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LITERATURA | Conto: "Gangorra capitalista", por Afonso Machado

Leia o conto escrito por Afonso Machado sobre o drama vivido pelas famílias trabalhadoras brasileiras devido ao aumento dos preços dos alimentos

terça-feira 29 de setembro de 2020 | Edição do dia

Foto: Imageparty/ Pixabay

Jandira e a filha Manuela estavam sendo cozinhadas no ponto de ônibus. Manuela tirou uma agulha da bolsa e subiu no muro que ficava atrás do ponto. Ela esticou o braço em direção ao sol e com a agulha pontuda furou aquela terrível bola amarela. Enquanto o sol murchava, feito bola de futebol de capotão fincada na lança de um portão, todos os trabalhadores do ponto gritaram “ valeu! “Para Manuela. Mas , apesar da noite ter chegado, o mormaço só aumentava: o asfalto , aliado à poeira que não baixava, soltava um bafo que deixava os rostos mascarados melados de suor.

Jandira e Manuela precisavam fazer compras. Após mais um dia desgastante de trabalho. Elas tinham ainda que comprar arroz, leite para o menino Luiz e, caso sobrasse algum dinheirinho, quem sabe uma mexerica ou um bombom na boca do caixa? Jandira, uma faxineira robusta que nos seus 55 anos possuía mais energia que muita menina de vinte e poucos anos. Manuela, uma jovem de 18 anos que trabalhava numa pequena loja de ferragens. Elas se encontraram no ponto de ônibus, preocupadas com Luizinho, filho de Manuela:

Manuela - Será que a Dona Maria deu lanche pro menino? Ela é muito boa mas tenho medo que não olhe direito o Luizinho. Ai mãe, desde que a creche fechou não tenho mais sossego. Sempre acho que meu filho tá com fome.

Jandira: - Calma menina. Maria é muito boa, já era nossa vizinha antes de você nascer. Ela disse que tem sopa de macarrão suficiente para ela e o Luizinho.

Mãe a filha pegaram o ônibus. Ao atravessar os bairros o ônibus gemeu como um réptil atingido por uma daquelas queimadas na mata amazônica. Pelas janelas os trabalhadores observavam cenas que formavam um cotidiano espelho de classe: Muros com tijolos machucados, telhas tristemente alaranjadas das casas, gaiolas vazias de passarinho, pneus carecas copulando com garrafas pety pelos terrenos baldios, bêbados gesticulando visões apocalípticas, famílias inteiras indo para o culto religioso semanal, traficantes trajando capuzes em praças enforcadas, jovens ouvindo funk em frente aos automóveis, uma batida policial, um bicheiro devorando o papel com as apostas, um garoto descendo a rua no skate, joelhos ralados, narizes quebrados e os olhares estalados de cinco “ nóias “ que dormiam sobre os fios desencapados dos postes.

Jandira e Manuela deram o sinal para descer. Elas contaram três passos e saltaram primeiro uma rua, em seguida um canteiro de obras e finalmente aterrissaram em frente ao supermercado. Manuela pegou uma cestinha grudenta de metal e as duas seguiram para o corredor do arroz. Ambas comentaram : “ Tá caro “! Jandira disse que era melhor pegar um pacotinho de macarrão e misturar com o restinho de feijão que estava no congelador . O Leite?! O melhor seria pedir emprestado para algum vizinho. Mexerica? Bombom? Nem pensar! “ Tá tudo muito caro “. Talvez no mês que vem...

Na fila do caixa, as pernas doíam .Chegando a dar câimbra. Mãe e filha ouviram um homem comentar com um outro:

- São as leis da economia... Nossa carne, nosso arroz, nosso milho: as exportações elevam os preços. Mas isso é bom para o Brasil! Eleva os nossos produtos trazendo progresso, empregos, enfim, ocorre a expansão do nosso mercado... A economia é um sobe e desce: Isso é natural!

Jandira e Manuela pagaram o pacote de macarrão e seguiram para a casa, localizada há dois quarteirões do supermercado.

A noite passou feito um espirro. No parquinho desolador da praça em frente a casa das duas trabalhadoras, uma criança brincava numa gangorra enferrujada. O garotinho mal trapilho estava numa das pontas da gangorra, que subia e descia... subia e descia ... subia e descia. O menino perdeu o equilíbrio e se esborrachou no chão. Enquanto o garoto chorava, um saco de arroz repousava na outra ponta da gangorra.

Observação: esta é uma pequena obra de ficção. Apesar do pano de fundo ser inevitavelmente histórico, personagens e situações foram inventados.




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