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Chile, França e EUA: os caminhos do movimento de mulheres na segunda onda da luta de classes

Isabel Inês

Chile, França e EUA: os caminhos do movimento de mulheres na segunda onda da luta de classes

Isabel Inês

O movimento de mulheres surgiu como a ante-sala da segunda onda internacional de luta de classes, sua unidade internacional, que se sintetizou no chamado a greve internacional de mulheres, e suas pautas anti neoliberais colocou as mulheres na vanguarda das lutas contra as mazelas do capitalismo e contra os governos de extrema direita. Nesse ano se prepara uma nova jornada internacional de luta das mulheres nos dias 8 e 9 de março, a que ponto se encontra a luta das mulheres hoje?

No México, Espanha, França e Chile são onde ocorrem as maiores marchas esse ano, com destaque ao Chile que protagonizou uma marcha de milhões, a maior da história. Cada ano o dia 8 de março é novo, diferentemente do que querem governos e burocracias sindicais e de movimentos, o dia internacional das mulheres não é só uma data festiva de calendário para atos domesticados, rotineiros e decorativos. Pelo contrário, vem expressando sempre os fluxos e refluxos da luta de classes, suas experiencias e antecipando tendencias, é um dia combativo que expressa o descontentamento social e feminino com a busca por uma igualdade que no capitalismo, profundamente desigual, se mostra cada dia mais distante.

No caso do México o principal motor da insatisfação das mulheres é alto índice de feminicídios, cerca de 10 por dia (!). Enquanto a direita mexicana busca usar de forma oportunista o movimento feminista para desgastar o governo de Lopez Obrador (partido Morena), eleito como de “esquerda”, o que se evidencia é que essa insatisfação feminina se origina justamente no choque entre as aspirações com o governo dito de esquerda, com uma realidade onde a situação das mulheres não melhorou, pelo contrário, os dados do feminicídio mostram o caráter violento do Estado mexicano contra as mulheres, além da recusa do governo em legalizar o aborto.

Frente essa crescente insatisfação, o partido Morena e alguns empresários estão buscando “integrar” o movimento, dizendo que não haverá sanções para quem parar no dia internacional de luta das mulheres. Muito longe de qualquer apoio a pauta, esse fato demonstra o receio do empresariado com a força da insatisfação feminina e sua tentativa de cooptar “por dentro do movimento” enquanto ele ainda não tem um caráter radicalizado. Desta forma a insatisfação social no México ganha um caráter dual: por um lado vimos no período recente aumentar as greves econômicas no setor educativo e nas maquiladoras, e por outro o desenvolvimento do movimento feminista policlassista e contrario ao patriarcado, mas que ainda não tem na unidade da classe trabalhadora seu pólo estratégico. Contra essa separação que o Pão e Rosas mexicano luta, para construir um feminismo anticapitalista, operário e revolucionário.

PARA SABER MAIS -8M y 9M: Seamos miles en las calles contra el feminicidio, la violencia y la precarización (artigo em espanhol)

Essa dualidade, ou contradição, que vemos no México da separação da luta das mulheres com uma política de hegemonia operária e unidade com os trabalhadores, é um padrão que se estendeu por vários movimentos que ocorreram pelo mundo, nas marchas contra o Trump nos EUA, no Brasil enquanto a luta das mulheres crescia o golpe institucional e sua agente reacionária se aprofundava, e vários outros. Contudo, vemos na França e no Chile, países que estão na vanguarda da luta de classes, surgir algo novo que coloca a hipótese que essa separação começa a mostrar que pode ser superada.

Um lado EUA, Chile e França de outro: duas tendências diferentes para o movimento de mulheres pós segunda onda da luta de classes

Ao que tudo indica esse dia 8 de março nos Estados Unidos não terá o mesmo vigor de 2017. Isso deve nos levar ao questionamento da razão disso. Uma vez que foi no próprio EUA onde surgiu o chamado à greve internacional de mulheres após as massivas manifestações femininas contra o governo de Donald Trump. Para onde foi canalizada essa força e revolta das mulheres? Ao que tudo indica a resposta é que essa politização está dirigida à disputa presidencial para retirar Trump da Casa Branca.

