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Cláudia Mazzei: "Hoje não se pode dizer que a mulher é minoria da classe trabalhadora"

Rita Frau Cardia

Cláudia Mazzei: "Hoje não se pode dizer que a mulher é minoria da classe trabalhadora"

Rita Frau Cardia

Às vésperas do 8 de Março, Dia Internacional das Mulheres, entrevistamos Cláudia Mazzei Nogueira. Ela é professora doutora do Curso de Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar da Universidade Federal de São Paulo na UNIFESP-Baixada Santista e coordenadora do núcleo de estudos do trabalho e gênero - NETeG. Abordando temas como o mundo do trabalho, a relação entre classe, raça e gênero, perspectivas para a luta das mulheres e guerras, esta entrevista ao Ideias de Esquerda foi concedida a Rita Frau, doutoranda de Geografia na UERJ e militante do grupo de mulheres Pão e Rosas.

Em seu livro “A feminização do mundo do trabalho: entre a emancipação e a precarização”, você relata a incorporação progressista da mulher na produção, mas que se deu de forma precária. Karl Marx chamou de cheap labour (trabalho barato) em sua obra O Capital, o conceito que expressava essa incorporação de mulheres e crianças na produção, como um dos mecanismos do capital que busca justificar o rebaixamento “natural” dos salários do conjunto da classe. Você pode comentar um pouco sobre a relação de gênero, raça e classe para o marxismo no que diz respeito à exploração e precarização do trabalho atual no Brasil?

Eu vou começar pontuando primeiro que o rebaixamento não é uma forma natural na perspectiva da classe trabalhadora. Ele pode ser uma forma natural de rebaixamento na perspectiva da lógica do capital que se apropria dessa desigualdade. Isso principalmente por conta de uma hierarquia patriarcal em que historicamente o homem é o provedor, portanto, ele quem tem que ter os melhores salários. A mulher seria, então, a cuidadora e os filhos homens seriam futuros provedores e as filhas mulheres, futuras cuidadoras. Claro que isso, no capitalismo contemporâneo, na atualidade, nós estamos conseguindo mudar um pouco essa lógica, mas por muita luta do movimento feminista e de outros espaços importantíssimos que estão pontuando isso. Então, para o capital, de fato, ele entende como natural [o rebaixamento dos salários] uma vez que a mulher não seria a provedora, ela seria a cuidadora.

Então, quando no pós-revolução industrial, ocorre a entrada da mulher na indústria, substituindo a força de trabalho, era justamente com esse intuito de rebaixar os salários porque a mulher, historicamente, não deve ser a provedora. Ela no máximo seria um salário complementar - isso na lógica do capital e, principalmente, naquele momento histórico que isso está ocorrendo, inclusive com o trabalho infantil.

Naquele momento você ainda não tinha muito presente o recorte de raça. As mulheres, fossem brancas ou negras, iam com seus filhos substituir a força de trabalho masculina. Então, quer dizer que a mulher é a culpada do rebaixamento salarial de toda classe trabalhadora? Não, não é a mulher. Naquele momento, o capital se apropriou da hierarquia desigual entre homens e mulheres, dos "papéis" que deveriam cumprir na sociedade capitalista, ou numa sociedade patriarcal.

E o que o capital fez? O capital não dorme no ponto, ele intensifica a dimensão de raça, claro. Ou seja, começa a se ter um avanço significativo, que não é só a mulher que deve ganhar até 30% menos que o homem. Mas a mulher negra passa, também, a ganhar menos que a mulher branca, por toda uma questão racial. Qual o papel da mulher negra historicamente? É do trabalho gratuito, era do trabalho que não era assalariado, ou seja, infelizmente, o trabalho da escravidão. Eles [os capitalistas] se apropriam dessa lógica, como fizeram com a questão da mulher em geral, e vão intensificar essa precarização trazendo, muito importantemente, esse recorte de raça.

Hoje, cobertos pela proteção social, pela inclusão social, eles estão fazendo a mesma coisa com os deficientes. Os deficientes vão também ter espaço no mundo do trabalho, mas vão ganhar muito menos do que a mulher branca, do que a mulher negra e vão ficar no mesmo patamar dos imigrantes. O trabalho imigrante vai nessa mesma questão. Portanto, a cada passo que ele [o capital] percebe que pode intensificar a exploração através de um aumento da precarização, ele vai fazer. Não é só a questão da mulher, não é só a questão da mulher negra, não é só a questão da luta LGBT, não é só a questão do deficiente e do imigrante. Ele vai usar todas essas categorias que nós temos dentro das “minorias”. E eu falo entre aspas porque hoje você não pode dizer que a mulher é minoria da classe trabalhadora, uma vez que a gente sabe que em alguns países ela é maioria na força de trabalho e já conseguiu inverter. Eles vão se apropriar dessa categoria que eles dizem que são “minorias”, que portanto, não são, na lógica deles, os provedores.

