Logo Ideias de Esquerda

Logo La Izquierda Diario

SEMANÁRIO

Biscuit: Crônicas de uma aeroviária [Parte 4]

Mateus Castor

Biscuit: Crônicas de uma aeroviária [Parte 4]

Mateus Castor

Os delírios de Brás Cubas

O ônibus não estava tão cheio, as crianças de diferentes famílias já havia se levantado e fizeram amizade uma com as outras. Alguns jogavam Uno, outros dormiam, ouviam música, conversavam. Sentei entre duas poltronas vazias, segurando o patinho de Biscuit. Minha família era “católica”, Igreja, quando muito, no natal. Minha vó era mais religiosa, minha mãe, embora falasse em vão a todo momento o nome de Deus, dizia que só não queria acabar no inferno. Com a ajuda do professor de religião na escola, virei ateia, preservei, contudo, a superstição dos santinhos. São Mateus, São João, Santo Antônio, etc, ganharam formas mais cômicas e fofas. Adotei os Biscuits da minha vó como divindades específicas para cada situação, o patinho era para afastar doenças.

  •  O moça, vem jogar Uno com a gente! - Pipocaram 3 crianças, 2 na poltrona da frente e uma de trás. Aquele de uns 7 anos, cara de arteiro terrível, já saiu bisbilhotando minhas coisas com os olhos.
  •  Que livro é esse? - perguntou com o meu livro já naquela mãozinha. Fiquei desesperada. A santa patinha não me protegeria ali.
  •  Sua peste o senhor volte pra cá se não vai ficar sentado preso no cinto aqui - ouvi uma voz máscula, dura, mas não surtada irritada. No aeroporto faltava as crianças usarem coleiras, não só por motivos de super proteção contra o mundo, mas também o medo de terem seus filhos sequestrados .
  •  Me-mó, me-mó-rias de Brás Cu - Cu…- Enquanto soletrava a primeira sílaba do sobrenome que eu não fazia ideia de quem era, o amigo do lado soltou aquele ar comprimido pelos lábios, em claro tom de deboche
  •  Cu.. - os outros dois começaram a rir, enquanto o terceiro, abnegado, terminava de soletrar, quando foi interrompido
  •  Já disse - veio novamente a voz de longe
  •  Tô indo, oxe! - respondeu a criança, que soltou meu livro apressadamente e saiu correndo para as primeiras poltronas.

    Fiquei nervosa porque foram tão invasivos quanto alguns passageiros que não sabem se localizar e acabam vindo me perguntar enquanto não estou na função de lhes responder com mentiras. Mas quis dar risada. Não proferi uma palavra para que nenhum vírus escapasse pela minha boca, borrifei álcool pelo corpo pra matar qualquer um que tenha fugido da prisão do meu corpo. Resolvi ler aquele livro.

    Demorava 30 minutos para cada página, a cada frase, 3 palavras eram absurdamente estranhas. Parei no começo, depois de muito esforço, no capítulo em que ele alucina em seu leito de morte, acredito eu pelo que me lembro. Um dia, termino de ler aquele livro. Passei a olhar para a janela, imaginando onde seria possível ficar isolada com o orçamento apertado que tinha, no litoral baiano. Já estava chegando em Belo Horizonte.

    Temporal

    Um pedaço da estrada estava destruído por conta dos temporais que atingiram o sul baiano. No Brasil, janeiro era sinônimo de imensas pancadas de chuva, que por sua vez eram sinônimo de desabamentos, inundações, pessoas soterradas, afogadas. Dessa vez, dezenas de milhares ficaram desabrigados. A família da frente, do menino pestinha, falava alto ao telefone, a casa da família que ele visitaria estava abaixo de três metros de água.

  •  Eu vou chegar aí e vocês vão comigo pra São Paulo! Já deveriam ter vindo! Não! Não! Você tá é doido! Não apele! - uma conversa acalorada embora a cadência tranquila do sotaque se mantivesse.
  •  O Mathias, você abandonaria sua casa embaixo d’água, sem roupa, sem nada, pra se mudar pra outro Estado do nada? - indagou a esposa, questionando quem era o louco. O marido ainda ouvia, e passou mais alguns segundos ouvindo.
  •  Tá bom, nós vamos nos encontrar na casa da Tia Conceição, então. To morrendo de saudade. Vamos passar ai e ajudar no que der. Beijo, qualquer coisa me liga. Mais tarde eu ligo Weckson.

