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Celeste MurilloArgentina | @rompe_teclas

sexta-feira 25 de novembro de 2016 | Edição do dia

As comissões de mulheres atravessam a história da classe trabalhadora. Ligadas a tarefas vitais de “retaguarda” nas greves e identificadas com áreas tradicionalmente femininas (cozinha, cuidado das crianças, feridos e doentes), as comissões agrupam as mulheres que tem vínculos familiares com os trabalhadores de uma fábrica ou oficina. Ganharam peso em um momento que a classe operária era predominantemente masculina e a relação da maioria das mulheres com a força de trabalho era indireta, “de fora” e mediada pelos homens. Com a entrada massiva das mulheres no mercado do trabalho, as comissões adquiriram características e objetivos diferentes. As primeiras funcionavam como um “polo de atração” para as mulheres que estavam majoritariamente fora da fábrica, atualmente cumprem um papel unificador ao redor de temas que se tornaram estratégicos em uma classe operária feminizada. Em ambos os casos a organização dá as mulheres a possibilidade de ingressar rapidamente à vida política e assim, abre reflexões sobre a luta específica, mas também sobre seu lugar na sociedade.

O senso comum indicaria que a organização das mulheres em espaços próprios somente é de interesse das organizações feministas. Ainda assim, no final do século XIX nos Estados Unidos, correntes operárias combativas como os Cavalheiros do Trabalho ou a Industrial Workers of the World (IWW) as organizavam sindicalmente. Por outra parte, a atenção para a organização de mulheres, mesmo quando não era parte dos locais de trabalho, é parte da prática política de organizações nas quais a emancipação feminina está presente em seu programa (1).

Em que resulta a combinação da ruptura do isolamento doméstico e a política das organizações operárias combativas? Muito antes da crítica feminista impactar nas trabalhadoras, algumas organizações de esquerda (especialmente de orientação trotskista) impulsionaram essa política. A maioria dos estudos que se enquadra no feminismo não consegue abarcar a complexidade da relação entre gênero e classe e nos estudos sobre mulheres trabalhadores costumam ter maior peso os aspectos econômicos e históricos. Somente uma visão que inclua ambas categorias e seu cruzamento poderá indagar na experiência transformadora que é para as trabalhadoras esse tipo de organismo, quando o feminismo não chegava nem à ideia de “interseccionalidade”.

Rastros históricos: quando as mulheres não estavam nas fábricas

Nos referimos às comissões de mulheres em particular, e não à organização destas em geral, já que as mulheres não necessitaram impulsos para participar dos grandes acontecimentos históricos. Mas os obstáculos para a participação política, inclusive em ramos femininos como a produção têxtil, foram identificadas por organizações como a IWW nos Estados Unidos na greve de Lawrence (conhecida como a greve do pão e das rosas)(2), a que se destacou pela sua política de estabelecer creches, restaurantes coletivos, inclusive reuniões políticas infantis, todas iniciativas que buscavam retirar do lar, ou seja, as tarefas designadas às mulheres, os problemas que impediam a participação(3):

“A velha atitude dos homens de “amo e senhor” era forte e ao final do dia de trabalho... ou agora com as tarefas da greve... o homem chegava em casa e se sentava, enquanto sua esposa fazia todo o trabalho, preparar a comida, limpar a casa. Existiu uma oposição masculina considerável contra a ida das mulheres às reuniões e a que marchassem nos piquetes. Combatemos decisivamente essas noções. Mas mulheres queriam lutar.”

Essa “oferta” da socialização das tarefas domésticas apresentou às mulheres outra imagem das greves que até então se reduziam para elas à solidão e à miséria do lar, branco da pressão e desmoralização. Duas comissões ligadas a greves industriais na década de 1930 nos EUA oferecem exemplos significativos da participação feminina “de fora”: a greve de Minneapolis em 1934 e a de Flint em 1936-1937. Em ambas, as comissões foram impulsionadas por correntes de esquerda. (4)

Não é que não tivessem existido experiências prévias, inclusive laços solidários como os das sufragistas com as trabalhadoras têxteis em 1909 ou seu apoio à consigna de jornada de 8 horas. O distintivo da política de organizações como a Liga Comunista de James P. Cannon nos anos 1930 foi o objetivo consciente de somar junto às mulheres, no começo, para “suavizar” os efeitos negativos em um panorama completo política- e economicamente(5):

“Se as mulheres são tão efetivas para quebrar uma greve, poderiam também sê-lo para ganhá-la. Então organizamos a brigada auxiliar de mulheres, que foi muito efetiva para comprometê-las com a luta(6).”