Como resultante de processos policlassistas, com pautas difusas e restritas a exigências ao Estado, como maior integração feminina e demandas sociais, as eleições parecem conseguir “organizar” o descontentamento social dando a esperança de que um novo candidato resolva os problemas. Recentemente uma das impulsionadoras do feminismo dos 99% e importante referencia do feminismo internacional, Nancy Fraser, publicou um texto explicando o porquê em sua opinião o candidato democrata Bernie Sanders seria a “verdadeira alternativa para as feministas”.

De fato as eleições nos EUA vem demonstrando que o neoliberalismo americano também esta questionado e acentua a polarização social. As mudanças de consciência na população (principalmente os jovens, mulheres e imigrantes), o desgaste com a política tradicional e o fenômeno Bernie Sanders, que apesar de não ser socialista, é a representação eleitoral desse novo interesse pelo socialismo nos EUA contra o xenófobo e racista Trump, de um lado, e o tradicional imperialismo do Partido Democrata na figura do conservador Joe Biden, de outro. Esse repúdio, especialmente da juventude, ao establishment Democrata, mostra a crise do neoliberalismo no seu seio, uma vez que anos atrás a palavra socialismo era abominada pelos americanos.

Dessa forma a discussão de “Medicare for All", ou um sistema de saúde público e gratuito para todos, matrículas de universidades públicas gratuitas, salário mínimo de 15 dólares/hora, um novo pacto verde e o fortalecimento dos sindicatos, consegue atrair esse descontentamento social e esse rechaço a direita e aos super ricos, que foi expresso pelas marchas femininas anos anteriores.

Por via das eleições a dominação burguesa consegue desarmar a espontaneidade dos processos de massas e organizá-lo dentro do permitido no capitalismo. Assim, mesmo que Sanders prometa todas essas melhoras nos serviços sociais e outras questões, como afirma Fraser, sobre mudar a política migratória e a própria intervenção imperialista – e assassina – dos EUA nos países do oriente médio, elas são impossíveis sem a ruptura com o capitalismo, ainda mais tratando-se de um país imperialista que organiza todo seu Estado e empresas no sentido de manter a opressão mundial (e especialmente sobre as mulheres trabalhadoras). E isso só é possível via guerras, intervenções e exploração do trabalho migrante e de países pobres.

Tanto assim que o próprio Sanders votou a favor do fortalecimento das fronteiras em meio à crise migratória, e não se opõe globalmente à maquinaria de guerra estadunidense, já que para isso seria necessário um programa anti-imperialista contra o bipartidarismo ianque.

Quando Nancy Fraser sintetiza o porquê as mulheres deveriam apoiar Sanders, consegue expressar bem a base teórica de uma visão de mundo distinta que leva a uma estratégia distinta. ”Sanders defende os interesses dos 99% frente aos da “classe milionária”. O que se tem entendido um pouco menos é que sua campanha (e o crescente movimento que o acompanha) aborda o sexismo com eficácia, não só em suas formas mais manifestas, se não que também em suas raízes mais profundas e arraigadas na sociedade capitalista” (tradução própria).

Para uma visão marxista as raízes mais profundas da opressão de gênero estão justamente na propriedade privada, no desenvolvimento da família monogâmica como prisão para a mulher e garantia da manutenção da herança entre as gerações e a divisão sexual do trabalho. Assim o Estado capitalista integrou na sua essência o sistema patriarcal e usa dele até hoje para explorar mais a classe trabalhadora e as mulheres em particular. Assim, diferente de uma visão somente contra os "mais ricos" e contra um capitalismo financeirizado, como se fosse possível a volta a um capitalismo de livre concorrência e de obras publicas, a raiz para acabar com a opressão está justamente no fim de toda a propriedade privada e das classes. Esse objetivo não se conquista olhando e se preparando apenas para as eleições como ultimo fim político, mas sim construindo uma força revolucionária nas categorias operárias, movimentos sociais e juventude que busque a ruptura com o capitalismo.

