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Cultura: tradição e revolução (PARTE 2)

Afonso Machado

Cultura: tradição e revolução (PARTE 2)

Afonso Machado

A tradição dos oprimidos não é uma invenção do marxismo. O que o marxismo fornece aos construtores e disseminadores desta tradição é um método de compreensão da história e de atuação política. A crítica marxista pensa e organiza a cultura revolucionária: a tradição cultural dos oprimidos em sua pluralidade(étnica, estética, linguística etc) é a tradição cultural revolucionária. Isto não poderia consistir na imposição cultural do materialismo histórico, como se este pensamento fosse algo onipresente, uma força mítica que responderia a todos os problemas e questões humanas. O conhecimento ou as heranças culturais não poderiam ajoelhar-se diante de Marx e aguardar por sua benção. Um poema por exemplo não necessita de autorização religiosa, filosófica e política para existir enquanto tal. Porém, o método criado por Marx explica com assombrosa precisão a trajetória das civilizações nas suas estruturas fundamentais, no desenrolar dos acontecimentos e nas íntimas relações entre economia, política e cultura. Portanto o marxismo desvenda a significação histórica de qualquer manifestação cultural, inclusive de um poema.

A cultura, esta palavra que tanto enche a boca dos sabichões e deixa os olhos dos diletantes com faíscas, foi erguida ao longo da história das civilizações a partir do suor e do sangue das classes laboriosas. Para desafinar a orquestra da ideologia dominante não se pode apenas democratizar bens culturais, como pregam os bons samaritanos, mas sim problematizar (como apontou Benjamin) o próprio conceito de cultura e a sua transmissão ao longo da história. Já faz um bom tempo que o materialismo histórico demonstrou que na ideia de cultura existe um oculto processo de violência, de sofrimento e exploração das massas. Do Partenon ao Coliseu, das pirâmides do Egito antigo ás catedrais góticas, dos teatros parisienses do século XIX aos arranha céus da cidade São Paulo, as mãos que os ergueram permanecem anônimas. Notáveis realizações arquitetônicas, sem dúvida, mas que não se separam das injustiças históricas que moram na divisão social do trabalho. Deveria então o proletariado virar as costas para a produção cultural legada pelas civilizações? De jeito nenhum! A posição histórica do proletariado, diferentemente das classes oprimidas do passado, exige dele a apropriação da cultura historicamente acumulada; trata-se de um pressuposto histórico básico para a criação cultural na futura sociedade comunista, isto é, sem classes e sem Estado. É dever da militância cultural atuar sistematicamente para que os trabalhadores assimilem criticamente as formas culturais do passado: a preservação das realizações culturais coexiste com a crítica materialista que desmistifica os aparelhos ideológicos das classes dominantes do passado e do presente.

Porém, se a apropriação das heranças culturais é uma tarefa da classe trabalhadora, somente num governo operário esta aspiração fundamental poderá realizar-se plenamente: apenas num Estado controlado pelos trabalhadores podem ser geradas as condições materiais e educativas para o proletariado efetivar a sua acumulação cultural. Entretanto, temos muito o que fazer antes que os trabalhadores cheguem ao poder. A exemplo do que foi dito por este autor em outros escritos, devemos considerar 2 etapas no processo de acumulação cultural primitiva do proletariado: enquanto que a segunda etapa pressupõe um Estado socialista(trata-se portanto de um contexto político que permite ao trabalhador dedicar-se aos estudos e aprofundar-se em assuntos culturais), a primeira etapa inicia-se ainda na sociedade capitalista e consiste essencialmente na organização e defesa de uma tradição cultural revolucionária: esta tradição exprime a memória dos oprimidos em sua diversidade cultural e fornece aos trabalhadores politicamente analfabetos as imagens da história da luta de classes. É papel da militância de esquerda disseminar esta tradição revolucionária hoje. Não se trata de um esquema abstrato mas de uma resolução programática que ao combater a fragmentação da consciência da classe trabalhadora atual, responde também ao fato do conceito de cultura atravessar no mundo contemporâneo uma transformação radical.

