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OPINIÃO | Arte e educação na atual crise: reflexões necessárias

sábado 30 de dezembro de 2017 | Edição do dia

O ano de 2017 ficou marcado pela ofensiva reacionária em diversos âmbitos da vida bem como pelos retrocessos em nossos direitos, desde a PEC 55, reforma trabalhista, terceirização irrestrita, reforma do ensino médio, Escola Sem Partido, censura à arte, cortes absurdos nos financiamentos artísticos e culturais, etc. Os recursos destinados às atividades do Ministério da Cultura, por exemplo, sofreram corte de 41%. Somente em São Paulo, com o congelamento e cortes nas verbas, Fomentos e Cidadania Cultural, o congelamento chegou a 71,6%. Desse modo, faz-se necessário uma reflexão profunda sobre o papel da docência em geral mas em particular no ensino de artes e no fazer artístico cujo presente artigo tentará apresentar alguns elementos, sobretudo no que diz respeito ao pensamento crítico e à liberdade.

Tomemos, então, o ensino de artes e o fazer artístico como exemplos desse debate. Professores, professoras, artistas, educadores, arte-educadores, oficineiros, mediadores, etc. que atuam no ensino educacional ou mesmo em outros ambientes como museus e centro culturais se deparam todos os dias com diversas discussões que dizem respeito à sua função dentro da sociedade como trabalhadores que vendem a sua força de trabalho em troca de um salário (bem como sobre condições de trabalho, questões sindicais e políticas) mas também sobre o campo artístico que possui suas próprias regras formais, entendendo-o como parte também dessa mesma sociedade.

A atuação tanto na escola quanto no campo artístico depende necessariamente das condições materiais da sociedade que vivemos. Com a crise atual, passou-se a ser impossível ignorar seu efeitos na realidade, mesmo quando o governo golpista tenta nos enganar com financiamentos bilionários de propagandas demagógicas, a realidade de revolta e descontentamento tem sido o tom nas salas de aula, espaços culturais.

Por isso, professores e artistas passam a ter que responder minimamente a esses questionamentos. No campo artístico isso dá de diferentes maneiras, desde proposições diretamente políticas até aquelas mais sutis que sensibilizam nossos pensamentos e sentimentos.

Mesmo quando não se pretende realizar algo político estritamente, a política está lá. Seja no financiamento, na escolha temática, nas relações de trabalho, na estética, etc. É uma falácia da burguesia e de seus aliados que a arte pode ser separada da política.

Ou seja, apesar da arte possuir suas próprias regras enquanto linguagem ela também está submetida ao regime de exploração capitalista, o que gera uma autonomia relativa da primeira em relação à segunda numa relação dialética, é claro.

Segundo Engels “O desenvolvimento político, jurídico, filosófico, religioso, literário, artístico etc. baseia-se no desenvolvimento econômico. Mas todos eles reagem também uns sobre os outros e sobre a infraestrutura econômica. Não se trata de que a situação econômica seja a causa, o único elemento ativo, e que o resto sejam efeitos puramente passivos. Há um jogo de ações e reações à base da necessidade econômica, que, em última instância, termina sempre por impor-se”.

Ainda que o sistema econômico atue sob os artistas e suas produções podemos dizer que em resposta a isso há tanto expressões de resistências e revoltas como também de assimilação e adaptação.

O professor de artes, o educador de museu, o artista tem em suas mãos, portanto, uma ferramenta importante para desconstruir discursos da elite dominante apresentando artística e cientificamente as diversas formas de exploração e opressão na história e na atualidade. Nesse processo de trabalho (seja na produção artística ou no ensino) é interessante pensar em reflexões que combinem a problematização de suas condições materiais com as linguagens e códigos específicos do campo artístico.

León Trotsky e André Breton, no Manifesto Por uma Arte Revolucionária e Independente retomam como base de reflexão o que Marx disse sobre o papel do escritor, entendendo esse escritor como produtor criativo, segundo eles:

"A ideia que o jovem Marx tinha do papel do escritor exige, em nossos dias, uma retomada vigorosa. É claro que essa ideia deve abranger também, no plano artístico e científico, as diversas categorias de produtores e pesquisadores. "O escritor, diz ele, deve naturalmente ganhar dinheiro para poder viver e escrever, mas não deve em nenhum caso viver e escrever para ganhar dinheiro... O escritor não considera de forma alguma seus trabalhos como um meio. Eles são objetivos em si, são tão pouco um meio para si mesmo e para os outros que sacrifica, se necessário, sua própria existência à existência de seus trabalhos... A primeira condição da liberdade de imprensa consiste em não ser um ofício. Mais que nunca é oportuno agora brandir essa declaração contra aqueles que pretendem sujeitar a atividade intelectual a fins exteriores a si mesma e, desprezando todas as determinações históricas que lhe são próprias, dirigir, em função de pretensas razões de Estado, os temas da arte. A livre escolha desses temas e a não-restrição absoluta no que se refere ao campo de sua exploração constituem para o artista um bem que ele tem o direito de reivindicar como inalienável. Em matéria de criação artística, importa essencialmente que a imaginação escape a qualquer coação, não se deixe sob nenhum pretexto impor qualquer figurino. Àqueles que nos pressionarem, hoje ou amanhã, para consentir que a arte seja submetida a uma disciplina que consideramos radicalmente incompatível com seus meios, opomos uma recusa inapelável e nossa vontade deliberada de nos apegarmos à fórmula: toda licença em arte."

