Qualquer parte do corpo, na passagem do ar, gerava alguma enfermidade nele. O menino tinha rinite, asma, bronquite e tantas outras patologias respiratórias. As vezes tinha tanta dificuldade de respirar que preferia a apneia - se sentia até mais confortável assim.
sexta-feira 16 de setembro de 2016 | Edição do dia
Foto: Pattrícia Pitombo
Achava que tinha nascido pra inspirar algo diferente de ar. Passava mal quando, no seu pulmão confuso, adentrava qualquer meia molécula de oxigênio. As pessoas-padrões-respiradoras-de-ar diziam que ele era diferente e ele respondia sua preferência de respirar terra seca do que ser como eles.
Teve um dia que ele mergulhou o rosto na terra que tinha acabado de se molhar de chuva. Mergulhou a cabeça inteira e inspirou forte toda aquela lama. Naquele mesmo instante ele sentia que se transformava na matéria que inspirava: derretia-se e ficava mole como pasta. Virou areia movediça e se afundou, devagarinho. Se movimentava incessantemente naquela densidade pesada porque sabia que assim acelerava o processo de naufrágio.
Descobriu que amava o tempo denso: respirava bem melhor quando conseguia sentir a textura de cada estágio de imersão dos momentos voláteis.
Sabendo disso, no outro dia ele mergulhou no peito amazônico de outro garoto: mata densa, cheia de cipó amarrado e espinho nas bordas. Lá ele respirava as cores do amigo e se via tão encaixadinho ali, tão confortável, tão aconchegado, que decidia sempre respirar um pouco mais ali antes de voltar pra sua insuficiência respiratória habitual.
Descobriu que amava as cores duras: verde noite e vermelho maduro. Sua máscara de "oxigênio" era pintar o rosto com essas cores que só aquele garoto tinha. Decidiu amá-lo: molhava o pincel no peito do garoto e pincelava o próprio nariz. Mergulhavam um no outro e em si. Faziam amor. Desbravavam atmosferas sem gravidade e percebiam que o tempo passava mais rápido sem o atrito do cotidiano.
O garoto era tão doente quanto o menino. Tinha alergia a tudo que era superficial ou supérfluo. Se coçava por inteiro só de passar perto de uma parede cinza. Formavam-se bolhas de pus em sua pele quando o gás de pimenta queimava seus pêlos. Corroía e esfolava-se todo quando tentava passar alguma pomada ou quando tomava algum comprimido antialérgico.
O menino e o garoto, ambos reconhecidos por serem doentios em tempos de saúde individual. Eles foram enfermos juntos por aí, tossindo suas diferenças nos becos e exalando seus vírus de generosidade lamacenta. Aquela lama que te leva junto num caminho curioso. Uma tentativa de descobrir as possibilidades de momentos belicamente pacíficos.
(as vezes o ar é tão leve e ralo que dá vontade de respirar lama)