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Uma das primeiras imagens que vem à mente quando pensamos em ativismo pelos direitos LGBT é a madrugada no bar Stonewall em Nova York: drag queens, jovens com calças Oxford, torsos nus e beijos na boca.

Celeste MurilloArgentina | @rompe_teclas

terça-feira 28 de junho de 2022 | Edição do dia

Mas aquele amanhecer foi precedido por dias, anos e décadas de homens de gravata e mulheres de saia e meias de nylon. Levantaram a voz em meio ao silêncio e se organizaram antes que as ruas se esquentassem com os movimentos pelos direitos civis, marchas contra a guerra no Vietnã e a segunda onda feminista nos Estados Unidos.

Uma madrugada que começou muito antes

A Segunda Guerra Mundial transformou muitos aspectos da vida cotidiana. O que a guerra tem a ver com a sexualidade? O mesmo que tem a ver com a entrada massiva de mulheres no mundo do trabalho e a movimentação de milhares de pessoas para as cidades, longe de suas famílias e de suas regras.

Essas transformações não foram as primeiras. O historiador americano John D’Emilio explica em seu artigo "Capitalismo e Identidade Gay" que, ao deslocar a família como unidade produtiva/reprodutiva, o capitalismo abriu possibilidades impensáveis. O mercado de trabalho “livre” (exploração assalariada) estabelecia as bases materiais para uma vida independente fora da família. A transformação não se limitou a relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo; a heterossexualidade também mudou: o casamento deixava de ser uma necessidade econômica, a família nuclear e a procriação deixavam de ser a base da sobrevivência.

A Segunda Guerra Mundial criou as condições para a multiplicação de comunidades urbanas onde pessoas que desejavam outras do mesmo gênero construíssem relações e espaços de socialização que antes não existiam (sobretudo para homens brancos, a guerra não fez milagres). No entanto, ao mesmo tempo, a sociedade do pós-guerra tentou voltar aos padrões anteriores, reforçando o casamento e a família, resultando em um boom de casamentos e bebês (a geração baby boomer é o resultado desse boom). Nesse contexto, a criminalização da homossexualidade ganhou mais importância como complemento moral da perseguição política dos anos 1950: o FBI perseguia ativamente os homossexuais, a polícia invadia bares e o Estado demitia quem fosse abertamente LGBT. Os homossexuais eram considerados pervertidos e instáveis e isso, segundo o Estado, os tornava suscetíveis às ideias comunistas.

Estabeleceu-se uma relação entre o medo do comunismo e a hostilidade em relação à homossexualidade. Falou-se até da “ameaça lavanda”, um paralelismo com a “ameaça vermelha” que era alimentada pelo macarthismo e a perseguição aos que eram identificados como comunistas nos anos da Guerra Fria.

Antes de sair do armário alguém disse "isso é um armário"

A coexistência da liberdade oferecida pelas condições materiais e a perseguição estatal criou o clima para as primeiras organizações de gays e lésbicas, como a Mattachine Society e as Daughters of Bilitis. O primeiro nome foi inspirado em uma sociedade secreta de homens mascarados da Idade Média e o segundo, em um personagem que viveu com Sapho na ilha de Lesbos em ‘Les Chansons de Bilitis’ do poeta Pierre Louÿs.

Falavam em homofilia (amor entre iguais) porque a homossexualidade ainda carregava um grande estigma: era um crime e uma doença. O movimento de libertação dos anos 1970 apontará (com o diario del lunes) que essa geração carregava uma preocupação excessiva em ser aceita como igual. Inclusive, considerando críticas e rupturas, seria tolice negar que o caminho para Stonewall começou a ser construído seguindo os passos da Mattachine Society e das Daughters of Bilitis.

Grande parte de sua ação era demonstrar que os homossexuais não eram diferentes, como diziam o judiciário e a medicina. Soa muito moderado? Talvez hoje seja, mas naqueles anos o sentimento geral em relação à homossexualidade era hostil, o Estado e várias instituições sustentavam que não era desejável nem tolerável. Nesse clima, as organizações “romperam com noções aceitas do comportamento homoerótico e foram pioneiras em conceber as pessoas homossexuais como minoria oprimida”; assim explica D’Emilio em seu livro ‘Sexual Politics, Sexual Communities: The Making of a Homosexual Minority in the United States’. Educados na militância comunista e nos círculos de esquerda, os dirigentes da Mattachine Society (logo o ativismo homófilo em geral) trabalharam para banir o preconceito e introduzir a ideia de que constituíam uma minoria discriminada que tinham seus direitos negados, como aconteciam com as pessoas negras, e eles não esperavam nada menos do que serem tratados como iguais.