Por isso, é extremamente importante a questão da luta feminina que não se dá só enquanto movimento feminino. A mulher, para mim, além da importância dos movimentos femininos, ela é uma trabalhadora que tem um pertencimento real da classe trabalhadora. A luta é de classe: de homens, de mulheres, de negras, de negros, de LGBTs, a causa do trabalho infantil, a causa dos imigrantes. Por isso, eu até mudei minha forma de trazer a categoria da divisão sexual do trabalho. Hoje, eu estou usando a divisão sociossexual do trabalho. Por que sociossexual? Para reforçar que a divisão não é só entre dois sexos. A divisão do trabalho não se dá simplesmente em dois sexos. Ela se dá entre várias outras construções sociais. Entre elas raça, etnia, imigrantes, questão LGBT, trabalho infantil e tudo mais que a gente possa englobar e que, para o capital, possa se transformar em força de trabalho apropriada para a precarização e exploração.

Nesse 8M, chegamos num contexto de ataques como as reformas de Bolsonaro que precarizam ainda mais as condições de trabalho da classe trabalhadora, principalmente dos setores oprimidos. O caso revoltante do congolês Moïse, morto depois de cobrar seu salário de duas diárias de trabalho precário não pagas, simboliza o que a reforma trabalhista tem a oferecer à juventude negra, imigrante e a camada mais explorada e oprimida da nossa classe. Você pode comentar como a reforma trabalhista impacta na vida das mulheres trabalhadoras brasileiras, principalmente as mulheres negras?

Essa pergunta vem primeiro reforçar que é uma questão de classe. Óbvio que, em primeiro lugar, o Bolsonaro vem não só para reforçar e terminar uma destruição de direitos do trabalho, principalmente, mas também de outros direitos, os direitos humanos latu sensu. Ele vem para uma destruição inimaginável. Eu acho que a gente sabia que ia ser catastrófico, mas acho que muita gente não imaginava que seria tão acentuado os absurdos que ele vem fazendo no âmbito das reformas trabalhistas, previdenciária e mesmo dos direitos dos LGBTs e de outros. Ele acabou com a comissão dos direitos humanos. Quer dizer, ele conseguiu exterminar uma dimensão que foi uma luta muito grande para gente conseguir conquistar que são esses direitos latu sensu.

Como você coloca essa questão da mulher, mas mais especificamente da mulher negra, eu vou tomar a liberdade de trazer uma pesquisa que eu estou fazendo agora sobre o setor das trabalhadoras domésticas. O trabalho doméstico pode englobar, também, a presença de homens e mulheres porque se formos pensar enquanto categoria ele engloba jardinagem, motorista, mordomo, ou seja, ocupações bastante exercidas por homens. Isso para falar latu senso do trabalho doméstico. Mas eu estou falando aqui, especificamente, do trabalho doméstico como arrumar, passar, lavar, cozinhar, cuidar de criança. Nesse caso, você vai encontrar mais de 95% de presença de força de trabalho feminina e mais de 60% a 70% de força de trabalho feminina e negra. E não é de se estranhar porque é um trabalho precário no qual, infelizmente, você tem uma dimensão muito importante de raça, justamente porque ela vem de um processo histórico com a escravidão e as mulheres negras trabalhando para os seus senhores - donos de escravos e escravas - no espaço doméstico. Então há uma raiz histórica importante e é muito importante hoje a atuação do movimento negro que traz essas questões e as explicita.

No caso das trabalhadoras domésticas, nós temos uma conquista importante de direitos trabalhistas e para o reconhecimento desse trabalho com direitos que foi a conquista de 13º, dos 30 dias de férias, de um patamar mínimo de remuneração para a categoria. Houve uma conquista muito importante. No entanto, agora houve uma precarização, principalmente por conta da reforma trabalhista. Muitos direitos que elas haviam conquistado acabaram entrando na dimensão não só do trabalho não registrado porque se você trabalha até dois dias como faxineira ela não tem a necessidade, nem o patrão é obrigado a registrar essa trabalhadora, portanto, ela continua sem a proteção social. Mas também a própria inserção do trabalho intermitente, ou seja, você contratar de forma extremamente precária, com pouquíssimos direitos, a trabalhadora doméstica.

