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FRANÇA | Anasse Kazib: após 50 dias de greve, "estamos longe de ter esgotado o ímpeto contra a reforma"

Direto da França, nosso camarada Anasse Kazib, trabalhador ferroviário do setor de Bourget, analisa o saldo de 50 dias de greve dos transportes contra a reforma da previdência, para propor perspectivas para um conflito que está longe de acabar.

quinta-feira 30 de janeiro de 2020 | Edição do dia

Se, no início de dezembro, alguém nos tivesse dito que a greve por tempo indefinido que começamos no dia 5 de dezembro de 2019 seguiria até meados de janeiro, eu dificilmente teria acreditado, e menos ainda na SNCF [empresa ferroviária estatal], onde ainda viemos de uma grande derrota há apenas um ano e meio. Embora, claro, eu soubesse que estávamos frente a uma greve dura, que seguiria indefinidamente, onde a SNCF e a RATP teriam um certo papel de locomotiva do movimento.

Desde 13 de setembro contra as visões sectárias e/ou derrotistas de alguns, com os camaradas do Révolution Permanente, nós sentimos a emergência bem rápida de uma radicalidade, notavelmente na base da RATP. Mas eu nunca havia imaginado que seria ao ponto de ganhar totalmente a batalha da opinião pública, e de superar a duração das greves de 1995 e 1986, ainda mais atravessando o período de festas de fim de ano, onde mesmo os sindicatos apelaram, de maneira mais ou menos aberta, por uma trégua.

É, portanto, hora de que eu apresente nesta tribuna um primeiro saldo destes 50 dias desse movimento incrível, histórico, e apresentar perspectivas de vitória em um conflito que está longe de ter revelado todo o seu potencial.

O falso retorno das direções sindicais...

Durante as duas primeiras semanas do movimento, as mídias teatralizaram o “grande retorno” dos sindicatos, como se mais de um ano após o movimento dos Coletes Amarelos nada tivesse mudado para a classe trabalhadora, e se estivéssemos prestes a viver um conflito clássico que opõe sindicatos e o governo. Além disso, correspondia à vontade demonstrada pelo governo em reabilitar os órgãos de diálogo, no âmbito de um “ato 2” de seu mandato de cinco anos, anunciado como "um governo marcado por mais escuta e diálogo".

Esta aposta de reabilitar os órgãos de diálogo foi, em todo caso, um verdadeiro fracasso. De um lado, porque Macron não soube ou não quis se servir, no início, das burocracias do movimento operário. Ele negocia não para recolocar à frente os dirigentes sindicais, mas por impor a correlação de forças. A própria maneira como o governo lidou com a extremamente reformista CFDT na questão da idade mínima para aposentar-se (com todos os benefícios) mostra a que ponto ele não tem intenção de ceder, mesmo que para evitar a fragilização dos dirigentes sindicais. A prova sendo que mesmo depois do governo ter anunciado um “recuo” na idade mínima, Édouard Philippe ainda foi duro com a CFDT, enquadrando o recuo em uma série de limites, forçando Laurent Berger [secretário-geral da CFDT] a aceitar o aumento das contribuições de pensão dos funcionários ou a desistir da idade mínima, por falta de outra possibilidade de financiamento. Já se viu atitudes políticas melhores em termos de reabilitação da burocracia sindical.

Por outro lado, e isto é o que nos interessa mais, por trás destas tentativas fracassadas, vimos emergir um novo sujeito, que começa pouco a pouco a falar com sua própria voz: a base!

... e o verdadeiro retorno da base!

A realidade, aquela dos de baixo, é completamente outra. Jamais uma greve havia sido de tal forma impulsionada pela base, até o ponto da reflexão do próprio calendário pela base, obrigando os dirigentes sindicais a seguir, sob pena de pagarem caro. A data de dezembro foi refletida de maneira inteligente pela base, o objetivo não era de prejudicar as festas - porque, na realidade, muitos acreditavam que duas semanas fortes seriam suficientes para dobrar o governo – mas, sim, poder manter-se financeiramente graças ao 13º mês que os agentes da RATP recebem e ao bônus de final de ano à SNCF.

É um nível de auto-organização e de reflexão tática importante para um setor que não conheceu uma grande greve havia mais de um decênio. Esses trabalhadores mostraram que haviam aprendido com os erros do passado, mas igualmente com os erros de outros setores, como a SNCF.

Portanto, não fale de “operação tartaruga” com os agentes da RATP. Eles compreendem melhor até do que alguns ferroviários (que continuam a pensar que o problema não é a modalidade de protesto, mas o numero de adeptos), que essa estratégia é como correr o circuito Paris-Dakar com um pneu furado, onde todos ao longo da via já sabem que você não vai ganhar, mas você não.

