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EDITORIAL DO LA IZQUIERDA DIARIO DA ARGENTINA | Ajuste e anestesia

Há quase dois meses do governo de Alberto Fernández, as peculiaridades de um plano que contém, em linhas gerais, um ajuste e algumas doses de anestesia local. Editorial do “El Círculo Rojo”, programa do La Izquierda Diario transmitido todos os domingos na rádio argentina Radio Com Vos.

segunda-feira 3 de fevereiro de 2020 | Edição do dia

Dentro de algumas semanas, se completarão dois meses desde que assumiu o novo Governo. Algumas questões já podem ser decifradas sobre a nova gestão.

Primeiramente, é bom atentar-se a uma questão: se todas as medidas e a orientação econômica de Alberto Fernández, pelo menos num primeiro momento, forem comparadas com a dinâmica do macrismo tardio, sempre vão sair ganhando. Por um motivo muito simples: Macri, ao contrário do que tentou pregar em sua despedida, deixou as expectativas muito baixas. Em certa medida, essa é a percepção geral diante de um novo governo que gera certas expectativas (para além de se acreditar ou não nessas aspirações ou ilusões).

No entanto, se um governo é avaliado em função de sua realidade ou da realidade do país, conclui-se que está implementando um ajuste. Nem mesmo os representantes oficiais negam isto e o próprio Alberto Fernández reconheceu. A chamada Lei de Solidariedade Social e Reprodução Produtiva votada em dezembro quase sem nenhum processo de deliberação, ou a Lei de Restauração da Sustentabilidade da Dívida, que foi aprovada de maneira relâmpago em janeiro, foram ordenadas para que os credores privados e o FMI cheguem em uma renegociação.

As excursões presidenciais pelo exterior e os gestos no âmbito da política internacional também apontaram nesta direção: a reunião em Israel com o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, horas antes de, junto com Donald Trump, desenharem um mapa sob medida que favorecia o Estado Sionista no conflito histórico com os palestinos; os acenos favoráveis à União Europeia pelo posicionamento diante da crise permanente na Venezuela ou do assassinato seletivo de um militar iraniano de alta patente; a visita ao Papa, que, por meio de seu gabinete de imprensa, já começou a operar contra um eventual tratamento do tema da legalização do aborto na Argentina; ou a Angela Merkel, já que a Alemanha tem certo peso decisivo dentro da burocracia do FMI. Todos estes acenos de apoio ou semi-apoio (que não são gratuitos) a ofensivas reacionárias das grandes potências ou da Igreja vêm para que se tenha um respaldo no tema da dívida.

O relato oficial diz que se trata efetivamente de um ajuste, mas que recai sobre os mais ricos. Está aí a raiz do problema e a discussão:

a) Porque entre os verdadeiramente mais ricos estão os fundos de inversão e os organismos internacionais credores de uma dívida que é “odiosa” em termos reais e também jurídicos. Há toda uma jurisprudência internacional que sentencia que se pode questionar uma dívida se ambos os credores e os devedores levaram adiante a operação com plena consciência de que prejudicava o país. Isto ocorreu com a dívida argentina no geral e, particularmente, na gestão macrista. Agora se propõe renegociar o pagamento sem sequer minimamente investigá-la. Isto foi remarcado por funcionários ou referentes reconhecidos do atual governo inúmeras vezes. Claudio Lozano, sem mais, hoje funcionário do Banco Nação.

b) Os bancos e o capital financeiro não foram minimamente afetados pelas medidas contidas nestas leis enviadas pelo Executivo.

c) Diminuíram-se os impostos de determinados monopólios petroleiros e atividades como a mega-mineração que contaminou uma província inteira, como no caso de Mendonza, gozam de grandes benefícios pagando pouco ou nada.

d) Ao campo, ou melhor, aos grandes proprietários rurais novamente foram aplicados aumentos nos impostos de retenção, mas os valores logo foram reajustados ao nível dos do governo Macri, antes que fossem desvalorizados pela constante inflação. Impostos de retenção que não eram precisamente “confiscatórios”.

É verdade que foram reestabelecidas algumas medidas de regulamentação estatal (frente ao descontrole do dólar e à liberação selvagem de importações) ou se impuseram moratórias para as dívidas das Pymes (pequenas e médias empresas), medidas sociais como os “preços cuidados”, o vale- alimentação e o congelamento das tarifas por alguns meses.

Um dos eixos da chamada “Lei de Solidariedade”, porém, foi a suspensão da mobilidade previsional para trocá-la por aumentos mediante somas fixas dais quais se beneficiou, até agora, um setor minoritário de aposentados; os que recebem mais de 19 mil pesos argentinos (algo em torno de R$1.300), como disse Alejandro Bercovich, estão entre os “privilegiados”. Logo se somou o chamado do mesmo presidente à suspensão das “cláusulas gatilho” que, na realidade, é um nome generoso para a lógica revisão dos acordos salariais em cenários de inflação. Tudo isto fundamentado com um argumento que faz uma enorme concessão à lógica neoliberal: que os salários e aposentadorias são inflacionados e devem fazer parte da “desindexação” da economia. Logo foi decidido manter-se o sistema UVA dos créditos hipotecários e anular os subsídios válidos para os devedores. Tudo isto enquanto o índice de inflação se manteve em níveis similares aos dos últimos anos de Macri: entre 3 e 4% em janeiro, ainda que este não seja o número oficial.

Desta maneira, mantendo-se intocados os interesses fundamentais dos que efetivamente possuem mais, se aposta numa “redistribuição” entre setores que vão desde os trabalhadores formais (por vezes equivocadamente chamados de “classe média”), classe média e média-baixa, até os que estão em situação de pobreza extrema. Alinhar as contas públicas com essa orientação e conseguir o aval do FMI e dos credores, renegociando uma dívida que sabem que é impagável.

Isto levou Ignacio Fidanza, diretor e editorialista do portal LaPolíticaOnline, a afirmar que “nesse mar de palavras [de Alberto Fernández], se filtram doses de anestesia. Como se seu objetivo central nesta etapa fosse mais adormecer do que encantar”. Muito gráfico, pois sabe que é muito difícil gerar encantamento com estas medidas.

Os deputados da esquerda argentina (Nicolás del Caño e Romina del Plá) foram os únicos que votaram contra a negociação sob as condições propostas pela lei. Muitos comunicadores, inclusive alguns colegas da Radio Con Vos, caracterizaram as posições da esquerda dizendo que “é o que sempre propõem” e que estão de acordo com o padrão. No entanto, a defesa legítima (até mesmo com algum fundamento legal) do não pagamento da dívida não é uma militância em prol de um padrão anárquico no horizonte de possibilidades ,ou a defesa de que a responsabilidade da dívida é dos que a contraíram irresponsavelmente, pressionando para beneficiar-se apostando contra o país e dos que autorizam esses procedimentos. O não pagamento da dívida é necessário e básico, mas dentro de um plano integral a favor das grandes maiorias, que inclua a recuperação dos recursos estratégicos e dos serviços públicos, a nacionalização do sistema bancário e o comércio exterior, a investigação da dívida externa, entre muitas outras medidas. Um plano no qual efetivamente e de uma vez por todas, os ajustes sejam aplicados sobre os que mais têm.




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