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SEMANÁRIO

As relações raciais no regime pós-golpe

Renato Shakur

Ilustração: Alexandre Miguez

As relações raciais no regime pós-golpe

Renato Shakur

As relações raciais já não são mais as mesmas. Desde a eleição de Bolsonaro, o filho indesejado do golpe, Daniel A. apontou que haveria um choque à direita nas relações raciais. Isto é, na medida em que Bolsonaro negava a existência do racismo, a identidade negra e a cultura negra passaram a ser o o alvo preferencial do projeto de pais bolsonarista, onde o negro se tornava inimigo quando reivindicasse seu passado de luta, sua cultura, sua identidade e se opusesse aos ataque profundos aos direitos dos trabalhadores em curso. A tese da democracia racial, do povo brasileiro miscigenado originado do negro africano, branco português e indígena, seria superada pela direita, apartando dessa fusão o elemento negro. O choque à direita nas relações raciais seria como um choque tectônico nas relações raciais, que movimenta placas e altera a configuração terrestre. Desde então esse abalo tectônico provocou alterações sensíveis nas relações raciais.

No Rio de Janeiro essa mudança se mostrou de uma forma bem reacionária e racista. Caracterizamos que Witzel havia se colocado como um “Bolsonaro consequente”. Se elegeu na onda bolsonarista e promoveu um “agressivo choque à direita” nas relações raciais. A polícia de seu governo assassinou quase 900 pessoas em apenas seis meses; 80% eram negras [1]. Sua ordem racista havia sido bastante clara: era para mirar na cabeça e atirar. A polícia do Rio de Janeiro bateu recordes de assassinatos, nunca antes vistos, virou sem sombra de dúvida uma ameaça real a vidas de moradores de favelas e periferias. Ele não esteve sozinho. Marcelo Crivella e João Doria – este ao menos inicialmente – também tensionaram, em uma escala menor e cada um à sua maneira, esse choque à direita nas relações raciais; não à toa aumentaram os ataques a terreiros de candomblé e umbanda na baixada fluminense. Ódio destilado frequentemente dentro dos templos da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). A juventude negra e trabalhadora paulista não esteve a salvo, como foi no caso do massacre na favela de Paraisópolis.

Os recentes números impressionam, mesmo sem um Witzel falando que é pra “mirar na cabecinha e atirar” e que a solução da violência social é mandar um míssil contra as favelas, ou até mesmo Bolsonaro dizendo que quilombolas nas servem nem pra procriar, incitando o odio contra os negros, a violência policial e o assassinato de negros segue a todo vapor. O governador carioca em exercício, Claudio Castro, tem números bastante parecidos com os de Witzel. Sua polícia chega a ser mais letal que a de Witzel se comparado o número de assassinatos de janeiro e fevereiro de 2021 com os mesmos meses de 2020 . Esse número se torna ainda mais escandaloso quando os comparamos com os dois últimos meses do ano passado, houve um aumento de 161% o número de mortos pela polícia e 140% o número de feridos. A marca racista do governo Cláudio Castro também está no aumento das chacinas em favelas, neste mesmo bimestre houveram 9 chacinas, 83% dos assassinatos de janeiro e fevereiro foram de chacinas cometidas pela política do Rio de Janeiro. [2]

Outros estados também chamam a atenção. Em pesquisa divulgada pelo Observatório da Segurança sobre mortes por violência policial em 2019, nove em cada dez pessoas assassinadas pela polícia em Pernambuco são negras, o índice de letalidade entre os negros é de 96%; na Bahia esse índice sobre para 97%; no Ceará 87%; em São Paulo, onde a população negra é de 35%, 64% dos mortos pela polícia são negros. É escandaloso observar nesse processo dois governadores petistas, Rui Costa (BA) e Camilo Santana (CE), como ponto de apoio do aprofundamento do racismo estrutural no regime, seguido do governador do PSB, Paulo Henrique Câmara (PE), do “campo democrático” que une a esquerda até golpistas em oposição a Bolsonaro. As relações raciais certamente se alteraram, o choque tectônico aponta ao menos inicialmente uma primeira “acomodação de placas”, mais à direita.

O choque à direita nas relações raciais no regime do golpe

O choque à direita nas relações raciais proporcionaram uma mudança importante. Há uma nova correlação de forças própria das relações raciais nesse novo regime que permite que outros atores políticos apareçam e levem à frente a continuidade deste choque. Bolsonaro e o bolsonarismo promoveram esse choque, mas outros setores do regime aprofundam o racismo como um “novo normal”. Inicialmente podemos ver ligações mais estreitas entre esse aumento da violência policial contra negros nesses estados mencionados e o desenvolvimento da crise social e sanitária em curso. O desemprego, violência social, a fome, número de mortos pela Covid-19, a falta de um plano de vacinação universal, pegam em cheio a população pobre e trabalhadora de conjunto, e, principalmente nesses estados. Rio de Janeiro e Bahia são os dois primeiros estados com maior números de mortes por violência policial, feminicídio e chacinas do Brasil [3]. O regime de conjunto não pode dar uma solução racional à pandemia, salvando vidas; por outro lado prepara mais e mais ataques e retirada de direitos. Ao contrário, se apoiam na violência policial e no racismo estrutural para conter explosões sociais e diminuir os índices de violência social, enquanto leitos de hospitais chegam à capacidade total de lotação.

