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CRÔNICA | Crônica de uma estudante de escola pública na USP

terça-feira 19 de maio de 2015 | 00:01

Em 2012, fui a única aluna do ensino médio da segunda melhor escola pública da minha cidade a conseguir entrar em uma faculdade pública. Alguns amigos tentaram, mas após anos de ensino de má qualidade e sem dinheiro pro cursinho, não conseguiram. Mas nós que tentamos éramos apenas uma minoria. Ali, ninguém era estimulado a ter essa ambição, exceto por duas professoras às quais sou grata até hoje. Todo mundo "sabia" que era preciso ter feito ao menos o ensino médio numa escola particular, ou um bom cursinho, pois a prova era dificílima. Nem tinha como pensar diferente.

Quando um ou outro professor levava exercícios de edições anteriores da Fuvest, era quase certo: ninguém sabia fazer. Na excursão da Semana de Profissões da Unicamp, éramos a única turma de escola pública - a iniciativa partira dessas poucas professoras e dos próprios alunos, mas o número foi restrito pela diretora, que queria que apenas os alunos com "média 9 ou 10" fossem, pois o resto "não tinha o que fazer lá". Eu estava lá. Vi passar muitos Leonardo da Vinci, Objetivo, Jean Piaget, São Vicente - ninguém mais com a camiseta branca rala, gasta, sem dinheiro pros lanches caros e kits como nós.

Enquanto andávamos, esses alunos troçavam conosco, lembro como se fosse ontem disso. Diziam que éramos bandidos, gritavam "esconde a carteira!", perguntavam se éramos uma gangue e se entendíamos o que diziam. A mensagem era clara: ali não era nosso lugar. E se éramos considerados "os melhores" da segunda melhor escola pública da cidade, então... também não era o lugar de mais ninguém dos colégios gratuitos.

Eu nunca fui boa em me conformar com as coisas. Então estudei dia e noite, e entrei na USP, em Letras, meu sonho. Por sorte, era o curso com nota de corte mais baixa da universidade. Com minha nota, não conseguiria entrar em quase nenhum outro dos muitos cursos oferecidos. Minha nota era baixa porque, apesar de tanto estudo, eu não conseguira aprender sozinha matemática, física, química (afinal, não eram essas as minhas habilidades. Por que é preciso saber química orgânica, aliás, para entrar em Letras?),, muitas matérias que na minha escola nem chegavam ao conhecimento dos alunos, por "n" motivos - falta de professor, ou falta de qualificação do professor, falta de motivação dele frente à sala cheia e barulhenta, falta de material... falta de consideração do governo do Estado).

Chutei no mínimo 80% das questões de exatas, enquanto quase gabaritei a primeira fase de humanas, e digo a vocês que se muitos desses chutes não tivessem tido o milagre de entrar no gol, a esta hora EU seria bola fora - não importavam nem meu sonho, nem minha força de vontade.
Hoje, dentro de uma faculdade que - agora eu sei! - é sim o meu lugar, no curso que me era destinado, aprendendo coisas que eu nem sabia que existiam e descobrindo que nasci pra me dedicar a elas, sei que muita gente ainda acredita que eu não deveria estar ali.

Nem eu, nem meus amigos lá da escola que acabaram desistindo - é melhor que a gente desista mesmo, que a gente se contente com outras instituições de ensino que eles consideram piores, porque nós, amigos, nós somos muito ignorantes, iríamos acabar defasando a sala toda. Na mentalidade dessas pessoas, nossa sociedade funciona como a da Índia: se você nasceu dahlit, não pode querer se misturar com aqueles provenientes de classes superiores, pois infectaria todo o lugar.

Claro que eles não dizem isso apontando pra mim, porque eles não sabem que eu sou "dahlit". E não sabem disso porque, bem, eu nunca atrasei turma nenhuma. Eu sempre tive consciência e capacidade pra correr atrás quando eu não entendi uma matéria, a escola pública não tira essas coisas de ninguém. Eu consegui aprender tudo que os professores passaram até agora, tanto quanto um Jean Piaget. Na escola, eu não tive Camões, e o professor X assumiu que todo mundo já sabia. Eu não decorei as características das três fases do Drummond, como o professor Y disse que era impossível não saber. Eu não sabia que soneto era um poema em tal modelo e tal metrificação e que surgiu em tal movimento - mas eu sempre li Vinícius. Eu sempre senti Vinícius. E quando eu precisei falar de Vinicius, eu tirei 9.

Essas pessoas não sabem que eu sou da escola pública (SOU, nunca deixarei de ser) porque eu tenho boas notas, faço perguntas nas aulas, tô concorrendo a uma iniciação científica, e não é isso que elas esperam de um aluno "mal formado".

"Ah não, mas você é exceção, você sim se esforçou, não precisou de ajuda nenhuma" já ouvi. Meus amigos também se esforçaram, muito, tanto ou mais que eu. Eu só dei sorte. Era meu caminho. Eu tive uma grande ajuda: meus pais, que possibilitaram que eu estudasse em vez de ter que trabalhar, que me compraram livros na infância pra que eu tomasse gosto pela leitura. Quantos na minha escola (e nem vamos falar no Brasil todo) tiveram isso? E a minha amiga igualmente esforçada, que não teve e acabou por desistir pensando que nunca conseguiria? Será que, se meus chutes não tivessem dado em gol, eu também teria desistido?

A USP é uma universidade pública (pública = de todo o povo) na qual, ironicamente, espera-se que ingresse apenas a elite. Se não fosse pelo movimento estudantil, não teríamos transporte gratuito, bandejão, (poucas) moradias, benefícios sem os quais muitos teriam que abandonar o curso. Já não temos mais vagas na creche. Já se fala em mensalidades para um futuro próximo. Mas aqueles que discordam disso tudo são vistos - inclusive pelos beneficiados - como vagabundos que "em vez de estudar tão aí, atrapalhando. Devem ser todos infiltrados de partidos políticos."

Hoje eu fui obrigada a ouvir um professor deslegitimando o pedido por cotas (raciais, sociais e para pessoas com deficiência) e chamando essa luta de "ditadura da minoria", já que "a maioria dos alunos é até à favor de cotas, mas não que isso atrapalhe" as aulinhas.

Professor, você é a minoria. Eu sou a minoria. Nossa sala de 60 alunos é a minoria. A maioria está lá fora. E graças a pessoas como você, continuará lá fora.

Professor, se as cotas existissem na USP, meu mérito não dependeria da sorte. Meus amigos poderiam estar na sua sala pra levantar a mão e dizer que você está errado.

Eu estou é cansada. Eu só levantei, e saí.




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