Obviamente Sanders não é um revolucionário, inclusive nunca rompeu com o Partido Democrata (partido imperialista mais velho do mundo), e vale a pena lembrar que todo o debate com Sanders visa debater com seus apoiadores que não suportam mais o capitalismo, e muito longe de criar expectativas em outros candidatos, como Biden, um filho legítimo do bipartidarismo imperialista norte-americano.

Nossa corrente irmã nos EUA, o Left Voice, levanta no interior do fenômeno de juventude e em diálogo com ele as bandeiras da construção de um terceiro partido, uma força política independentes construída pelos setores oprimidos e trabalhadores que busquem a ruptura com o capitalismo, a revolução e a luta contra o imperialismo para construir de fato uma sociedade livre, sem opressão de classe e sem opressão de outros povos.

O que ocorre nos EUA com o renovado debate sobre socialismo e o desgaste com a política tradicional e com o neoliberalismo, não vai se fechar com facilidade e coloca em perspectiva a volta da luta de classes naquele país e novas experiências políticas. Assim os EUA se caracteriza como uma espécie de "caso híbrido" dentro dos dois pólos internacionais, onde Chile e França estão na vanguarda desse segundo ciclo da luta de classes, que também estourou no Haiti, Equador, Hong Kong e outros países, e do outro lado os países com situações reacionárias, como Brasil e agora o golpe na Bolivia. Digo “hibrido” justamente porque Estados Unidos é governado por um presidente xenófobo, racista e anti operário, contudo com uma juventude, mulheres e imigrantes que buscam a ideia de socialismo, nessa contradição, pela baixa luta de classes e uma situação econômica estável vemos o movimento de mulheres ainda vinculado a essa esperança de uma saída eleitoral.

Outro país que passa por uma profunda crise orgânica (política, social e econômica), mas que viu refluir o 8M dos dois últimos anos para este, foi o Estado Espanhol. Isso não quer dizer que a jornada do dia de hoje foi pequena, houveram manifestações massivas e setores que pararam, como os trabalhadores hoteleiros que no inicio da manha já estavam de braços cruzados pelos direitos das mulheres e contra a precariedade laboral a qual são submetidos. Além de denunciarem a exploração e desigualdade, as mulheres espanholas também se levantaram contra as políticas xenofóbicas e anti-imigrantes do governo e de toda a União Européia que persegue os imigrantes.

SAIBA MAIS - 8M: masivas manifestaciones en todo el Estado español (texto em espanhol)

Apesar disso as marchar foram menores que os anos de 2019 e 18, onde as mulheres espanholas foram a vanguarda de organizar paralisações reais dos locais de trabalho atendendo ao chamado a greve internacional de mulheres. Essa diminuição se deve basicamente a três motivos: por um lado, porque esse ano não houve a convocatória a greve nos locais de trabalho por parte do movimento feminista e nem pelos sindicatos (com algumas exceções), o que limitou o impacto da jornada. Essa contida no chamado a greve pode se explicar por um lado pelo receio da burocracia sindical de perder o controle dessa força social, uma vez que as mulheres e trabalhadores da Espanha podem se espelhar no exemplo francês. Mas, por outro lado, pela chegada de dirigente do PODEMOS ao ministério do governo de coalizão com os sociais liberais do PSOE, tem gerado certa expectativa em alguns setores do movimento de mulheres, incentivando a ideia de que as pautas contra a violência machista, a precariedade e outras podem ser conquistadas "desde cima" mediante a acordos parlamentares do próprio governo.

Chile e França poderiam reunificar a luta das mulheres com dos trabalhadores apontando a uma nova hegemonia?

O fato dos países que passaram por jornadas intensas de luta de classes terem os maiores atos nesse dia 8 mostra como o processo de luta foi profundo e influenciou todos os outros movimentos e a forma de pensar e sentir da população. Nesse sentido, se vemos nos EUA uma capacidade das eleições neste momento organizarem o descontentamento feminino e tira-lo das ruas como uma das resultantes do desenvolvimento do movimento de mulheres pós segunda onda da luta de classes, no Chile e França vemos apontar em germe a possibilidade de romper com a divisão de anos entre as pautas das mulheres e o movimento operário.