Serão uma via para convencer as mulheres de que ali se encontravam os aliados para golpear o sistema que gerava dificuldades e sofrimentos às massas, dos quais as mulheres eram testemunhas privilegiadas. Nessa ideia se embasa a proposta de um militante homem em uma assembleia 100% masculina(7):

“O objetivo era envolver as esposas, namoradas, irmãs e mães dos membros do sindicato. Em vez de deixar que as dificuldades econômicas corroesse sua moral, sinalizou Skoglund, deveriam ser integradas à batalha, onde poderiam aprender sindicalismo pela sua própria participação direta.”

Assim é a criada a Ladies’ Auxiliary Brigade (Brigada Auxiliar de Mulheres) de Minneapolis. A proposta não foi aprovada automaticamente, exigiu discussão e finalmente foi votada; a primeira discussão que teriam esses operários influenciados por uma pequena organização de esquerda sobre o lugar das mulheres a ouviram de um militante trotskista. O desenvolvimento mostrará que o objetivo “paliativo” terminaria dando lugar a uma experiência mais ampla, ainda que não sem contradições. O principal limite foi a falta de autonomia da comissão, que funcionava sob tutela do sindicato. Ainda que apenas um setor de mulheres manteve sua militância, a experiência significaria conclusões e prática política que se estenderá para outras greves.

Foi o caso da Women’s Auxiliary da greve contra General Motors no fim de 1936 e começo de 1937. No marco da ocupação das plantas, as mulheres formaram uma comissão como parte do sindicato. Aproveitando a inexistência de um marco estatutário do jovem sindicato automotriz UAW, a comissão se declarou autônoma.

Sua primeira votação independente foi não chamarem se a si mesmas “damas” (ladies em inglês), senão “mulheres”. Essa decisão, impulsionada pela sua dirigente Genora Johnson, fortaleceu o caráter independente e permitiu ampliar o ramo de atividade, incluindo a autodefesa, que se transformou em uma característica distintiva da comissão, que organizou a Brigada de Emergência. A partir disso, várias greves com maioria de mulheres, como a da cadeia J. C. Penney, procuravam diretamente a Brigada e a comissão de mulheres antes do sindicato para pedir seu apoio(8).

Sem uma crítica feminista, existia a “transformação” do lugar das mulheres como produto da sua participação na ação operária. Como a própria Genora reconheceria mais tarde, o movimento de mulheres estava imaturo (9), portanto não existiam discussões sobre os papéis de gênero, mas existia, na ação, uma ruptura com o papel doméstico, em especial para as mulheres trabalhadoras, que ainda estavam longe das primeiras reflexões feministas. Como? Como parte da ação que uma greve desata, especialmente quando não se enfrenta somente a empresa, mas o conjunto das forças estatais.

As mulheres aprenderam a falar em público, a recrutar outras mulheres, a discutir e inclusive a enfrentar a repressão fisicamente. A potência emancipadora da militância na greve foi considerável, mais ainda depois da vitória, que consolidava o sindicalismo combativo e classista(10):

As mulheres que ontem se aterrorizavam com a atividade sindical, que se sentiam inferiores para a tarefa de organizar, falar em público, liderar, se haviam transformado, aparentemente da noite para o dia, na ponta de lança da luta pela sindicalização

.

Isso não eliminou a desigualdade, mas confirmou para as mulheres que sua incorporação à luta operária não somente fortalecia a sua própria luta e da classe de conjunto, mas mudava suas vidas(11):

“Dar às mulheres o direito de participar em discussões com seus maridos, outros membros do sindicato, com outras mulheres, expressar seus pontos de vista... Isso foi uma mudança radical para as mulheres dessa época”

O feminismo, a esquerda e as trabalhadoras

Durante os anos 1970 e em plena segunda onda do feminismo, a presença de mulheres trabalhadoras era um feito. Não faltaram experiências interessantes, ainda que a tendência majoritária do feminismo não tenha desenvolvido suas conclusões no sentido de confluir com a luta da classe operária.