Essa nova etapa do choque à direita das relações raciais, ainda inicial, se desenvolve na medida em que o regime do golpe se assenta. O regime do golpe alterou a correlação de forças mais à direita. As instituições sem voto ganharam proeminência no cenário político, STF e militares foram fundamentais na proscrição de Lula e em sua prisão, roubaram o direito de votar de milhões de trabalhadores, além é claro, de ter apoiado incondicionalmente a Lava Jato. As mídias golpistas aclamaram todo esse processo com um ufanismo anticorrupção típico de uma direita golpista. O Centrão, nas últimas eleições municipais se fortaleceu; após disputas com o próprio Bolsonaro, o norte do regime deixou o caminho da extrema direita para o de uma direita mais moderada, sedenta em passar mais ataques contra o povo e os trabalhadores. Graças à trégua das centrais sindicais e do PT, o bonapartismo institucional se fortaleceu; normalizou-se assim um regime mais à direita que seguirá com sua estratégia de submissão ao imperialismo, privatizações e de ataques aos direitos, objetivos que uniram golpistas e a burguesia brasileira na obra do golpe institucional, já que o próprio PT não conseguiria aumentar em intensidade ataques que já vinha fazendo.

O regime mais à direita permite o desenvolvimento de um país onde a identidade negra é ainda mais atacada, isto é, um regime mais à direita comporta relações raciais mais à direita. A identidade negra segue sendo o alvo, a violência policial é evidência disso. O número baixíssimo de terras quilombolas reconhecidas pelo governo e ausência de políticas públicas para a população negra também. Os ataques racistas a candidatas mulheres, negras e LGBTI+ a vereança por partidos da esquerda e o aumento em alguns estados de crimes de discriminação racial, também comprovam isso. Curitiba registrou um aumento de 440% de crimes que envolvem racismo, uma outra mostra de como se desenvolve o choque no regime do golpe. São Paulo registrou 2.206 casos em 2019 e Santa Catarina registrou 1.781, ocupando respectivamente o primeiro e segundo estados com mais registros. A perseguição a MCs e a criminalização do funk e da cultura negra e de periferia, desde a prisão de Renan da Penha ao recentes casos que envolvem denúncias contra MC Negão da BL, MC Cabelinho, todos negros e moradores das comunidades cariocas, também são reflexos importantes dessa mudança nas relações raciais.

O choque à direita nas relações raciais no regime do golpe institucional atua como um fator de “normalização” do aprofundamento do racismo estrutural e da violência policial. O debilitamento de Bolsonaro e do trumpismo internacionalmente são fatores contratendenciais importantes que debilitam uma linha racista da extrema direita no regime. A pandemia e as medidas de restrição e isolamento aparecem como um segundo fator que influenciam diretamente o aumento de operações em favelas, ocorrendo de acordo com o afrouxamento ou não de tais medidas. A decisão do STF em “proibir” operações policiais em favelas, ao menos em casos especiais, também, mas em menor grau. O medo da fúria negra do Black Lives Matter que se levantou nos EUA e em outros países do mundo atormenta a imaginação dos golpistas e do regime com um todo, pois por mais ataques que promovam, sabem que o fazem no pais mais negro fora da África e que tem uma das polícias que mais mata no mundo.

O bonapartismo institucional, a Constituição de 88 e a questão negra

O bonapartismo institucional, sobretudo a Globo e o STF, tentam capitalizar para dentro do próprio regime qualquer insatisfação e ódio contra o racismo e a violência policial, desde uma linha semelhante à do Partido Democrata dos EUA em relação ao Black Lives Matter. Fico com apenas alguns exemplos que ilustram esse desvio. A Globo se coloca com um grande “porta-voz” do antirracismo, emissora repleta de âncoras negros e negras, possui um coletivo negro antirracista de funcionários e diretores, programas como BBB historicamente com mais participantes negros e que se diferencia de Bolsonaro nas pautas culturais. O STF se apresenta como um “controlador dos excessos”; Gilmar Mendes chamou de bárbaro o assassinato de Nego Beto no Carrefour e Luiz Fux pediu um minuto de silêncio em memória de Beto. Recentemente mantiveram a decisão (9 votos a 2) da proibição de operações policiais em favelas durante a pandemia e, por decisão do ministro Ricardo Lewandowski, se implementaram incentivos a candidaturas de pessoas negras nas eleições municipais desde o ano passado.

