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PRÉ-LANÇAMENTO: “A revolução e o negro” | texto de “A revolução e o negro”

Como parte do pré-lançamento da segunda edição de A revolução e o negro, publicamos aqui texto introdutório de Letícia Parks à seção “As mulheres na vanguarda da luta anti-apartheid”.

quarta-feira 13 de novembro de 2019 | 12:44

Algumas coisas ficam explícitas na leitura das audazes iniciativas das mulheres sul-africanas durante os turbulentos anos de 1950. A primeira delas, o fato de que, diferentemente do discurso hegemônico oficial, ser mulher não as convenceu de que seu lugar era a cozinha ou a lavanderia. A segunda delas, o fato de que serem negras, indianas e não brancas, em geral, não as convenceu de que a história não as pertencia, pelo contrário. Isso nos leva a um primeiro fato que se esconde por trás dessas duas camadas mais óbvias de compreensão do que se passou nesses turbulentos anos 1950 na África do Sul e na cabeça dessas mulheres “desafiadoras”. A emocionante leitura desses textos tem a potencialidade de comprovar, também, que as mulheres negras, ao perceberem a relação entre sua identidade de gênero e de raça sentiram mais ódio das restrições territoriais a que estavam sendo submetidas.

Se a burguesia, ao criar as fábricas e produção em massa “produz, antes de mais nada, o seu próprio coveiro” [1], ao criar o preconceito de cor e se apropriar do patriarcado, a burguesia tenha criado, talvez, algumas das mais decididas incendiárias desse sistema, afinal, sob tanta opressão e exploração, para as mulheres negras, sobra pouco para se perder. A dupla opressão que sofrem está longe de ser um dado superado historicamente pelos “avanços” do capitalismo. Pelo contrário. Com os horrores da guerra e suas consequentes crises migratórias, as mulheres foram lançadas ao mundo do trabalho da forma mais precária e atroz. Em países de capitalismo tardio, como Brasil e África do Sul, as mulheres negras ocupam os postos mais precários de trabalho e chegam a receber de 60% a 80% menos que os homens brancos, respectivamente. Quando se dá atenção ao fato de que a pirâmide social tem cores tão demarcadas, a associação entre identidade negra, o seu lugar de mulher – que muitas vezes não é o mesmo que o da mulher branca – e o grau profundo da exploração torna o despertar de consciência da mulher negra um salto explosivo.

Nas décadas posteriores aos fervorosos anos de 1950, nos quais esses textos estão localizados, as burguesias de todo o mundo, conscientes desse perigo, tentaram por diversas vias capturar a crescente reivindicação de identidade pela via dos mercados. Promoveram à política homens negros para dizer que o racismo estava superado, ao ponto de a grande potência imperialista do mundo ter tido seu próprio presidente negro. As novelas e os filmes brasileiros passaram a ter cada vez mais personagens negras fora dos padrões de empregada doméstica e mulher de traficante. Essa versão distorcida da identidade negra, expressa, por um lado, a força da grande massa de mulheres questionando seu não lugar na política, mídia e cultura da classe dominante, por outro, expressam as diferentes tentativas empregadas por grandes forças do capital de incorporar essa reivindicação e passivizá-la, traduzindo-a apenas em representatividade sem alterar as regras de um jogo em que as mulheres negras sempre saem perdendo.
Por baixo da camada da identidade, há também nesses textos uma outra particularmente interessante. Talvez não seja óbvio ao leitor reconhecer as turbulências dos anos de 1950. Ao fim da guerra, o mundo se dividiu não mais entre fascismo e democracia, mas entre essa última e o socialismo já burocratizado da União Soviética. Essa divisão inaugurou diferentes empreitadas bélicas que receberam o nome de Guerra Fria. A década começa com a guerra entre Norte e Sul da Coréia, cada uma ao lado de uma dessas potências, EUA e União Soviética, reafirmando seu papel decisivo no rumo de todo o globo. A Guerra do Vietnã foi mais uma experiência viva dessa disputa pela consciência das massas e ocorria, por sua vez, de 1955-1959, mesma época em que as mulheres negras assumem na África um papel destacado. Esse levante de mulheres era parte de uma dinâmica em nada distante da nova relocalização das potências mundiais. A decadência europeia com a guerra começa a viver seus efeitos na crescente onda de lutas de libertação nacional que toma conta do Oriente Médio e da África. As primeiras lutas e rebeliões anticoloniais começam na Líbia, em 1951. Em 1954, a Algéria segue esse rumo, seguida do Sudão, Tunísia e Marrocos em 1956 e é Gana em 1957 que se torna a primeira região independente da África Subsaariana.

