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Reforma Trabalhista | Ainda o abuso das dispensas coletivas...

quarta-feira 13 de dezembro de 2017 | Edição do dia

Ouvimos falar que um suposto “idealizador” da “reforma” trabalhista teria afirmado que “se o empregador é livre para contratar cinco pessoas, tem de ser livre para dispensar cinco”.

​Não acreditamos muito na versão, de tão absurda que nos pareceu, mas resolvemos adotá-la como hipótese, até porque guarda bastante correspondência com a irracionalidade que dá base à “reforma”.

Por essa lógica, quem tem a liberdade de adquirir um automóvel teria o direito de fazer com ele o que bem entendesse, vendo-se como uma interferência indevida a imposição de limites de velocidade ou qualquer outra regra de trânsito. Ou, quem tem o direito de possuir uma arma teria o direito de sair por aí atirando. Não é porque alguém tem a liberdade de ter quantos filhos quiser, que pode se esquivar das obrigações sociais, jurídicas e humanas que decorrem da condição de ser pai ou mãe. E paremos por aqui, pois os exemples não teriam fim...

A afirmação feita, portanto, só serve para demonstrar o quanto são juridicamente impróprios os fundamentos da “reforma”, o que, inclusive, deixa o Direito do Trabalho em uma situação vexatória perante os outros ramos do Direito, já que mesmo do ponto de vista da teoria geral dos contratos, a formação do vínculo nunca se equiparou ao seu distrato, tratando-se de institutos distintos.

A propósito, mesmo a tal “liberdade de contratar” não é ilimitada, conforme preconiza o art. 421 do Código Civil: “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”.

E, regulando o distrato, estipula o mesmo Diploma civilista que “dada a natureza do contrato, uma das partes houver feito investimentos consideráveis para a sua execução, a denúncia unilateral só produzirá efeito depois de transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto dos investimentos” (art. 473, parágrafo único) – grifos nossos.

Cumpre não olvidar que no caso específico do contrato de trabalho, a contratação gera uma relação de emprego (art. 442, da CLT), o que é social e economicamente incentivado; já o distrato, que de tão grave, foi denominado, no Direito do Trabalho, despedimento, gera o desemprego, que é social e economicamente condenável.

Sendo esses os valores envolvidos, que diferenciam as situações, é evidente que o direito se move com essa mesma correspondência.

Fato é que da formação do contrato de trabalho não resultam meros “contratantes”, mas empregados e empregadores, que possuem direitos e obrigações decorrentes desse “status” jurídico. O traço distintivo da relação de emprego, por exemplo, é a subordinação, considerada a outra face da moeda do poder diretivo do empregador.

Aliás, a própria identificação da relação de emprego, verificada nos termos dos arts 2º e 3º da CLT, extrapola os limites dos termos expressos em um contrato, vez que se trata de uma questão de ordem pública.

Então, não tem o menor sentido jurídico considerar que exista uma liberdade plena seja para contratar, seja para despedir empregados; ou que empregar seja exatamente a mesma coisa que desempregar.

Vale lembrar que na sociedade capitalista a aquisição de um emprego é uma forma de sobrevivência e se insere no contexto da projeção de vida do trabalhador. A profissão, que tantas vezes depende de um emprego, é constitutiva do sujeito. O empregado, portanto, não é apenas mais um número. É uma mãe, um pai, uma filha, um filho, uma pessoa que possui várias outras relações sociais, as quais se quebram, se abalam e até se destroem diante do desemprego, ainda mais quando atinge um profissional que durante décadas se dedicou ao empreendimento em que se engajou.

Concretamente, a relação de emprego não é meramente a venda de força de trabalho, pois não há como separá-la do ser humano que a possui, daí porque o Direito do Trabalho, essencialmente, procura evitar que as necessidades dos trabalhadores e a lógica da concorrência econômica conduzam os seres humanos à condição de uma coisa.

Não foi à toa, portanto, que na Parte XIII, item 27, do Tratado de Versalhes, restou expresso, de forma inequívoca, o princípio de que “o trabalho não deve ser considerado como simples mercadoria ou artigo de comércio, mas como colaboração livre e eficaz na produção das riquezas”.

Assim, impressiona (mas ao mesmo tempo é reveladora) a forma calculista, economicista, desumana, perversa e insensível como os idealizadores da “reforma” trabalhista, acompanhados, agora, por muitos inocentes úteis ou por reprodutores conscientes dos mesmos sentimentos, tratam o sofrimento alheio que decorre do desemprego; o que se agrava por serem pessoas que, no geral, possuem empregos vitalícios ou uma condição econômica que lhes permita desdenhar o emprego.

Triste, muito triste!

