ataquem o sistema de patentes e os grandes monopólios farmacêuticos.

Ver também: "Guerra pelas vacinas": frente à irracionalidade capitalista, anulação das patentes e vacinas para todo mundo




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