O medo que percorria as elites coloniais e nas suas correspondentes imperialistas do outro continente, destruído pela guerra, é um dos mais importantes fatores para explicar por que a passagem entre países era tão decisivamente restringível pelas elites coloniais. A existência de um processo generalizado de revoluções nacionais na continente africano faz com que as regras de trânsito entre nações ganhem proporções agressivas, somando-se as já existentes leis trabalhistas segregacionistas que começaram seu curso na década de 1920. Controlar o trabalho se mantinha necessário mas não mais suficiente. Se pensamos que África foi dividida milimétrica e artificialmente entre potências imperialistas, é natural perceber que famílias e povos inteiros foram potencialmente desconectados. No momento em que esses povos, separados nacionalmente pelas colônias, se tornam revolucionários e falam a mesma língua, era preciso impedir que essa classe trabalhadora sul-africana se comunicasse com seus parentes e comunidades.
Não é possível, entretanto, terminar este texto sem desenvolver uma última camada muito escondida mas profundamente sensível. No surgimento desse movimento e dessa organização das mulheres, teria sido necessário identificar as alianças, programa e estratégias necessários para vencer. Para uma análise marxista, é essencial para isso olhar a realidade dessas mulheres a partir das lentes da dialética, perceber as contradições centrais que geram o movimento da história para poder, finalmente, a partir dessa compreensão, encontrar quais as contradições sobre as quais atuar e gerar uma profunda transformação histórica, revolucionária. Qualquer marxista sério nossa época perceberia que essas mulheres das quais falamos poderiam, sob uma direção e programa corretos, ter renovado as forças e energias da classe trabalhadora e contribuído para um importante salto político na consciência das massas sul-africanas, operando sobre as engrenagens que sustentam o poder da burguesia colonial e imperialista, que era já naquele momento o trabalho industrial e agrário. A unidade entre essas mulheres, assim como suas demandas serem abraçadas pelo conjunto da classe, era um momento decisivo para a vitória do movimento.
Isso porque mesmo sob todos os limites de organização de sua luta, foram as mulheres que fizeram a maior marcha antipasse de toda a década de 1950 na África do Sul. Foram ao menos 20 mil as que marcharam rumo à sede do governo expondo seu rechaço aos limites de circulação em sua própria terra. Se naquele momento ainda estava reservado às mulheres o papel do trabalho doméstico, seja na sua própria casa, seja na casa do patrão, foram elas que mostraram a maior disposição de luta, e com a devida investida dos partidos de esquerda e dos sindicatos, era possível que estimulassem a mesma revolta e nível de organização sobre seus maridos, filhos e amigos inseridos no crescente trabalho industrial e na massiva indústria agrária.

Vivendo o dilema do sustento de seus filhos, exigiam seu direito a atravessar fronteiras e se impactavam com as experiências de suas irmãs, irmãos, mães e avós que, dentre outras fronteiras, faziam revolução. Nas engrenagens que movimentam o capitalismo, tinham o poder de impactar os sujeitos capazes de parar a produção e impedir a engrenagem única de poder da burguesia: o lucro advindo do trabalho humano. Nas engrenagens que movimentam o colonialismo, elas eram as desafiadoras ativistas que estavam dispostas a viver na prisão pelo direito a uma terra livre, que conquistada, paralisa o ciclo de sobrevivência do próprio imperialismo que é a espoliação colonial, afinal, da mesma forma que “não há capitalismo sem racismo” [2], não há imperialismo sem colônias e semi-colônias.