    Queda

    No cursinho tive a capacidade exemplar de não ler absolutamente nenhum livro da lista dos milhares de vestibulares. Não gostava de ler, tinha preguiça. Preferia ficar tentando adivinhar as espécies de plantas e animais nos livros que ganhava de presente, quando o dinheiro não estava apertado. Adulta, então, me limitava a ler algumas notícias que sempre mandavam nos grupos de Whats do trabalho, normalmente sobre escândalos do governo e da Goltam. Mas estava entediada no ônibus, haviam passado cinco horas. Podcasts sobre espécies particulares de plantas e a vida das araras já tinham enchido o saco. Nem mesmo os vídeos de Youtubers sobre análise comportamental e linguagem corporal prendiam minha atenção. O luxuoso serviço de wi-fi do ônibus não era o suficiente para me entreter e queria me distrair o máximo do fato de que minha bexiga estava ficando cada vez mais cheia e ainda faltava 2 horas para a próxima parada. Lembrei daquele livro velho e empoeirado que tinha tentado começar a ler no ônibus que pegava para o trabalho todo dia e parei por causa da rinite. Era um clássico do Machado de Assis, que o professor de literatura do cursinho sempre comentava sobre. Não lembrava de nada do livro e nem lembro quem tinha me emprestado. Parei minha leitura na contracapa, já atormentada pelo pó. Era o que estava lá, no canto do armário, ao lado da mala tão empoeirada quanto o livro. Memória Póstumas de Brás Cubas era o seu nome.

    Por cinco dias, fingi ir ao trabalho. Na verdade, ficava escondida em um canto da pracinha que ficava suficientemente longe para não ser avistada por ninguém de casa.

    - Boa noite, mãe. Oi, pai - cumprimentei ao voltar para casa, esperando na sala enquanto eles estavam na cozinha preparando a janta.

    Sempre estavam lá, todos os cinco dias da semana, no mesmo horário, religiosamente, quando eu chegava às 19h do trabalho. O apartamento era pequeno. Minha vantagem eram os cômodos bem separados por paredes e o fato de que nunca fomos uma família de abraços calorosos. A distância aumentou após mais um velório virtual. Jantar tarde, sozinha, no meu quarto, era um costume. Meu pai, minha mãe e meu irmão comiam na cozinha assistindo TV.

    Minha mãe comentou da cozinha, enquanto eu fingia fazer alguma coisa na sala - Filha, graças a Deus que você tá voltando no horário certo! Tá fazendo menos hora-extra? Chegar aqui meia noite e meia todo dia é perigoso… Já se inscreveu naquele concurso que te mandei o link?

  •  Já, mãe - menti, mas aproveitei para me inscrever e mandar o print para ela. Seria mais uma desculpa, além do puro cansaço, do porque eu não saia do meu quarto e dormia cedo.
  •  Seria um sonho tá trabalhando menos, mas me colocaram numa posição que tenho que ficar de pé o dia inteiro igual um jumento falando sem parar, tô exausta e ficando sem voz - aproveitei e criei mais uma condição, minha voz cansada, fui até o quarto e disse que já ia dormir e que tinha jantado fora.

    Com extrema habilidade, minha família ficou intacta das informações. Saber do fato seria só mais estresse. Quando voltava, ficava trancada no quarto, de máscara. Não jantava com minha família, nas duas únicas 2 horas de silêncio que tinham juntos. O luto ainda se mantinha. Utilizei vários recursos, inventei histórias e incorporei personagens. Não havia questionamento ou desconfiança de ninguém. No primeiro dia de encenação, senti uma leve contração no canto de minha pálpebra, parecia mexer no ritmo dos "bips" do código morse dos filmes de guerra que eu assistia. No terceiro dia, retomei o hábito de arrancar a dentadas a pele das minhas cutículas, descascando, como a tinta de uma parede envelhecida, até pingar gotas de sangue. No dia seguinte, senti uma palpitação e um respirar pesado, temi que fosse algum sintoma e que acabasse entubada.

    No quinto dia do meu afastamento, acordei de um pesadelo. A tomada de consciência foi instantânea, parecia acordada e alerta por horas a fio. Segurei o grito com as mãos, apertei a garganta, ainda de olhos fechados, na transição entre a fantasia e a lucidez, a mão ao pescoço, acordei sendo estrangulada, um reflexo do inconsciente, e a pressão impediu o grito. Um grito seria o suficiente para meu pai correr para meu quarto. As lembranças vívidas de um segundo atrás pareciam ainda reais.

  •  Filha, tá fazendo menos hora-extra? - uma repetição perfeita, mudando apenas o ator e a frase. De um passageiro desconhecido, era minha mãe que chegava morta, contorcida, arrastada pelas ondas vermelhas até tocar os meus pés.

