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CINEMA | Cabra marcado para morrer – arte e luta no campo brasileiro

sábado 27 de dezembro de 2014 | 21:19

Em 2014 completaram-se 50 anos do golpe militar de 1964. A forma como se deu a transição “lenta e gradual”, pactuada entre um setor burguês da oposição ao regime e os militares, faz com que até hoje a herança do regime militar seja viva e presente em nossa sociedade. Como demonstra o relatório da Comissão da Verdade divulgado recentemente, apenas arranhamos a superfície das atrocidades praticadas pela burguesia para manter seu poder durante essas décadas. A falta de qualquer medida séria nos doze anos de governo petista para que seja feita justiça em relação a esses crimes de ontem e hoje, bem como a manutenção dos mesmos no poder, mostra como esse partido foi e ainda é um pilar do pacto que garante a impunidade dos militares, torturadores, financiadores, mandantes e cúmplices do regime militar.

Neste ano que se encerra também completaram 30 anos de um dos mais emblemáticos filmes que fala sobre o que representou a ditadura no campo: trata-se de “Cabra marcado para morrer”, de Eduardo Coutinho. Na historiografia oficial, afirma-se de forma praticamente unânime que o golpe de 1964 foi feito contra o governo “comunista” de João Goulart, o Jango, que, com suas reformas de base, avançava sobre os interesses da burguesia e do latifúndio. Documentos como o “Cabra marcado para morrer” são peças fundamentais para mostrar como essa versão é absolutamente insustentável, e a verdade é muito mais profunda do que nos querem mostrar os livros de história e as versões oficiais.

Na década de 1960 um poderoso movimento dos de baixo estava em curso. Imensas greves operárias, mobilizações estudantis, organização pela esquerda na base das forças armadas e uma poderosa organização dos camponeses pobres mostravam à burguesia que ela se encontrava diante de uma ameaça real. Jango, como qualquer análise da história minimamente séria pode demonstrar, não constituía o perigo real para a burguesia, mas, em verdade, um verdadeiro freio para a vontade das massas que queriam ir muito mais longe. Nesse papel de contenção também cumpria um papel-chave o PCB, que tinha enorme influência e dirigia importantes setores do movimento de massas. Quem tiver interesse em conhecer melhor esse processo pode ler um pouco aqui.

Como parte dessa grande mobilização que ocorria, organizou-se, ligado à União Nacional dos Estudantes, um setor de artistas de vanguarda que procuravam se ligar às mobilizações populares: era o Centro Popular Cultura (CPC). Ali estavam artistas que mais tarde se tornariam famosos, como Vianinha, Leon Hirszman, Cacá Diegues, Ferreira Gullar, entre outros; além disso, ajudou a tornar conhecidos do público importantes artistas que eram então marginalizados pela indústria cultura, como Zé Keti, Nelson Cavaquinho e Cartola. A ideia do CPC partiu de um setor de artistas – fundamentalmente do Teatro de Arena de São Paulo – que, seguindo o clima política da época, radicalizava suas concepções de atuação artística. Com ideias que se aproximavam muito dos grupos de Agitprop (Agitação e Propaganda, grupos com raízes nas revoluções russa e alemã que procuravam ligar as ideias revolucionárias a formas artísticas feitas por e para os trabalhadores e demais setores explorados), o CPC tomou a atitude de efetivamente ir aos setores com os quais queria dialogar. Assim surgiu o projeto de percorrer o Brasil junto com a UNE Volante, uma caravana que procurava propagandear as reformas de base do governo Jango Brasil afora. Os membros do CPC tinham a intenção de fomentar novos CPCs por todo o Brasil, tornando camponeses e trabalhadores protagonistas de sua própria arte e sua história.