Isso não deixando de apontar o próprio trabalho nas plataformas de trabalho doméstico. Você tem lá um oferecimento das plataformas que você contrata a trabalhadora pelas plataformas, um certo trabalho tipo uberizado que é o momento do teletrabalho. Você contrata e paga para a empresa e o que vai receber essa trabalhadora é o mínimo do mínimo e sem proteção nenhuma porque é um trabalho intermediado quase como uma empresa terceirizada. Então ela consegue romper com uma certa terceirização, mas vem esse momento que a gente está falando do teletrabalho, da indústria 4.0 que vem concomitantemente com a destruição e com a reforma trabalhista e previdenciária. E essas trabalhadoras domésticas conseguiram conquistar proteção social através dos direitos do trabalho, o que as mulheres, patroas e predominantemente brancas, fizeram? Dispensaram a trabalhadora mensalista e passaram a contratá-las no trabalho intermitente ou duas vezes por semana. E aí ao invés de ter uma mensal, contratou três trabalhadoras duas vezes por semana cada uma delas. Portanto, se mantiveram sem nenhuma proteção. Quer dizer, é um furo enorme nessas conquistas que deixou excluído o trabalho da faxina. Isso fica de acordo com a consciência de cada um que está empregando e de registrar ou não.

Então muitas delas, quando eu faço algumas entrevistas, relataram que até perderam o emprego e acabam se revoltando com a conquista dos direitos trabalhistas. E o próprio sindicato aponta que pouquíssimas trabalhadoras são filiadas ao sindicato das trabalhadoras domésticas, o que é uma pena porque elas acabam sendo cooptadas pela lógica do próprio patrão/patroa que é a lógica que representa a lógica da burguesia, que representa a lógica capitalista. Então não só foi insuficiente essa conquista dos direitos do trabalho para essa categoria das trabalhadoras domésticas, como também ela acabou sofrendo uma reestruturação da forma de contratação. E, como a gente viu na pandemia, o trabalho doméstico foi um trabalho imprescindível, e quantas não faleceram contaminadas nas casas que trabalhavam. Então cadê a proteção? Não tinha proteção. O máximo que se conseguiu foi afastar a trabalhadora e paga o salário. Mas a maioria foi demitida. A grande maioria demitiu, não deixou a sua trabalhadora resguardada também. Em nenhum momento. Na grande maioria das vezes, pelo que eu pesquiso, nunca foi a trabalhadora que trouxe a Covid para dentro da casa, foi sempre a patroa ou o patrão que viajavam de férias para o exterior e voltavam contaminados e contaminavam a trabalhadora. Porque é um trabalho que a patroa não poderia realizar, tinha que ser um trabalho da "escrava” doméstica fazer o trabalho que a madame não poderia realizar. Então é muito complexo. No entanto, eu acho que isso é muito importante, essas reformas atingiram a totalidade da classe trabalhadora. Qualquer forma de trabalho que contempla as relações de trabalho-capital e que tem o pertencimento da categoria classe trabalhadora, isso é muito importante, essa é uma luta da classe. Aguardando e respeitando, obviamente, as especificidades de cada força de trabalho.

As mulheres já são metade da classe trabalhadora internacionalmente na atualidade, e nos últimos anos vieram protagonizando importantes processos de lutas como a Maré Verde na Argentina, a luta das trabalhadoras da saúde em Neuquén na Argentina, as operárias de Mianmar contra o golpe militar, as greves internacionais de mulheres de 2017, a luta das mulheres pelo direito ao aborto na Polônia, etc. Você vê uma potencialidade na confluência das lutas das mulheres com a luta de classes para enfrentar a crise capitalista e desenvolver uma luta anticapitalista?