Sendo assim, a arte possui um valor estético e histórico indissociáveis da liberdade mesmo sendo uma mercadoria, isto é, um produto independente do seu produtor e que se comercializa. Nos termos marxistas podemos dizer que o trabalhador que produz arte também se encontra tanto ele quanto seu produto em estado de alienação, pois as leis da produção capitalista submete ambos à categoria de mercadoria.

Essa base de análise ajuda entendermos de maneira crítica as produções artísticas, suas relações com a sociedade e dá subsídios importantes nas reflexões tanto em sala de aula como em espaços museológicos e culturais. Desalienar os processos de produção seja em uma fábrica, escola ou nas artes é fundamental para entender a realidade, suas leis de funcionamento e assim pensar ações de transformação de maneira estratégica.

Produções artísticas e classe trabalhadora

Tanto a diversão como a distração representam partes importantes da vida humana pois elas atuam a partir de “métodos teatrais” que agem sobre os sentidos e através deles sobre a imaginação. O cinema, as artes visuais, o teatro, a música, por exemplo, representam esse aspecto artístico humano, porém o acesso a essas atividades estão muito distantes da classe trabalhadora. É difícil ir ao museu ou aprender a tocar um instrumento se uma trabalhadora ou um trabalhador não tem tempo além do trabalho e da manutenção da vida.

Por isso o tempo é um aspecto determinante na vida da classe trabalhadora para se ter acesso às práticas artísticas e culturais. Na cidade de São Paulo, por exemplo, se você trabalha oito horas por dia e fica duas horas no transporte quanto tempo sobra pra se dedicar às artes, sendo que ainda tem o trabalho doméstico de manutenção da vida e o descanso? Sabendo, é claro, que muitas pessoas possuem mais de um emprego e no caso das mulheres, que sofrem historicamente com a opressão machista, ainda possuem as duplas ou triplas jornadas de trabalho.

Essa é uma questão material muito importante pra se refletir e apontar saídas estratégicas de transformação. Nesse caso, medidas paliativas ou assistencialistas não alteram a realidade e só confirmam a regra geral de precarização da vida da classe trabalhadora.

No livro “Questões do modo de vida”, Leon Trotsky faz alguns apontamentos sobre a situação da classe trabalhadora durante a primeira guerra imperialista e no processo revolucionário destacando como a Revolução Russa de 1917 trouxe grandes mudanças materiais que alteraram as bases da própria vida operária.

Vale lembrar que a jornada de 8 horas de trabalho também foi parte fundamental da luta do processo revolucionário russo e significou segundo Trotsky, uma “conquista direta da revolução e das mais importantes”, pois libertou o operário de dois terços do dia e imprimiu novas condições materiais em suas vidas. “Cria-se assim uma base para transformações radicais do modo de vida, para melhorar a forma de viver, desenvolver a educação coletiva, etc., mas trata de apenas uma base.” É ainda de suma importância que essas 8 horas de trabalho seja consciente e não alienada: “quanto mais as oito horas de trabalho forem produtivas, mais as oito horas de repouso serão reparadoras e higiênica, e mais as oito horas de liberdade serão culturais e enriquecedoras”.

A necessidade de atrelar reflexões específicas de uma área do conhecimento como as artes aos processos políticos da luta de classes segue sendo um grande debate. Como combinar a atividade docente, educativa dentro de formulações profundas das linguagens da arte com o trabalho militante de colocar de pé uma estratégia de superação da sociedade capitalista?

Um dos lugares mais privilegiados para se trabalhar inicialmente as linguagens artísticas seria na escola pois na verdade pode ser um dos poucos momentos em que os filhos e filhas da classe trabalhadora terão acesso e reflexão sobre tais produções. Digo isso sobre as técnicas e linguagens que necessitam de estrutura, pesquisa e consulta de materiais e equipamentos pois a vida humana é bastante dinâmica e cria novas técnicas e linguagens independentemente do acesso a recursos materiais específicos. Entretanto, a busca por diversões, distrações, ou mesmo formações artísticas se baseia no que se tem acesso e nas condições materiais desse acesso. Não se deseja ou se busca aquilo que não se conhece. O mito da meritocracia que os reacionários adoram falar aos quatro ventos não se sustenta ao mais banal teste na realidade.

Cabe a nós, portanto, professores, professoras, artistas, educadores, educadoras como parte da classe trabalhadora e "companheiros de viagem" estudar tais contribuições históricas da luta de classes, como foi a Revolução Russa que nesse ano fez 100 anos, e aprofundar suas lições para transformar a realidade das escolas, dos museus, centros culturais e toda a vida humana tanto no que diz respeito aos seus aspectos materiais como também subjetivos. Lutando por produções artísticas independentes de fato, com financiamento público, por ensino livre de dogmas e que seja emancipador, organizando-se coletivamente pra superar a escravidão assalariada, contra toda forma de censura à arte, de opressão e exploração.




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