Mas é mais que isso, pois, além de expressão de uma insensibilidade plena, é, igualmente, como se está demonstrando, uma aberração jurídica.

A dispensa imotivada, ainda mais coletiva, é uma enorme afronta aos mais rudimentares preceitos jurídicos, mesmo civilistas (que aqui são lembrados como meros acréscimos aos fundamentos já expressos em outro texto[i]).

Com efeito:

a) não se aceita a expulsão sumária de associado em associações (atual redação art. 57 do Código Civil);

b) não se permite a denúncia vazia, de forma plena, no contrato de locação (arts. 45-47 da Lei 8245/91);

c) a lei dos planos de saúde igualmente não aceita a denúncia vazia na vigência do contrato (art. 13 da Lei 9656/98);

d) a jurisprudência do STF tem vários precedentes enfatizando a necessidade do direito de defesa nas relações entre particulares:

“DEFESA - DEVIDO PROCESSO LEGAL - INCISO LV DO ROL DAS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS - EXAME - LEGISLAÇÃO COMUM. A intangibilidade do preceito constitucional assegurador do devido processo legal direciona ao exame da legislação comum. Daí a insubsistência da óptica segundo a qual a violência à Carta Política da República, suficiente a ensejar o conhecimento de extraordinário, há de ser direta e frontal. Caso a caso, compete ao Supremo Tribunal Federal exercer crivo sobre a matéria, distinguindo os recursos protelatórios daqueles em que versada, com procedência, a transgressão a texto constitucional, muito embora torne-se necessário, até mesmo, partir-se do que previsto na legislação comum. Entendimento diverso implica relegar à inocuidade dois princípios básicos em um Estado Democrático de Direito - o da legalidade e do devido processo legal, com a garantia da ampla defesa, sempre a pressuporem a consideração de normas estritamente legais. COOPERATIVA - EXCLUSÃO DE ASSOCIADO - CARÁTER PUNITIVO - DEVIDO PROCESSO LEGAL. Na hipótese de exclusão de associado decorrente de conduta contrária aos estatutos, impõe-se a observância ao devido processo legal, viabilizado o exercício amplo da defesa. Simples desafio do associado à assembléia geral, no que toca à exclusão, não é de molde a atrair adoção de processo sumário. Observância obrigatória do próprio estatuto da cooperativa.” (RE 158215, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, SEGUNDA TURMA, julgado em 30/04/1996, DJ 07-06-1996 PP-19830 EMENT VOL-01831-02 PP-00307 RTJ VOL-00164-02 PP-00757)

“EMENTA: SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO. I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados. II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES. A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais. III. SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. ENTIDADE QUE INTEGRA ESPAÇO PÚBLICO, AINDA QUE NÃO-ESTATAL. ATIVIDADE DE CARÁTER PÚBLICO. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL.APLICAÇÃO DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS À AMPLA DEFESA E AO CONTRADITÓRIO. As associações privadas que exercem função predominante em determinado âmbito econômico e/ou social, mantendo seus associados em relações de dependência econômica e/ou social, integram o que se pode denominar de espaço público, ainda que não-estatal. A União Brasileira de Compositores - UBC, sociedade civil sem fins lucrativos, integra a estrutura do ECAD e, portanto, assume posição privilegiada para determinar a extensão do gozo e fruição dos direitos autorais de seus associados. A exclusão de sócio do quadro social da UBC, sem qualquer garantia de ampla defesa, do contraditório, ou do devido processo constitucional, onera consideravelmente o recorrido, o qual fica impossibilitado de perceber os direitos autorais relativos à execução de suas obras. A vedação das garantias constitucionais do devido processo legal acaba por restringir a própria liberdade de exercício profissional do sócio. O caráter público da atividade exercida pela sociedade e a dependência do vínculo associativo para o exercício profissional de seus sócios legitimam, no caso concreto, a aplicação direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, CF/88). IV. RECURSO EXTRAORDINÁRIO DESPROVIDO.” (RE 201819, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Relator(a) p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 11/10/2005, DJ 27-10-2006 PP-00064 EMENT VOL-02253-04 PP-00577 RTJ VOL-00209-02 PP-00821)

e) o STJ já considerou abusiva denúncia vazia de Banco em relação ao contrato de conta bancária em relações de longo prazo:

“DIREITO DO CONSUMIDOR. CONTRATO DE CONTA-CORRENTE EM INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. ENCERRAMENTO UNILATERAL E IMOTIVADO DA CONTA.
IMPOSSIBILIDADE. 1- Não pode o banco, por simples notificação unilateral imotivada, sem apresentar motivo justo, encerrar conta-corrente antiga de longo tempo, ativa e em que mantida movimentação financeira razoável. 2 - Configurando contrato relacional ou cativo, o contrato de conta-corrente bancária de longo tempo não pode ser encerrado unilateralmente pelo banco, ainda que após notificação, sem motivação razoável, por contrariar o preceituado no art. 39, IX, do Cód. de Defesa do Consumidor. 3 - Condenação do banco à manutenção das conta-correntes dos autores. 4 - Dano moral configurado, visto que atingida a honra dos correntistas, deixando-os em situação vexatória, causadora de padecimento moral indenizável. 5 - Recurso Especial provido.” (REsp 1277762/SP, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 04/06/2013, DJe 13/08/2013)

f) o art. 720 do Código Civil exige respeito à boa-fé nas relações de trato sucessivo (contrato de agência e de distribuição) e indica a possibilidade de interferência estatal pelo Poder Judiciário para garantir o equilíbrio contratual[ii];

g) segundo o Enunciado 22 da I Jornada de Direito Civil do CJF/STJ, a “função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral que reforça o princípio de conservação do contrato, assegurando trocas úteis e justas”;

h) conforme o Enunciado 23 da I Jornada de Direito Civil do CJF/STJ, a “função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana”;

i) para o Enunciado 167 da III Jornada de Direito Civil do CJF/STF, com “o advento do Código Civil de 2002, houve forte aproximação principiológica entre esse Código e o Código de Defesa do Consumidor no que respeita à regulação contratual, uma vez que ambos são incorporadores de uma nova teoria geral dos contratos”.

O Direito como um todo, como se vê, procura evitar que uma pessoa não fique sujeita ao arbítrio da parte mais poderosa em determinadas relações sociais e se é assim para o Direito Civil e o Direito do Consumidor com muito mais razão deve ser no Direito do Trabalho, até porque é da relação de emprego que a pessoa trabalhadora extrai o seu sustento e viabiliza todas as outras suas relações sociais.

Desse modo, a tal concepção contratualista ventilada pelos defensores da Lei nº 13.467/2017 não encontra amparo do ponto de vista jurídico nem mesmo no aclamado Direito Civil. E depois de tudo já dito, seria até cansativo transcrever, ainda, o parágrafo único do art. 2035 do Código Civil.

O fato é que não se pode conceber que a parte locadora, unilateralmente e sem causa, tolha a moradia da pessoa locatária. Não se pode admitir que o plano contratado cesse, unilateralmente e sem causa, a prestação de saúde à pessoa contratante. Não se pode aceitar que a pessoa associada não tenha a oportunidade de exercer a sua defesa quando de sua exclusão da associação. Não se pode permitir que determinadas relações consumeristas e mesmo comerciais sejam rompidas unilateralmente, em desrespeito à função social dos contratos. Igualmente, não se pode consentir que, por mero exercício da vontade patronal, a pessoa trabalhadora, individual ou coletivamente, tenha sua fonte de sustento simplesmente varrida.

Afinal, ninguém defende a possibilidade de uma coletividade inteira de locatários ser sumariamente despejada de seus lares por um ou por vários locadores. Não é raro escutar ainda sobre intervenções do governo para garantir os contratos de plano de saúde ou de clientes bancários. São ainda comuns os programas de refinanciamentos das dívidas dos contribuintes.

Contudo, quando ocorrem dispensas coletivas, é criticada a atuação do Poder Judiciário voltada a garantir um mínimo de coerência no funcionamento do sistema jurídico, de efetividade dos direitos fundamentais das pessoas trabalhadores e de consideração por sua humanidade. Por outro lado, são aclamadas as intervenções judiciais que estabelece limitações às manifestações de força obreira nas greves.

É preciso romper as incoerências e as inconsistências jurídicas que, infelizmente, ainda se mantêm no âmbito das relações de trabalho no Brasil por uma questão de ignorância jurídica, mas também por uma insensibilidade que se expressa como reflexo da cultura escravista que insiste em nos assombrar e da qual decorre a enorme dificuldade de admitir que os trabalhadores e as trabalhadores são seres humanos e cidadãos.

São Paulo, 13 de dezembro de 2017.

[i]. SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. O abuso das dispensas coletivas e a reação corretiva do Direito do Trabalho. Disponível em: http://www.jorgesoutomaior.com/blog/o-abuso-das-dispensas-coletivas-e-a-reacao-corretiva-do-direito-do-trabalho
[ii]. Art. 720. Se o contrato for por tempo indeterminado, qualquer das partes poderá resolvê-lo, mediante aviso prévio de noventa dias, desde que transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto do investimento exigido do agente.
Parágrafo único. No caso de divergência entre as partes, o juiz decidirá da razoabilidade do prazo e do valor devido.




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