Certamente, uma boa estratégia não substituirá jamais a necessidade de uma greve massiva, mas sem uma estratégia real, mesmo com uma greve massiva é impossível vencer. A greve que chega hoje a seu 53º dia deve-se apenas à força dos grevistas, sindicalizados ou não, graças à determinação daqueles que lutam, que decidiram se organizar, de ir aos piquetes, de construir as assembleias gerais, ir aos colégios e empresas para motivar seus colegas, seus camaradas, a fazer seus próprios fundos de greve locais, a criar, por vezes, uma associação para cuidar do dinheiro recolhido. Qualquer um que duvide que esta greve é da base, está profundamente enganado.

Vejo chegarem de longe os defensores dos balões das centrais sindicais, querendo negar o óbvio, e relembrar os panfletos, os chamados à greve ou mesmo à manifestação. Ninguém pode negar. Mas quem distribui os folhetos do sindicato? Quem os escreve, quem os confronta nas escolas, estações, canteiros de obras para convencer os funcionários mais resistentes, se não a própria base? Uma mobilização, sem os grevistas que se levantassem às quatro da manhã para às vezes fazerem piquetes por 50 dias, não existiria. Achar que basta falar meia dúzia de palavras de ordem no microfone da BFMTV ou então marcar uma data para um ato para que haja uma greve é, no mínimo, banalizar o papel da base, e pior ainda, é desrespeitar ao trabalho de campo de membros não-sindicais e ativistas, que geralmente são os únicos a pensar no futuro.

A base quer lutar, enquanto a cúpula sindical encena

Pois a verdade é que o principal problema que tivemos de enfrentar nessa greve não foi a falta de determinação dos grevistas, mas a ausência de uma estratégia para vencer, disfarçada por um discurso esquerdista e de ações de aparência radicais. Alguns dirão que “denunciar as direções sindicais, no pior dos casos divide o front, e no melhor dá ilusões aos trabalhadores”. Como se não pudéssemos fazer outra coisa além de fechar os olhos e fazer de conta que não existe direção alguma, e que a base é suficiente por si só. Podemos desviar de obstáculos, mas os obstáculos continuarão presentes, se nos abstivermos de toda batalha política. E dentro de algum tempo, os grevistas se veem privados dos recursos mais básicos para lutar.

Basta ver o exemplo de como é difícil para os grevistas mesmo encontrar um lugar para se reunir. Quem acompanha a luta desde o início e a vive, percebe que às vezes as reuniões acontecem em um teatro, um cinema, uma estação, uma prefeitura, uma associação local ... Como se houvesse sequer um sindicato local para ceder espaço aos grevistas! Para onde foram os castelos de certos sindicatos? Ignorar o papel da liderança sindical é abandonar a ferramenta para vencer a luta. Qual é a utilidade de uma organização sindical, se ela nem mesmo dispõe de seus meios para colocar todo o seu aparato a serviço da batalha, da sala de reuniões, passando pelos meios de comunicação até usar o caixa que possui para vencer a luta?

Adoram os grevistas só quando eles servem para o acúmulo de forças para negociar, e quando eles aceitam marchar nos atos das centrais, mas quando eles demandam ajuda para se organizar na base, silencio total. A CFDT possui várias dezenas de milhões de euros em caixa – entre 120 e 130 milhões segundo alguns jornalistas – destinados unicamente a seus filiados. Poderíamos ter tido mais três meses de greve se a CFDT se desse ao trabalho de disponibilizar algo que fosse um quarto dos seus recursos! Imagine por um segundo se a CFDT anunciasse doar só uma pequena parte de seus recursos, 30 milhões de euros aos grevistas. A reforma seria retirada antes mesmo que pudesse mandar um centavo, tal seria a paralisia do governo frente à massividade da greve que se anunciaria. Mas não é apenas a CFDT neste caso. Não encontrei dados referentes ao caixa das duas outras confederações que são a CGT e a FO. Porém, podemos considerar apenas um pagamento médio de 10€ por associado ao longo de um mês de cotização, sabendo que, em média, a cota varia de 20 a 30 €, o que ainda deixaria muito dinheiro para financiar os custos de gerenciamento. A CGT relata ter cerca de 650.000 membros e, de acordo com os especialistas, FO possui 350.000 membros. Isso tornaria possível pagar nada menos que 10 milhões de euros para o fundo de greve. Poderíamos adicionar a isso sindicatos como Solidaires, FSU, l’UNSA e outros.