Na Argentina, onde os círculos feministas eram pequenos, a participação das mulheres na greve de Acindar em Villa Constitución, ofereceu uma experiência valiosa. Ainda que a comissão concentrasse papéis tradicionalmente femininos (domésticos), sua participação permitiu a relação direta entre as esposas dos operários, trabalhadoras de outros ramos e um trabalho político comum com organizações de esquerda como o PST(12):

“Se existiu organização entre as mulheres, essa é minha lembrança (...) Se em algum momento se voltou a atenção às tarefas que parecem específicas das mulheres, eu não o nego, mas para mim era o marco da luta. Te digo isso porque existiam distintas opiniões”

Nesta lembrança de uma das participantes, Adela Manzana, pode se ver o impacto da crítica feminista e da esquerda. Mas essas contradições não negaram o papel que cumpriram em momentos chave(13):

“Quando a direção do sindicato é presa e muitos de seus melhores ativistas, são as mulheres – suas esposas, irmãs, sogras, mães- as que se colocam na linha de frente para sustentar a greve.”

Quando a classe operária é feminina

Hoje quase metade dos trabalhadores são mulheres, e a classe operária, como sujeito da transformação social, não pode se dar o luxo de ignorá-las. Neste contexto, as comissões de mulheres, longe de serem obsoletas, mantém um potencial “emancipatório. Se na primeira metade do século XX era necessário convencer a mulher que se a luta contra suas dores e que suas ânsias de emancipação tinham um aliado na classe operária, hoje essa disputa se transformou. Por um lado, a classe operária e sua organização política devem responder ao fenômeno de feminização do proletariado, na qual o “problema da mulher” deixa de ser uma preocupação setorial e passa a ser chave para qualquer setor que aspire se aliar e conduzir os setores oprimidos à sua emancipação. E por outro lado, deve disputar hoje (mais que nunca) no terreno das ideias, principalmente com aquela ideia de que a ampliação de direitos conduz à libertação.

Junto com essa transformação, surgem novos problemas e novas organizações.

No marco do sindicalismo combativo, que surgiu na Argentina em 2003, em meio a um relativo crescimento econômico, a experiência de Kraft Foods em 2009 mostra um exemplo deste potencial. Como resultado do conflito de 2009 ao redor da gripe A, surgiu uma comissão de mulheres não corporativa, organizava as trabalhadoras da fábrica e as mulheres das famílias dos trabalhadores. A comissão, impulsionada por setores da comissão interna e pela agrupação Pão e Rosas, deixou firmado um precedente: não é obrigatório ser filiada ao sindicato (burlando a divisão entre efetivas/terceirizadas) ou fazer parte da comissão interna para poder se organizar pelos seus direitos e podem participar mulheres relacionadas com os operários, como as mães, filhas e suas companheiras. A comissão foi chave para o conflito e naquele momento, unificou, contra o preconceito de que a organização independente das mulheres divide os trabalhadores.

As mulheres que em 2009 formaram a comissão não se limitaram a uma “agenda” setorial e isso se viu na sua participação massiva na greve de 38 dias (15). O legado se viu outra vez em 2011, quando uma trabalhadora foi assediada por um supervisor. Diante da denúncia da trabalhadora, o turno da noite paralisou a produção(16):

“Os companheiros homens mostraram uma enorme sensibilidade, sendo os que impulsionaram junto à Comissão Interna, essa medida de força, com as companheiras que expressavam indignação e raiva, mas também a decisão de deixar marcado que isso aqui não vai acontecer mais.”

A ação não mostrou somente traços classistas (defender aos que fazem parte da nossa classe), como também mostrou a potencialidade da mobilização unificada entre homens e mulheres em defesa das mulheres.

Em 2011 também surgiu uma comissão de mulheres na gráfica Donnelley (hoje gestionada por seus trabalhadores e trabalhadoras sob o nome de Madygraf), com o apoio de militantes do Pão e Rosas. Essa comissão, parecida na sua forma com as comissões onde as mulheres são “externas” à fábrica por ser uma empresa que empregada somente homens, construiu em seu interior demandas e problemas próprios da classe operária do século XXI.