Enquanto por anos de neoliberalismo a burguesia organizou seu consenso - com a ajuda das burocracias sindicais e dos movimentos sociais - em cima da separação das lutas dos movimentos democráticos, fazendo-os ficarem restritos a reivindicações ao Estado e a um perfil cidadão, e do outro lado o movimento operário preso a rotina sindical e a “lutar só por salário”. É muito importante para o desenvolvimento da luta das mulheres tomarem as experiências internacionais que apontam a possibilidade de romper com essa separação.

O chamado a greve internacional de mulheres já apontava a um novo feminismo referenciado no movimento operário, ainda que com uma ideia difusa do que seria essa greve. No Chile vemos nesse dia 9 um chamado dos trabalhadores do hospital Barros Luco à greve internacional de mulheres votando em assembléia a paralisação por 24h, dizendo como as mulheres podem ser a faísca para junto a juventude despertar o movimento operário das posições estratégicas. Assim essa ideia de greve de mulheres que ficou no imaginário de milhares de trabalhadoras, se somado a processos de luta de classes, podem ganhar corpo em colocar as mulheres na vanguarda dos chamados a greve.

Cartaz do chamado a greve do hospital Barros Luco

No Chile esse 8 de março já é a maior marcha do mundo, com mais de 1 milhão de pessoas, expressando o questionamento totalizante ao regime deste país, unificou o descontentamento social com a repressão e os abusos, já são mais de 439 mulheres vitimas de violência estatal, além das adolescentes feridas, 1.600 mulheres sofreram violência sexual, torturas e outros tratamentos cruéis por parte dos militares chilenos. Também o rechaço completo ao governo de Piñera e reivindicando a legalização do aborto, com um grande lenço verde percorrendo a marcha.

SAIBA MAISEste 8 y 9 de marzo: Por que marchar com Pan y Rosas(artigo em espanhol)

Frente a essa força unificada, Beatriz Bravo trabalhadora dos correios chileno e militante do Pão e Rosas comenta “O movimento de mulheres e particularmente as mulheres trabalhadoras, podem ser a faísca que ponha em movimento o gigante movimento operário ainda dormindo, e se queremos superar a política mesquinha dos dirigentes sindicais burocráticos que convocaram somente uma paralisação de 11 minutos depois de 3 meses de trégua, poderemos avançar numa perspectiva de luta que se proponha a derrubar esse criminosos que temos como presidente”.

“Por isso exigimos da mesa Unidade Social, da CUT, do Colégio de professores, da CONFECH, que rompam sua trégua com o governo, e se baseando nesse enorme força que temos demonstrado, organizem um plano de mobilização séria, nesse mês de março temos visto como o governo tem respondido com uma repressão brutal, assassinando Cristián Valdebenito, cegando manifestantes e os mutilando, somente a força organizada dos trabalhadores, mulheres e jovens pode avançar em uma perspectiva de greve geral para derrotar o governo e conquistar uma constituinte livre e soberana”

Na França, o país onde o movimento operário mais entrou em luta de forma organizada, influenciados pela espontaneidade dos coletes amarelos e sua radicalidade, vimos nesse final de ano a grande greve dos transportes Franceses que se organizou apesar da rotina das centrais sindicais, organizando um comitê de greve que foi a verdadeira direção da luta. Esse exemplo anti burocrático e de auto organização é formula de democrática de organização do movimento operário que pode colocar em xeque a direção burocrática das centrais sindicais que atuam para conter as lutas. E nesse dia 8 de março vimos marchar nas ruas os trabalhadores e as mulheres, sendo inclusive fortemente reprimidos pelo governo Macron.

Essa somatória entre experiências de um novo movimento operário imigrante, feminino e precarizado, com um movimento de mulheres politizado, “empoderado” e levantando pautas que se chocam com uma realidade totalmente desigual, coloca a possibilidade de construir movimentos que não se restrinjam a pautas especificas e controladas, mas que expressem numa totalidade o descontentamento com o capitalismo e o exemplo Frances mostra como o movimento operário pode retomar sua posição dirigente e ligado aos pautas democráticas construir uma nova hegemonia operaria.


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