Mas então porque não fazem isso? Porque não buscam colocar todas as suas forças na batalha, simplesmente. Deixemos de lado os discursos inflamados, a fraseologia “revolucionária”, e vejamos no terreno da luta de classes o que realmente é feito. Jamais o conjunto das centrais ["Intersindical"] chamou a greve geral. Até falam em “generalizar a greve”, lógica voluntarista, que coloca sobre cada um a responsabilidade de se organizar, como se os setores simplesmente esperassem que Martinez ou Veyrier mandassem generalizar a greve para entrarem automaticamente em greve. No papel, o dia 5 de dezembro deveria ser somente uma jornada de 24 horas, assim como o dia 12 e o dia 17. Veja só os únicos apelos à greve na metade de dezembro, enquanto os ferroviários e agentes da RATP estavam, já, em greve por tempo indeterminado. Agora, ainda, passamos de "tempos turbulentos" para "dias de ação", nunca houve uma chamada para uma greve geral. Sempre que essa pergunta central é feita à liderança sindical: "Convocam uma greve geral? ", eles tratam sistematicamente de evitar a questão, por vezes explicando que não havia botão ou fórmula mágica, mas que apelavam aos setores para lutar.

Da mesma maneira, não basta chamar a que se “generalize a greve” de modo proclamatório. A questão é saber sob que programa e palavras de ordem é possível realmente generalizar a greve. Quando pensamos nas questões que os trabalhadores do setor privado enfrentam, por exemplo, onde contratos precários, como o setor automotivo ou mesmo ameaças de demissões, se tornaram a regra, fica bem claro, para quem quer que se coloque a pergunta, que não haverá entrada massiva real desses setores na luta se essas questões não forem abordadas e se a luta não for travada para obter progresso social real. Por que um trabalhador precário da indústria automobilística, uma faxineira de uma ou outra empresa terceirizada, entraria em greve apenas para defender um sistema previdenciário que, tal como existe, não é muito benéfico para eles, se tiverem de qualquer maneira que trabalhar a vida toda para uma aposentadoria da qual provavelmente não poderão se beneficiar?

Uma falta total de preparação

Longe de se reduzir a uma questão de fórmula, este problema se traduz bastante concretamente na ausência total de preparação para uma luta frontal contra o governo. Como dizia o velho revolucionário, León Trótski, nos anos 1930 " a greve geral não é um jogo de esconde-esconde". Nesta frase, ele descreve bem, apesar da diferença temporal, a atitude das direções sindicais de hoje, para quem o problema não é tanto aquele de encontrar o "botão da greve geral", mas de nem mesmo fazer parecer o estar procurando de maneira minimamente séria. 

Entrevistado por Patrick Roger na Sud Rádio, Philippe Martinez declarou no fim de novembro, alguns dias antes do início da greve do dia 5: "podemos evitar a greve de 5 de dezembro se o governo agir". Porém, caro camarada, ninguém queria evitar o 5 de dezembro, nem o governo, nem a base. Alguns dirão que aquilo não era para evitar a greve, mas para ver se o governo poderia ceder à oferta. Quem poderia acreditar nisso por um só segundo, a não ser alguém que não sabe nada sobre a política neoliberal, ou alguém que tem medo de colocar todas as suas forças em enfrentamento ao governo?

Portanto, jamais uma greve foi tão significativamente preparada entre a base. Foram mais de três meses entre o chamado dos grevistas da RATP no dia 13 de setembro e o começo da greve 5 de dezembro. Durante esses três meses, o conjunto das organizações deveria ter preparado um fundo de greve nacional, alimentado durante toda a preparação da greve, a fim de mostrar a todos os setores, em particular o privado, que eles podem fazer greve sem terem que parar por falta de dinheiro. Como pode ser que tenha sido a CGT Infocom, um sindicato de um setor que nem está massivamente em greve, aquele que tenha se posto a organizar o único fundo nacional de solidariedade aos grevistas? Porque não são as grandes centrais tomando essa tarefa seriamente, bem no meio da greve?

Quando se discute com o agente RATP médio, que participa de sua primeira luta, ele lhe dirá: "da próxima vez, faremos fundos de greve desde o início". Como pode ser que os "profissionais da luta" burocráticos, que, no espaço de dez anos, multiplicaram as derrotas, tenham tirado menos lições do que os militantes da greve? Sei de muitos grevistas que saíram para tirar empréstimos para manter a greve. Veja em que ponto está o movimento operário, tendo que recorrer a soluções individuais para lutar.