O bonapartismo institucional ao mesmo tempo tenta dar uma “cara” mais democrática ao regime do golpe desde a decisão monocrática de absolvição de Lula, tenta dar também uma cara menos racista sem tocar no essencial da exploração capitalista. O STF é a espinha dorsal do racismo do judiciário, que não deixou de ser uma máquina de encarceramento da juventude negra e corrobora com a impunidade dos assassinatos cometidos pela polícia. A Globo, por mais antirracista que queira pintar sua programação e seus apresentadores, não esconde o fato de que foi porta-voz da implementação das UPPs, uma defensora absoluta da guerra às drogas que assassina a juventude negra e tenta desmoralizar o movimento negro. Os dois não querem nada mais do que controlar os excessos e canalizar para dentro do regime todo ódio de classe, pois sabem que em um país onde morre um negro a cada 23 minutos, um George Floyd pode surgir a qualquer momento.

O regime do golpe ataca a Constituição de 1988 no essencial aos direitos elementares de uma democracia. Diga-se de passagem, uma constituição pactuada entre militares e a esquerda, que resguarda a Lei de Segurança Nacional, proveniente da ditadura militar. No que corresponde à questão negra, está evidente que conquistas importantes como a demarcação de terras indígenas e quilombolas, a criminalização do racismo, os direitos trabalhistas e a própria Fundação Palmares foram insuficientes para combater o aprofundamento do racismo estrutural. O PT contribuiu em certo sentido para que esses ataques em curso pudessem ser respondidos à altura. Ao invés de impulsionar a auto-organização em processos de luta política que surgiam na década de 90 em diante e ser um fator de colocar dentro dos sindicatos as demandas da questão negra, optou por outro caminho. Confluiu com a luta dos movimentos sociais na implementação das cotas raciais, sem ampliá-las para a proporção do número de negros em cada estado. Se restringiu a criar um Estatuto da Igualdade Racial, sem promover ativamente nos sindicatos ações contra a disparidade salarial e a violência policial. Trouxe para dentro do Estado as pautas sociais dos movimento negros. A SEPPIR (Secretaria Especial de Promoção da Igualde Racial) é um exemplo disso. A luta das organizações e entidades do movimento negro passaram a ficar restritas a um calendário que historicamente encampavam. A luta por direitos históricos passou a estar diretamente ligada ao Estado e não tanto aos movimentos sociais. Promulgou também a Lei 10.639, da obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira, mas cortou verbas da educação. Conquistas importantes em um país atravessado pelo racismo e seu passado escravista, levadas à frente, sobretudo, por jovens e trabalhadores através de anos de luta contra o racismo. Mas o rumo da conciliação petista fez o Partido dos Trabalhadores ao longo de seus 13 anos ocupar com tropas o Haiti, ocupar a favela da Maré e ampliar a terceirização que precariza a vida de milhões de trabalhadoras negras.

A terceira geração do movimento negro, encabeçada pelo Movimento Negro Unificado (MNU), em menor grau também contribuiu a esse processo de institucionalização e de adaptação ao Estado, no que corresponde à luta por direitos históricos do movimento negro. Vale lembrar que estiveram na linha de frente da resistência à ditadura militar, denunciando o racismo e a violência do regime contra os negros e os militantes antirracistas. Trouxeram à tona debates importante em torno da mobilização política negra, como a discussão entre raça e classe, denunciando as desigualdades raciais e econômicas entre negros e brancos. Conquistaram algo muito valioso que hoje também é atacado nesse choque à direita das relações raciais, que é a percepção de negros a partir de variados fenótipos e tons de pele negra. No entanto, não conseguiu apresentar à vanguarda um programa de independência de classe que pudesse criar uma ala antirracista e negra no ascenso operário do final dos anos 1970. Ao contrário, seguiu um caminho que podemos chamar da institucionalização do movimento negro; por um lado, obteve conquistas democráticas, mas por outro lado não pôde preparar quadros para os momentos como o nosso.

As relações raciais guiaram à direita, por falta de um acúmulo de experiências no movimento operário, fruto também do papel das burocracias sindicais. A institucionalização da luta negra no regime do golpe se mostra insuficiente para combater esse giro, por isso é importante que por meio da luta se erga uma Assembleia Constituinte Livre e Soberana que revogue todas as reformas, golpeando todo o regime de conjunto


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Renato Shakur

Estudante de ciências sociais da UFPE e doutorando em história da UFF
Estudante de ciências sociais da UFPE e doutorando em história da UFF
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