Assim, com a potencialização da força de cada uma dessas mulheres em uma empreitada contra o que se percebeu depois como o início das mais duras décadas do apartheid, era possível entrar em marcha a organização dessa corajosa camada da classe trabalhadora. Não seria a primeira vez na história que as mulheres inaugurariam o sentimento de revolta que impactaria sobre todos os oprimidos. Mas permitir que as mulheres pudessem cumprir seu papel incendiário sobre o conjunto da classe tinha a ver com estratégias políticas, com direções capazes de atuar sobre as principais contradições em curso, o que naquele caso significava paralisar a espoliação imperialista pela raiz, paralisando a produção e construindo organizações totalmente independentes da classe trabalhadora, trazendo as mulheres desafiadoras à frente e convergindo seu programa com o programa de toda a classe trabalhadora. Mas a história posterior aos turbulentos anos 1950 foi um tanto diferente das potências ali em exercício.

As contradições que movimentavam essa luta não poderiam ser potencializadas e superadas em nome de uma nova sociedade sem a percepção profunda de que as burguesias nacionais em nada seriam aliadas na luta contra o imperialismo. O Partido Comunista Sul-Africano já mostrava ali as garras de sua traição. Orientava em nível continental a aliança dos comunistas com as burguesias nacionais, acreditando numa vaga e irreal linearidade histórica na qual os países africanos ainda viveriam sob o feudalismo e que, portanto, sua classe revolucionária era a burguesia e não o proletariado [3]. Com essa orientação, esvaziou a influência dos partidos comunistas sobre os sindicatos operários e os entregou na mão do Congresso Nacional Africano (CNA) [4]. Também encarava já ali a luta das mulheres como um problema que criava separação no seio da classe trabalhadora e ignorava as possibilidades de que a força das mulheres viesse a renovar a energia de toda a classe. Por orientação stalinista, o Estado operário retrocedera nas principais leis pró-mulheres aprovadas pelos sovietes no início da Revolução Russa [5].

O CNA, onde grande parte das dirigentes citadas se organizavam, provou-se naquele momento e posteriormente um obstáculo à independência de classe e à organização das mulheres, que com muito esforço, conseguiram inserir suas pautas na Carta pela Liberdade mas que enfrentavam, dentro de sua própria organização, batalhas cotidianas pelo reconhecimento de suas pautas. O CNA prova seu sentido histórico de traição na sua decisão por pactuar um fim do apartheid acordado com o imperialismo e com os políticos tradicionalmente segregacionistas – como Cecil Rhodes, cumprimentado por Mandela assim que este sai da prisão em 1991.

As lições do erro dessa aliança do CNA com a burguesia começam a aparecer justamente em nosso século. Em 2015 a juventude que derrotou a terceirização do trabalho nas universidades (que atinge em grande maioria as mulheres negras) teve como primeira ação de massas derrubar a estátua de Rhodes, símbolo do imperialismo e do racismo na África do Sul. Um pouco antes, em 2012, 34 dos operários grevistas da mineradora Lonmin, em Marikana, foram assassinados pelas forças repressivas do mesmo ACN – que governa o país desde a transição democrática – no que ficou catalogado como o maior massacre empreendido pelo Estado no país desde 1976, auge da ditadura do apartheid. Esse ACN de 60 anos depois da referida luta das mulheres contra as leis antipasse, revela o caráter contraditório e o potencial de traição de um partido que assume como sua tarefa a unificação entre patrões e classe trabalhadora, uma unificação impossível dada a contradição inerente do capitalismo.