Quando, em abril de 1962, o CPC chega à Paraíba, mais precisamente a Sapé, seus membros tomam contato com o que havia de mais avançado no movimento camponês: as Ligas Camponesas. Surgidas inicialmente como associações mortuárias para garantir um enterro digno aos camponeses pobres, logo as Ligas ganharam um caráter político de luta por terra e pela reforma agrária. Apenas duas semanas antes de sua chegada havia sido assassinado por policiais militares e jagunços dos latifundiários o líder da Liga Camponesa de Sapé, João Pedro Teixeira. A liga contava com mais de sete mil membros. O CPC decide então fazer um filme sobre João Pedro Teixeira, o “Cabra marcado para morrer”. Não apenas contariam eles a história de João Pedro, mas queriam que os próprios camponeses que eram protagonistas da luta o fizessem, transformando-os em atores do filme.

Os preparativos para a filmagem levaram dois anos, e a equipe tinha tudo pronto para começar. Contudo, a luta de classes no país chegava a seu ápice, e o filme foi por duas vezes inviabilizado: na primeira, policiais e usineiros atacaram os camponeses, levando a onze mortes. Como consequência, onze mortos e a ocupação por parte da polícia militar na região, o que inviabilizou as filmagens. Mas eles não desistiram: Eduardo Coutinho, para continuar as filmagens, procura o abrigo das mesmas Ligas Camponesas que quer retratar. Leva sua equipe, incluindo Elisabete Teixeira, viúva de João Pedro, para Pernambuco, no Engenho Galiléia, onde surgiu a primeira Liga Camponesa, em 1955. Eram um exemplo vivo de como a organização camponesa podia fazer frente aos latifundiários e conquistar a vitória. Como expressa Coutinho no filme: “contávamos com um elenco de camponeses que podiam dedicar ao trabalho no filme um tempo que lhes pertencia. Eles eram agora donos de suas terras, graças a uma luta de quatro anos que culminou na desapropriação de Galiléia”.

A produção de “Cabra marcado para morrer” expressava aquilo que de mais avançado pode ocorrer na fusão entre a arte e a luta de classes: quando os próprios oprimidos e explorados tomam a arte como forma de expressão, de luta, de desalienação e tomada de consciência sobre seu próprio papel subjetivo, coletivo e histórico na luta pela emancipação. Arte e luta se fundem, diluindo progressivamente as fronteiras criadas ao longo de séculos de divisão social do trabalho, em que de um lado estão espectadores e do outro produtores; de um lado intelectuais e de outro trabalhadores. Agora, estavam unidos na mesma trincheira, da luta e da arte. Fenômenos assim não podem ser produzidos artificialmente: eles apenas ocorrem quando a luta de classes está em ebulição e permite a fusão plena entre intelectuais e artistas que tomam o lado dos explorados, e estes, que tomam as armas da cultura como suas para a luta.

Mas a derrota sem luta – uma consequência direta da traição do PCB, que não organizou nenhum tipo de resistência ao golpe – teve sua consequência imediata na produção dessa arte. O golpe militar interrompeu as filmagens, acabou com o CPC, incendiou a sede da UNE, e levou ao início do refluxo, não apenas político, mas também artístico, como bem retratou Iná Camargo Costa em sua tese “A hora do teatro épico no Brasil”.

Foi apenas dezessete anos depois – não à toa, logo após a classe operária retomar fortemente sua luta e organização – que Eduardo Coutinho conseguiu voltar a encontrar Elisabete Teixeira e os demais atores, procurando retomar suas histórias e saber o que havia ocorrido com eles após o golpe. Elisabete havia sido obrigada a mudar de nome, se esconder, abandonar quase todos os seus onze filhos para poder sobreviver. O regime havia caçado os produtores do filme, afirmando que eram “cubanos subversivos” que queriam doutrinar os camponeses a matar os reacionários.

Concluindo sua obra em 1984, Eduardo Coutinho, que infelizmente faleceu neste ano ao completarem trinta anos de “Cabra marcado para morrer”, legou um retrato incrível das lutas camponesas no início dos anos 1960, e de como o golpe militar teve como prioridade acabar com a luta no campo, perseguir, matar, torturar todos aqueles que tinham envolvimento com ela em qualquer nível. Fica para nós a lição da luta pela reforma agrária como uma tarefa para a revolução socialista no Brasil, e também da profundidade transformadora que pode ter a arte quando é tomada como uma ferramenta daqueles que querem construir um novo mundo.




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