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CRISE DO BREXIT | Crise no Reino Unido: o Brexit está fora de controle

O primeiro ministro Boris Johnson perdeu o controle do Brexit. A Câmara dos Comuns, mediante uma aliança entre o partido trabalhista, verdes, liberais democráticos e os chamados conservadores “rebeldes”, bloquearam o caminho do “Brexit duro”, isto é, ocorreu um colapso unilateral do Reino Unido com a UE. Há de se ver se finalmente a Câmara dos Lordes aprovará esta lei e, no final, se a rainha a promulga. Porém, a instância parlamentarista no sistema britânico é a que expressa a “soberania popular” eleitoral, Johnson acaba de sofrer uma derrota que pode levar a novas eleições antecipadas. Se isso ocorrer, seria a terceira eleição geral em quatro anos.

quinta-feira 5 de setembro de 2019 | Edição do dia

Foto: Jessica Taylor

A contagem regressiva até o dia 31 de outubro, quando vence o último prazo que a União Europeia deu para aplicar o Brexit, esteve funcionando como um acelerador do tempo. Essa situação revela a profunda crise política e estatal -crise orgânica- que ameaça não apenas o status geopolítico e as relações comerciais desta velha potência imperialista em decadência, mas também sua própria continuidade como entidade estatal.

O “Brexit duro” que o atual primeiro-ministro conservador Boris Johnson ameaça é o equivalente a uma opção nuclear. Ele poderia minar o acordo da Sexta-feira Santa de 1998, que pôs fim no conflito com a Irlando do Norte, mantendo uma fronteira aberta com a República da Irlanda, quase com certeza dispararia um segundo referendo na Escócia -que é profundamente europeísta- para alcançar, aí sim, sua independência, e faria os grandes capitalistas britânicos perderem uma relação privilegiada com o bloqueio europeu, ao qual se dirigem grande parte de suas exportações, para não mencionar a Cidade de Londres que foi oficializada como principal centro financeiro da UE. Isso tudo em troca de um incerto acordo de livre comércio com os Estados Unidos, que tem como única garantia a frágil promessa de Donald Trump.

São claramente muitas contradições para serem absorvidas por um primeiro ministro cuja única base de legitimação são 92 mil filiados no partido conservador que o elegeram.

Quem acompanha de perto a política britânica vê duas hipóteses: a primeira é que, efetivamente, Johnson é um eurocético furioso que acredita que o Reino Unido deve recuperar sua soberania e a segunda é que isso seria uma tática de negociação dura para chegar a concessões de Bruxelas que melhore o acordo feito por May. Particularmente, eliminando ou flexibilizando o chamado “backstop”, é basicamente uma espécie de salvaguarda que manteria aberta a fronteira entre as duas Irlandas, caso não houvesse uma ruptura acordada.

O cálculo de Johnson é que a UE estaria disposta a pagar um preço para evitar o Brexit, em uma situação tensionada pela recessão iminente na Alemanha, pela guerra comercial com os Estados Unidos e pelas crises políticas, como a da Itália, precipitadas por correntes populistas e eurocéticas. Até agora, porém, essa hipótese não foi corroborada e a UE não se mostrou flexível, em particular na questão da Irlanda que é uma das linhas vermelhas que Bruxelas não está disposta a cruzar.

A julgar pela evolução dos acontecimentos, a estratégia de pressão ao extremo se demonstrou perigosa. Os acontecimentos das últimas semanas mostram a profundidade da crise, que mostra sua expressão superestrutural e, portanto, distorcida no cabo de guerra sem trégua entre o Parlamento e o executivo, mas que tem suas raízes na fábrica social surgida das contrarreformas neoliberais e das décadas de globalização.

A tentativa bonapartista de Johnson de fechar a câmara durante cinco semanas, que foi aprovada pela rainha Isabel II e homenagem a suposta neutralidade da coroa nos assuntos políticos, terminou sendo como um bumerangue, levando dezenas de milhares de pessoas saírem às ruas para protestar contra o que consideraram uma espécie de “golpe”. Além disso, facilitou a aliança multipartidária que derrotou o primeiro ministro três vezes consecutivas: primeiro ele perdeu a maioria, depois a agenda e finalmente o controle do Brexit.

Essa prolongada guerra de desgaste que já dura quatro anos devorou dois ministros. Primeiro no governo de David Cameron, o conservador que oficiou de aprendiz de feiticeiro com o chamado ao referendo em 2016, no qual o "leave" foi inesperadamente imposta por uma pequena margem. Depois a de sua sucessora, Theresa May, que instigou a ala eurocética mais dura e logo tratou, sem êxito, de votarem um divórcio negociado com a UE que, para os brexiters de paladar negro, equivalia a manter o Reino Unido como “vassalo” do bloqueio europeu. Boris Johnson está prestes a ser o próximo a ser engolido por esse buraco negro.

Entretanto, a grande preocupação para a estabilidade burguesa é que a principal vítima do Brexit seja o partido conservador, o instrumento político mais direto dos grandes capitalistas. Os conservadores se dividiram em outras oportunidades, mas desta vez parece ter sido desatada uma guerra civil sem quartel. Johnson expulsou os 21 conservadores “rebeldes” que se uniram na oposição e foram os arquitetos da sua derrota, entre os quais se encontram servidores ilustres da classe dominante, como o neto de Churchill ou os ex ministros da fazenda Philip Hammons e Kenneth Clarke. Sob sua liderança, transformou-se no “partido do Brexit”, ou seja, um partido populista, eurocético e similar as formações da extrema direita que florescem em ambos os lados do Atlântico. Por um lado, esta transformação é similar a do Partido Republicano norte americano, sob a direção de Trump.

Se houverem eleições antecipadas, provavelmente Johnson siga na estratégia de enfrentar o “povo” -que supostamente querem o Brexit- com a “elite” que se rende frente a UE. Johnson tem confiança porque vê o momento de debilidade do trabalhismo e o desgaste relativo de Corbyn.

Apostar na polarização pode ser uma estratégia útil para ganhar nas eleições, porém, como mostram os governos de Trump, Bolsonaro e do próprio Boris Johnson, a dificuldade que tem a classe dominante com governos de base social estreita é a de, sem hegemonia, lidar com os desafios dos explorados.

Até agora, a burguesia britânica conta com o handicap que o Partido Laborista deu, que sob a direção da ala esquerda de Jeremy Corbyn, esteve atuando como um fator de moderação na situação caótica do Brexit. Entretanto, os grandes capitalistas vêem com desconfiança a possibilidade de que Corbyn chege a ser primeiro ministro, não por ter uma estratégia distinta a de conciliação de classes tradicional do trabalhismo, mas porque seu programa inclui renacionalizações e certas medidas de um reformismo morno, mas o reformismo, no fim das contas, desperta o entusiasmo de amplos setores da juventude que se anima em reverter décadas de austeridade e neoliberalismo e que vem se mobilizando com dezenas ou centenas de milhares. Em última instância, o medo de sempre dos burgueses: que a combinação catastrófica de ilusões e crises dos de cima termine motorizando a luta de classes.




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