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BELCHIOR | BELCHIOR E UM SENTIMENTO LATINO. NOTAS

Morreu Belchior. Fica um legado musical e poético como poucos na canção latino americana. Muitos temas foram trabalhados a partir da música do compositor cearense. Sintoma de uma geração e má consciência de uma outra, a poesia do autor de “Coração selvagem” foi pau para toda obra em termos de política cultural e memória de um Brasil que teima em não se reconhecer nessas lembranças.

Romero Venâncio Aracajú (SE)

domingo 30 de abril de 2017 | Edição do dia

Belchior nos colocou no espelho de uma ditadura pós-1964 e das suas nefastas consequências numa juventude que brotava com garra e gana e que foi ceifada por censuras, boicotes, indústria cultural, despolitização promovida e tantas mazelas que marcaram toda uma geração. Sem dúvida, o compositor de Sobral varou o seu tempo histórico e nos fez ver uma fresta de tempo que nos permite compreender nossa recente história.

Há um tema em Belchior pouco trabalhado ainda que merece destaque nessa hora triste de sua partida sem volta... o que chamo de “sentimento latino”. Tema muito ausente na cultura brasileira. Nossa colonização nos empurrou para um desinteresse pela América Latina onde pagamos caro essa lacuna. Um sentimento que havia incomodado tanto um Glauber Rocha ou um Darcy Ribeiro, mas que ainda não nos incomoda como deveria. Precisamos sempre lembrar de nossa condição latina e americana, apesar da língua portuguesa. Há um cinema que nos faz sempre lembrar essa condição... Há uma literatura que chega em nosso país... Gabriel Garcia Márquez, Jorge Luis Borges, Julio Cortázar, Cesar Vallejo, Mario Benedetti, Juan Carlos Onetti, Eduardo Galeano, Leonardo Padura, entre vários outros. Falta de oportunidade não é desculpa para não alimentarmos esse sentimento em nossa cultura...

Em Belchior, dois momentos (e teriam mais, possivelmente!) chama a nossa atenção. No primeiro temos:

“Por força deste destino
Um tango argentino
Me vai bem melhor que um blues”

Obviamente, aqui a comparação não é estética: o tango argentino não é melhor que o blues dos EUA ou o contrário. A questão aqui é outra. É política. Vivíamos uma ditadura bancada e financiada pelo imperialismo do velho “Tio Sam” e sendo assim, o tango argentino nos fazia irmão de sangue, sofrimento e luta e não o Blues dos EUA. O compositor via um momento significativo de nos colocarmos em posição de uma unidade e sentimento latino no seu verso enigmático. Havia um clima que nos empurrava, apesar da ditadura, a pensar a América Latina em meios intelectuais, universitários e de esquerda. Havia um clima de terror que ameaçava o continente, e, nos meios de uma arte antenada com os acontecimentos, a importância de se pensar uma “Pátria grande” ganhava relevância, e Belchior não ficava de fora desse movimento na metade dos anos 70 do século passado. A música nos fala de “sonho” e de “sangue” e de “América do Sul”. O desespero que se precipita em boa parte da canção, mas esse era um sentimento que tomava conta de boa parte do continente com suas ditaduras e dominação colonial. No trecho da música citada, percebemos o quanto Belchior nos coloca diante do interesse saber sobre as Américas e nos retira desse exotismo com que é tratada aqui no Brasil e propalado pelos meios culturais da ditadura de plantão nos anos 70. Ao citar o “tango argentino”, optava pela arte em sua força imaginária. O tango falava mais de nossa realidade do que blues. Porém, será com a clássica composição: “Apenas uma rapaz latino americano” que esse sentimento de latinidade a partir dos de baixo que Belchior será imortalizado. Trazia um forte sentimento de pertencer a esse continente:

“Eu sou apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no banco
Sem parentes importantes e vindo do interior”

Era como se nos remetesse diretamente a real condição desse pobre rapaz, dessa pobre moça... desse ser humano latino americano comum que recria sua existência num ambiente de tão cruel dominação de classe. Ao mesmo tempo, a canção trazia um sentimento de unidade pelo sofrimento e pela condição de opressão. Não era apenas dominação, era sentimento de unidade nesse sofrimento em um grande continente – uma “Pátria Grande – que nos fazia ter alguma esperança no futuro... Primeiro, se faz necessário ter consciência da condição nesse lugar e saber como cantar:

“Não me peça que lhe faça uma canção como se deve
Correta, branca, suave, muito limpa, muito leve
Sons, palavras, são navalhas e eu não posso cantar como convém
Sem querer ferir ninguém...”

A consciência crítica do compositor nos motiva a pensar mais fundo a condição de pobre espoliado num continente que concentra tanta riqueza em poucas mãos e condena tantos milhões a miséria quase absoluta... Esse rapaz anônimo somos nós errantes dessa grande região... em nos faltar com a ironia, nos alerta em primeira pessoa para o obvio dessas terras:

“Mas não se preocupe meu amigo com os horrores que eu lhe digo
Isso é somente uma canção, a vida, a vida realmente é diferente
Quer dizer, ao vivo é muito pior...”

E de quebra, nos faz perceber que arte é arte... E nunca é igual a vida. Haverá sempre esse descompasso entre a criação artística e as condições objetivas da realidade... Uma marca a concepção de música do compositor cearense. Belchior sempre tentou (e conseguiu) em sua arte nos confrontar com a realidade:

“... Mas sei que nada é divino, nada, nada é maravilhoso
Nada, nada é sagrado, nada, nada é misterioso...”




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