Não se pode negar: os produtos culturais, inclusive aqueles que integram listas canônicas de obras de arte e realizações filosóficas e científicas, são expressões que compõem um legítimo processo de formação humana, intelectual. Mas infelizmente os graves problemas econômicos, políticos e sociais do nosso tempo impedem longos suspiros diante da cultura. A isso soma-se o fato das novas forças produtivas digitais proporcionarem um intenso fluxo de símbolos e manifestações que afetam os eixos tradicionais de compreensão e transmissão da cultura/conhecimento. A própria noção de erudição, a concepção clássica de cultura, está estilhaçada desde o século passado. Desnecessário dizer que a palavra “ clássico “ foi dilatada e pode ser aplicada com toda razão até mesmo nos mais variados produtos da indústria cultural. Seria não apenas pedante mas completamente estéril e equivocado tentar demonstrar a um jovem trabalhador que a pintura renascentista seria “ melhor “ ou “ superior “ ás adaptações cinematográficas de histórias em quadrinhos. A luta pela transformação da sociedade não se separa da transformação da ideia de cultura, cujo caráter plural se manifesta hoje numa vertiginosa quantidade de imagens e fragmentos no nosso cotidiano. O militante marxista precisa lidar com esta realidade: em meio aos cacarecos, perante os escombros, o marxista trabalha com os materiais históricos que integram uma outra tradição, representante das lutas dos oprimidos. Cabe em nosso condicionamento presente nos perguntarmos: quais imagens que habitam os abismos do tempo podem exercer uma comunicação que atua politicamente sobre a consciência dos trabalhadores da atualidade? Aqui a produção do conhecimento histórico torna-se um aspecto da maior importância na constituição da tradição dos oprimidos.

A memória da luta de classes abrange não apenas a Era capitalista mas também o conjunto da história das civilizações. Quem escreve história ou a representa dentro de outra linguagem(como em um documentário, por exemplo) necessita de um método capaz de nos fazer olhar os acontecimentos e as diferentes realidades para além da sua aparência. Ao nos perguntarmos quem escreve a história e segundo a versão de quem, não estamos na superfície dos discursos filosóficos/literários mas diante do pressuposto material na organização das sociedades: para o marxismo os conceitos de Trabalho e Classe dão nome ao historiador e definem o sentido das suas narrativas. Em outras palavras, a escrita da história está condicionada pela posição social e ideológica de quem a produz. Como já apontaram importantes autores que integram o melhor da historiografia marxista, devemos questionar se a habilidade da escrita contemplou e contempla a história dos camponeses, dos servos, dos escravos, dos artesãos, dos operários e dos atuais “ trabalhadores digitais “. São as imagens destes personagens históricos que precisamos arrancar do fundo dos tempos para compor nossas narrativas. Isto não é um olhar pessoal sobre o passado e o presente: é um olhar político.

Para o marxismo a escrita da história não consiste na facilidade da propaganda. Engana-se quem pensa que a narrativa histórica marxista seja meramente panfletária. Trotski corrige este equívoco quando afirma que o leitor não necessita de uma obra histórica que seja a apologia de uma posição política. O que o leitor necessita é de uma profunda fundamentação do processo histórico. Quer dizer, o historiador trabalha com a comprovação daquilo que ele narra( ele fundamenta suas afirmações). Isto não contradiz a necessária tomada de posição política na narrativa histórica: a chamada imparcialidade do historiador é conversa fiada na medida em que o trabalho com documentos históricos é modelar, portanto ideológico na própria maneira como a montagem do texto é realizada. É na exposição objetiva da história que o marxista expressa suas ideias políticas. Fundamental é explicar na construção da narrativa porque os acontecimentos se desenrolaram de determinada maneira e não de outra. Decisivo é tomar partido na narrativa: seja do hilota ou do espartano na Grécia antiga, seja do trabalhador de aplicativos ou das multinacionais no Brasil de hoje. Todo enredo histórico possui lado.

Os relatos ou os registros que expressam a memória dos oprimidos não se restringem obviamente ao texto escrito: as formas de expressão são múltiplas. Não cabe ao marxismo simplesmente carimbar esta memória. Mais uma vez: a missão do materialista histórico no âmbito por assim dizer “ cultural “ é orientar, selecionar e organizar as fontes que expressam na sua pluralidade estética as contradições do processo histórico e a resistência dos oprimidos. O materialismo histórico fornece instrumentos de análise que auxiliam na elaboração das formas de representação das lutas sociais. Deve-se assim saber colher o que está perdido ou soterrado no tempo. Veremos na terceira e última parte deste artigo, como o conceito de rememoração torna-se decisivo para o proletário desmemoriado compreender que ele se insere na saga da luta de classes.


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