A força da luta dessas mulheres certamente reverbera pela história sempre que tais relatos são recuperados e documentados. Publicá-los nesse livro faz parte, portanto, do esforço de, por um lado, fortalecer as referências que a historiografia burguesa insiste em apagar. Por outro lado, diz respeito a encontrar as lições capazes de produzir um programa e estratégia que preparem nosso movimento atual para vencer. Esta é o verdadeiro sentido de alteridade da história. Olhar a história com o sentido longínquo de quem se sabe um novo sujeito, diferente e totalmente renovado, capaz de produzir novas ações e novos grandes feitos. É também altero saber que sempre que buscamos algo no passado é porque há algo no presente que nos move nessa direção. Em nosso presente, as mulheres e os negros já são maioria das fileiras da classe trabalhadora mundial, que, renovada pelo pós-guerra, tornou-se majoritariamente feminina. É assim que esse encontro com esses textos, sua tradução e releitura provocam pensamentos e ideias sobre um presente marcado ainda pela opressão racial e de gênero, pela superexploração e pelos altos preços que os capitalistas querem fazer com que nós, da classe trabalhadora, paguemos, em primeiro lugar, suas camadas mais exploradas de mulheres, negras e negros, enquanto eles, ricos e poderosos, seguem lucrando.

Por todas as mulheres do passado e do presente que perderam seus filhos, amores e suas próprias vidas pela rídicula restrição de fronteiras que o capitalismo mantém viva. Por todas as mulheres mortas por abortos clandestinos, pelo direito ao igual trabalho e igual salário, independente de raça, gênero ou cor. Por justiça contra o roubo de nossas vidas e continente. Por Marielle Franco, Ágatha Félix, Luana Barbosa, Cláudia Ferreira, Maria Eduarda, mulheres diaspóricas assassinadas pela violência policial, pelo golpismo e pela extrema direita. O resgate dessas páginas e dessa luta memorável e apaixonante se dá em nome de criar uma estratégia que coloque as mulheres e as negras no lugar que merecem da luta revolucionária, lado a lado do conjunto da classe trabalhadora, que deve assumir como sua cada uma das pautas dessas que são as mais oprimidas internacionalmente pelo capitalismo. Uma estratégia de independência de classe, da certeza de que a força das nossas bandeiras se dá na unidade dos oprimidos e explorados contra cada agente do capitalismo.

Cabe às mulheres negras de nosso tempo incorporarem a síntese de muitas lições. Da luta contra o colonialismo, passando pelo combate ao capitalismo e a mortal luta política contra a burocratização stalinista e as distintas formas de pactuação dos reformistas e neorreformistas. Somadas essas sínteses, preparamo-nos para olhar para trás e ver que as possibilidades abertas colocam todas as lutas anteriores na antessala de obras políticas estrondosas. Uma luta revolucionária que no século XXI contará com a força majoritária das mulheres, negras e negros trabalhadores. Uma nova energia revolucionária que preencherá também novas páginas de história da luta mundial pela liberdade de nossos corpos e mentes, pela liberdade do trabalho e da criação, pela liberdade da arte, da poesia, pelo fim das fronteiras e da violência racista e capitalista. Essa luta negra da raça, do gênero e da classe delimitadas como água do óleo dessa burguesia inescrupulosamente racista, ocupará mais uma vez as primeiras páginas dos livros de história, abrindo os caminhos para uma vida que valha a pena ser vivida.

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Conheça a segunda edição revisada e ampliada de A revolução e o negro – textos do trotskismo sobre a questão negra: http://esquerdadiario.com.br/PRE-LANCAMENTO-segunda-edicao-de-A-revolucao-e-o-negro-Confira-a-agenda-de-lancamentos

Leia a “Introdução” de Marcello Pablito e Daniel Alfonso à segunda edição de A revolução e o negro.

Preço promocional de pré-lançamento e nas atividades: R$ 25,00. Para adquirir o seu, entre em contato com as Edições Iskra pelo Facebook: https://www.facebook.com/EdicoesISKRA/

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[1Friedrich Engels e Karl Marx,. Manifesto do Partido Comunista. Boitempo: São Paulo, 1998.

[2Conhecida frase de Malcom X.

[3Aidan M. Crawley. “Communism and African Independence.” African Affairs, vol. 64, n. 255, 1965, p. 91102.

[4T. W. Thibedi. Carta de T. W. Thibedi a Leon Trótski, Cf. p. 153 desta edição.

[5Wendy Goldman. Mulher, Estado e revolução. Boitempo, São Paulo, 2014.





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