Eu vejo como fundamental, nem a luta de classes pode acontecer aprofundada se ela desconsiderar as especificidades da força de trabalho, força de trabalho feminina, força de trabalho deficiente, força de trabalho da mulher negra, do homem negro, do indígena, da indígena, do imigrante, dos LGBT’s ou seja, é um conjunto de trabalhadores e trabalhadoras, que compõem a classe trabalhadora. Portanto é fundamental os movimentos sociais conjuntamente na luta para a superação do capital. Para mim isso é fundamental e nenhum é mais importante do que o outro. Eu acho que essa congruência de forças e de respeito inclusive. E incluindo também as dimensões. Porque quais são as dimensões pra gente vencer o capital? Ela não é só uma luta social. É uma luta social, econômica e política. Então a gente tem que contemplar todas essas dimensões. Se não, nunca a gente vai conseguir superar, infelizmente, o modo de produção capitalista. Além do gênero ou sexo, categorias vitais, utilizo divisão sociossexual do trabalho me permitindo dialogar com Helena Hirata, outra teórica, que eu gosto e utilizo muito, e que pra ela já está incluso quando fala em divisão sexual do trabalho. Aliás tive a oportunidade de conversar sobre isso com ela, e no meu entender eu acho fundamental reafirmar que é uma divisão sociossexual do trabalho no âmbito que temos outras categorias que são socialmente postas pra gente, que estão dadas, que é a questão da raça, da etnia, da questão imigrante, deficiente e da luta lgbt. Então, a confluência da luta dos movimentos sociais sejam eles feministas, sejam movimentos de raças e etnias, sejam movimentos dos tercerizados que não têm o sindicato para representar, movimentos que a gente vê dos trabalhadores uberizados que também não tem um sindicato, é um movimento social e a luta deles pelo reconhecimento de serem trabalhadores, a importância dessa luta. Mas ela tem que ser um movimento de classe e contemplar aquelas dimensões que eu falei, o social, as relações do empobrecimento, do desemprego, da saúde, da educação, do transporte, da habitação. Mas tem que contemplar também a dimensão econômica e a dimensão política. Só assim a gente consegue superar o modo de produção capitalista mesmo nessa superação, no meu entendimento a luta continua. Porque pra mim não basta simplesmente, “ah conseguimos a transição para uma socidade socialista”, ou rumo à uma sociedade comunista e a gente não tem essa certeza que bastou mudar o modo de produção a gente vai acabar com as opressões. E aí não estou falando de exploração, estou falando de opressões diversas que pode ser de gênero, lgbtfobia, de raça, ou seja, a luta para mim é contínua, ela faz parte do processo histórico e de que momento nós estamos vivendo. O importante é que essa luta seja coletiva, entendendo as especificidades de cada setor e que ela confronte essas dimensões política, econômica e social.

Esse 8M vai ser marcado internacionalmente pela Guerra na Ucrânia e nas guerras são as mulheres e crianças que mais sofrem com as violações dos direitos humanos, além de serem metade da classe trabalhadora mundial que sofre com a exploração e opressão imperialista em qualquer parte do mundo. Quais as consequências das guerras na vida das mulheres?

Eu acho essa pergunta bem interessante. Quando a gente vê através da mídia, uma parcela significativa dos refugiados é composta por mulheres, mulheres com seus filhos no colo, com as crianças, então a maioria dos homens por exemplo nessa guerra que estamos presenciando em 2022 foram proibidos de saírem de 18 a 60 anos. Eles foram pro front para lutar, então intensifica este papel de cuidadora da mulher. Eu acho que isso fica muito explícito, porque se as mulheres querem uma igualdade substantiva por que elas também não podem estar pegando nas armas e indo combater? Não, isso está reservado para os homens, isso é mais um recorte que tem uma certa aliança com a relação da família patriarcal, que é muito importante. Então a mulher passa a assumir mais intensamente o seu papel de cuidadora, isso é um ponto. Outro ponto que também intensifica o papel de cuidadora é em alguma dimensão de trabalhadora, nós não vimos tanto isso ainda, mas vimos isso na primeira e segunda guerra, onde as mulheres vão substituir a força de trabalho masculina na produção, principalmente nas produções de bomba que é naquele momento que está sendo mais utilizada, e que a gente sabe que toda guerra resulta numa enorme recessão econômica. O consumo diminui, a oferta de produtos e de mercadoria diminui, por todos esses elementos que eu estou trazendo. Então há também uma entrada das mulheres substituindo força de trabalho nas indústrias. Mas há também a outra legitimação do cuidado que são as mulheres que vão para o front como enfermeiras, que nada mais é do que uma profissão de cuidadoras, as assistentes sociais atuando muito nessa mediação dos recursos de infraestruturas, do acolhimento dessas mulheres que estão em fuga. Então assim, eu acho que explicita muito ainda a desigual divisão sociossexual do trabalho, porque você não vê as mulheres sendo convocadas. E a gente já tem mulheres compondo o Exército, a gente já tem mulheres fazendo a carreira. Mas elas acabam indo mais para o setor administrativo e da saúde que querendo ou não é um setor ligado a recursos humanos ou à questão do cuidado. E mesmo assim você tem pouquíssimas, eu pelo menos ainda não vi nenhuma mulher dirigindo um tanque de guerra, uma mulher no front mesmo ali combatendo, pra mim nós temos tanta capacidade quanto os homens de estar à frente. Mas o quê? “Vamos proteger a família!" E quem é melhor entre a mulher e o homem para a proteção da família? Infelizmente ainda para uma ideologia patriarcal hierárquica é a mulher que é apropriada pra esse papel.


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