Somado a isso, a comissão interna da fábrica tem em seu “DNA” político a experiência do apoio e apropriação da luta pela identidade de gênero de uma trabalhadora trans (17) em uma fábrica 100% masculina. Aceitar como sua a luta contra a opressão, de parte dos delegados sindicais (vários deles militantes ou influenciados por organizações de esquerda como o Partido dos Trabalhadores Socialistas), não somente foi motivo de enfrentamento com a empresa, como também fez parte de um debate sobre os próprios preconceitos:

“Quem mais sofre com esse problema (de encontrar emprego, direitos trabalhistas) são as trans. Quantas vezes vimos travestis trabalhando em fábricas ou escritórios? Ou em lojas de roupa, onde trabalham majoritariamente mulheres? (...) Com certeza pouquíssimas vezes. Frente à falta de oportunidades se veem forçadas a exercer a prostituição (...) Ironicamente, até aquele que é discriminado por ser pobre, estrangeiro ou por ter algum tipo de deficiência, muitas vezes discrimina o outro por sua sexualidade.”

Essa afirmação, que poderia muito bem ser escutada em círculos feministas, é de um trabalhador da Donelley (18) que, graças a sua atividade político-sindical, é influenciado pela esquerda e torna-se militante. Sua conclusão não é somente a evidência da opressão como também a crítica ao seu próprio corpo coletivo (operários homens) e incorpora na prática a “agenda” da diversidade sexual. Essa e outras lutas acumulam conclusões e vão dando forma à prática da organização, que aporta um fator decisivo para soltar a unidade que sustenta a gestão operária, apesar das suas múltiplas dificuldades e discussões.

As comissões impulsionam a organização de mulheres quando estas se encontram fora do conflito (em ramos majoritariamente masculinos) e a inclusão da “agenda das mulheres” quando são espaços de trabalho dividido com homens. Isso aprofunda, sobretudo, o fortalecimento da “localização hegemônica” da classe operária. A escala de fábricas e oficinas, a resposta coletiva com métodos da classe como a greve ou a paralisação da produção em resposta a problemas sociais como a saúde, o assédio sexual ou a discriminação, que sofrem majoritariamente as mulheres e a comunidade LGBT, são exemplos dessa política. Longe da ideia de que os direitos das mulheres são um tema setorial, a organização democrática e o impulso à participação das mulheres favorece essa “intenção hegemônica”.

Notas:

1. Ver por exemplo em separado “¡Paso a la mujer trabajadora!” de El programa de transición.

2. “A 103 años de la huelga de Pan y Rosas”, La Izquierda Diario, 13/01/2015.

3. “Elizabeth Gurley Flynn: rebelde con causa”, La Izquierda Diario, 13/01/2015.

4. Ver C. Murillo, “Marvel Scholl y Clara Dunne” y “Genora Johnson Dollinger”, Luchadoras. Historias de mujeres que hicieron historia, Buenos Aires, Ediciones IPS, 2005.

5. Ver sobre estos procesos Rebelión Teamster, de Farrell Dobbs, y Not Automatic. Women and the Left in the Forging of the Auto Workers’ Union, de Genora Jonshon Dollinger y Sol Dollinger.

6. Ver “Marvel Scholl y Clara Dunne”, ob. cit.

7. Farrell Dobbs, Rebelión Teamster, Chicago, Pathfinder, 2004.

8. Not Automatic…, ob. cit.

9. Entrevista con G. Johnson, citada en J. Hassett, “Never Again Just A Woman”, disponible en marxist.org.

10. Citado en S. Fine, Sit-down: the General Motors Strike of 1936-1937, Ann Arbor, University of Michigan Press, 1969.

11. J. Hassett, ob. cit.

12. A. Sánchez y L. Feijoo, “Feminismo y socialismo en los ‘70: La experiencia de la izquierda socialista en el movimiento de mujeres”, XI Jornadas Interescuelas de Historia, 2007, disponible en cdsa. aacademica.org.

13. Ídem.

14. Ver más en D. Lotito y J. Ros, “La lucha de Kraft Foods”, Estrategia Internacional 26, marzo 2010.

15. Ídem.

16. “Paro histórico en Kraft”, www.pts.org.ar, 29/09/2011.

17. “Entré disfrazada de hombre para poder conseguir este trabajo”, www.panyrosas.org.ar

18. J. Medina, “No es solo por el orgullo, es por la igualdad real”, La Izquierda Diario, 15/11/2014.

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Link original: http://www.laizquierdadiario.com/ideasdeizquierda/wp-content/uploads/2016/09/09_11_Murillo-1.pdf

Tradução: Marie Castañeda

Publicado originalmente em 31 de outubro de 2016.




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