    A máscara que coloquei no rosto para dormir estava no queixo, senti uma agulhada de desespero e a levei de volta para o nariz. Procurava o ar. Me desesperei em estar com a respiração comprometida e morrer entubada, me esperneando e debatendo pois faltavam os componentes químicos que aliviam as dores de uma vida já impossível de ser salva.

    Reagi da mesma maneira que fiz no banheiro, não iria me deixar levar e me prontifiquei ao desafio. Não havia comentado com ninguém sobre o ocorrido, nem do evento no banheiro e nem que estava doente. Minha mãe não morreria. Meu irmão continuaria a estudar em seu quarto pelo celular. Tudo se manteria como está. Minha respiração voltou ao normal e lembrei que estava sem sintomas. Fui a fonte da tormenta. Sabia que as 3 horas daquele Podcast de psicologia, sobre a importância de reviver o terror para superá-lo, viria a calhar. Encarei minha mãe morta sobre meus pés, respirei fundo e olhei em volta. A tintura do céu também era de um velho, mais claro que o do mar, colisões de aviões, uma chuva de corpos, o impacto na água como se caíssem em concreto. Para mais longe, para o horizonte das areias daquela praia sem fim, um deserto, olhei, lá estavam, como zumbis. Reconhecia rosto por rosto daqueles passageiros, líderes e chefia, vagavam no Primeiro Círculo do Inferno, pagavam pelos seus pecados enquanto balbuciavam.

  •  “Preguiçosa!
  •  Trabalha direito!
    Vádia!
  •  Não deu ainda seu horário!

    Murmurando caminhavam os pagãos virtuosos, sem rumo.

    O medo da morte, mas 15 dias sem o caos do Check-in. Minha alma parecia que se partiria em duas. Uma paz ameaçadora, uma ameaça pacificadora. Agarrei as duas partículas fundamentais que resistiam à aproximação, como fazem os pólos de um ímã que preservam uma negação mútua, e as misturei, como fazia junto à minha avó quando brincava de Biscuit. Olhei para outra direção, para outro horizonte, desta vez para a linha que separava a vermelhidão do mar com a vermelhidão do céu. Tive a capacidade, como uma águia, de ter uma percepção clara daquele pequeno objeto que caia daquele céu, lá longe, fazia o mesmo assobio da morte que uma bomba fazia ao ser lançada de aviões. Penso que os dinossauros presenciaram algo parecido. Como um meteorito, aquilo rasgava o céu, iluminando-o. Aquele objeto deixava um rastro de um azul por onde passava, nuvens brancas também surgiam, em linha reta, foi se aproximando a uma velocidade imensa, mas que a distância parecia lento. Aquela coisa abria o céu como um zíper e o que germinava naquele espaço tinha o mesmo tom daquele azul que todo ceu deveria ter.

    Na iminência daquilo tocar a linha do horizonte avermelhado, eu não estava mais com os pés nas marolas. O objeto estava diante de mim, eu estava ao seu lado, eu e ele em uma queda livre pelo céu. Para baixo, olhava, não havia fim, apenas a queda, para cima, nada, apenas a queda, para o lado mesma coisa. Uma imensidão azul. Sentindo uma tontura, gargalhei, como se tivesse em uma montanha russa. A medida que me aproximava mais, enquanto sentia um vento forte por todo o corpo, embora não houvesse vento nenhum, som nenhum, aquela coisa colossal diminuiu tanto que fui capaz de colocá-la na palma de minha mão.

    Estava novamente na praia, via o céu vermelho sendo cortado no centro pelo azul, que chegava ao mar. Olhei para os meus pés, vi uma espuma branca massageando os espaços dos meus dedos que tanto sofri com frieiras na infância. Na palma da minha mão estava uma massa amorfa de Biscuit, um lado vermelho e o outro azul, amassei com toda minha força. Senti um formigamento, como se meus nervos estivesse sendo quebrados. Escuridão e depois a luz.

    Abri os olhos. Finalmente, acordada de fato. Malditos sejam os sonhos lúcidos. Tão reais que o desafio se manteve, era necessário reagir. Peguei o celular e procurei uma poltrona em um horário mais próximo possível. Eu iria à praia sentir a espuma entre meus dedos.


  • veja todos os artigos desta edição
    CATEGORÍAS

    [Carcará - Semanário de Arte e Cultura]   /   [Crônica]   /   [Arte]   /   [Literatura]   /   [Cultura]

    Mateus Castor

    Cientista Social (USP), professor e estudante de História
    Comentários