Embora suas publicações não circulassem amplamente, criaram uma nova linguagem para uma geração política em formação. Revistas como Mattachine Review, The Ladder ou ONE eram veículos de reflexão e permitiram que muitas pessoas se aproximassem de algum tipo de ação política. Também foram terreno de debates. Diferente de uma imagem imutável e homogeneamente moderada, no movimento homófilo não havia uma posição única sobre a repressão estatal ou a forma que a militância deveria ter, entre outros temas. A unidade de ação não apagava as diferenças. Del Martin, uma das fundadoras de Daughters of Bilitis, discutia abertamente contra o machismo em 1959: “nenhuma organização reconheceu o fato de que lésbicas são mulheres e o século XX é a era da emancipação das mulheres. As lésbicas não se contentam em ser membros auxiliares ou homossexuais de segunda classe.”

Antes das mobilizações feministas se intensificarem, as discussões já permeavam as organizações. Os debates sobre a ação política também se agudizaram. A demissão de Frank Kameny de seu cargo como pesquisador de astronomia no serviço de mapeamento do Exército dos EUA em 1957 alimentou o primeiro desafio à discriminação por orientação sexual. Seu caso foi até a Suprema Corte e, embora ele não tenha sido reintegrado, foi uma das primeiras vezes que as leis foram contestadas e gays e lésbicas falaram publicamente contra a discriminação.

Apesar dessa primeira derrota, Kameny também fundou uma regional de Mattachine em Washington D.C. e, com a ajuda de Barbara Gittings (propulsora de uma militância política e menos "educativa" nas Daughters of Bilitis), inaugurou a ação direta com os primeiros piquetes de gays e lésbicas na Casa Branca em 1965, que logo seria espalharam em outras cidades. A amizade e sociedade política entre Kameny e Gittins foi muito frutífera. Juntos, eles incentivaram o debate na Associação Psiquiátrica para remover a homossexualidade da lista de doenças mentais (o que finalmente aconteceu em 1973).

Somos muito mais que dois

Quando Stonewall explodiu, o espírito militante também contagiou as organizações homófilas. Ainda sem saber, o movimento de liberação sexual caminhava sobre os passos dessa geração. John D’Emilio resume muito bem o momento e as condições em que ambas as gerações atuaram, por isso nos permitimos uma extensa citação de seu livro Sexual Politics, Sexual Communities…:

“A libertação gay foi capaz de quebrar a barreira que impedia o movimento de avançar ao apelar para uma base particular de origem recente e para além do alcance das políticas de direitos civis do ativismo homófilo. Os homens e mulheres que responderam à imagem de drag queens se revoltando em Greenwich Village eram em grande parte jovens radicais. Ativistas da Nova Esquerda ou simpatizantes da contracultura, que já haviam decidido que a sociedade americana era corrupta e opressora, e assumiram uma postura de oposição às autoridades. A ameaça de exclusão do Exército ou a perda de um cargo público significava pouco para eles. Ser rotulado como criminoso ou desviado era uma medalha de honra que eles usavam com orgulho. Quando uma bandeira do Gay Power foi hasteada na rua Christopher, eles estavam prontos para marchar atrás dela. A juventude radical poderia agir com o slogan ‘Saia do armário e vá para as ruas’ porque não temia as consequências.”

A história é muito mais complicada e não se reduz a esses momentos, inclui outros episódios e debates. Os primeiros anos do movimento de libertação deixaram seu próprio legado, com nomes que emulavam a Frente de Libertação Nacional do Vietnã e uma intuição anticapitalista, aprendida com as alas de esquerda do feminismo e do movimento negro. Esses anos curtos e intensos foram seguidos por um curso semelhante ao do movimento feminista: do coletivo ao individual, da libertação à "livre escolha", da emancipação (que pressupunha a luta por outra sociedade) à expansão dos direitos em uma sociedade desigual como teto para as aspirações. Muitos dos debates que atravessam o feminismo encontram semelhanças no movimento LGBTQI+. Para ambos, é verdade que o capitalismo estabeleceu as condições materiais para uma vida que antes era inimaginável, mas também é verdade que “sob o capitalismo, algumas pessoas podem criar a vida que desejam para si mesmas, mas a maioria não pode, inclusive com novas liberdades sexuais." Isto respondeu D’Emilio em entrevista a Meagan Day na revista Jacobin, que lhe perguntou por que alguém deveria ser anticapitalista se considerarmos as possibilidades que ela abria.

Atrevemo-nos a pensar em um possível acréscimo a essa resposta, importante quando já vivemos muitas décadas sob o torpor da "igualdade". É uma reflexão da psicóloga e feminista Juliet Mitchell em “Women: The Longest Revolution”:

“Se apenas desenvolvermos a consciência feminista... o que alcançaremos não é uma consciência política, mas o equivalente ao chauvinismo nacional nas nações do terceiro mundo ou economicismo entre as organizações trabalhistas; um olhar que vê a si mesmo, que vê apenas o funcionamento interno de um segmento; os interesses desse segmento.”

Esse alerta às feministas da década de 1970 ganha uma nova relevância quando as democracias capitalistas nos incentivam o tempo todo a "ver a nós mesmas", a ampliar direitos para nosso "segmento". Porque senão, lutar contra a opressão implicaria colocar tudo em questão.




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