Mas nem todos podem se endividar ou adiar o aluguel para sempre. Quantos assalariados aceitarão se endividar, quando seria suficiente liberar o dinheiro coletado pelos sindicatos, que de nada serve além de comprar bandeiras e pagar pelas impressoras. A que serve esse dinheiro se ele não serve para fazer com que a greve seja vitoriosa?

Hoje, ouvimos dos representantes sindicais que "os grevistas quiseram parar". Não, os grevistas não quiseram parar, eles queriam ter fundos suficientes para lutar, e um plano de lutas para vencer, e é a contragosto que eles retornam ao trabalho após mais de 50 dias de luta!

Aqui está, se for necessário demonstrar novamente, que existem os discursos de fachada na mídia e a realidade do terreno, a falta de preparação e o desejo de colocar todas as forças na batalha para vencer. A greve geral coloca em cena a questão do poder, mas as lideranças sindicais não querem entrar em confronto político, mas simplesmente permanecer em um papel de protesto e pressão. A reação do conjunto das direções sindicais às ações direcionadas contra a CFDT atesta isso. Para continuar com Trótski, pode-se dizer que "em seus discursos, os burocratas fazem tudo o que podem para tentar provar ao Estado - democrático - que são confiáveis e essenciais em tempos de paz, e especialmente em tempos de guerra”.

Contra a lógica dos atos intermitentes: a greve massiva e por tempo indeterminado!

Desde meados de janeiro e com o enfraquecimento da greve por razões materiais, como explicamos acima, as centrais sindicais tentam restabelecer a estratégia de dias de ato intermitentes, em vez de responder ao problema, principalmente o do dinheiro e a ausência de um plano de lutas para a generalização da greve. Como podemos, hoje, crer que será possível vencer usando paralisações de 24 horas e os dias de operação tartaruga, a cada vez que o texto parlamentar avança de um lugar a outro, após 50 dias de greve majoritária dos transportes públicos?

O que precisamos é preparar o segundo round dessa luta, coordenar todos os setores na batalha. Numerosos setores estão prontos para lutar, mas não para se colocar em operações tartaruga sem perspectiva de vitória. O conjunto dos setores que lutaram até agora estará também pronto para voltar a colocar seus esforços em uma nova greve massiva, se tiverem diante deles um plano de luta que possa vencer. Porque, apesar do refluxo da greve, existe um desejo feroz de voltar e terminar essa luta, que levamos desde 5 de dezembro, mas agora com a consciência de que pequenos golpes não bastarão. Na realidade, há muito pouca desmoralização ou sentimento de derrota entre os trabalhadores ferroviários e os agentes da RATP e, se você perguntar, os grevistas lhe dirão: "Ainda não terminamos com esta reforma". Portanto, o objetivo não é enganar-se, acreditar que você está fazendo algo e que seria melhor que nada. A dificuldade e os obstáculos devem ser respondidos com estratégia e trabalho de campo.

Esta não é uma tarefa pequena, mas os organismos de auto-organização, como a Coordenação RATP/SNCF que pôde mostrar toda sua eficácia quando a greve estava massiva nos transportes públicos, pode nos dar uma pista de como fazer emergir uma agenda alternativa àquela das centrais sindicas, rumando a um verdadeiro plano de lutas para vencer. Uma coordenação deste tipo, estendida à escala nacional e ao conjunto dos setores, poderia forçar as direções sindicais a avançarem no enfrentamento ao governo.

Seria, em todo caso, criminoso deixar o governo sair por cima desse jeito, agora que ele nunca foi tão impopular, com algumas pesquisas que mostram a população em oposição à reforma, com um medo crescente de ver as aposentadorias derreterem como neve ao sol. Temos diante de nós um governo que, apesar de todo o seu amadorismo, permanece determinado porque conta com o apoio de um bloco burguês unido e ainda pronto a defendê-lo. É quando eles têm medo de perder tudo que recuam. Será necessário mais do que pequenos ataques e operações tartaruga para isso.

Nossas forças devem ser postas com urgência nessa perspectiva, sem esquecer que no imediato, se reabre a possibilidade de uma reentrada em movimento da juventude, que pode mudar as coisas. Pois se há um coquetel explosivo que amedronta todos os governos, é o do movimento operário em greve massiva, e a juventude fechando os colégios, as faculdades e marchando às centenas de milhares ao lado dos trabalhadores.

São estas as tarefas que se impõem a nós se queremos a vitória. A luta é longa e cheia de armadilhas, mas é possível vencer. O que começou em 5 de dezembro, após um ano de movimento dos coletes amarelos, é muito mais do que uma simples greve econômica, muito mais que a história de uma reforma previdenciária, é a história da luta de classes que acontece hoje diante dos nossos olhos.




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