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DANÇA | A tragédia de todo dia coreografada

Dirigida e coreografada por Alex Neoral, a Focus companhia de dança chega ao seu aniversário de 15 anos com o espetáculo Saudade de mim, inspirado nas obras de Cândido Portinari e nas músicas de Chico Buarque.

Gabriela FarrabrásSão Paulo | @gabriela_eagle

terça-feira 7 de abril de 2015 | 00:00

FOTO Paula Kossatz/ Divulgação

"Paulo tropeçou no ar como se fosse pássaro e, talvez daí, se pôs a observar as dores, amores e tragédias em sua família. Amigo de Juca e filho de Bárbara, uma mulher submissa, e de um pai opressor, foi testemunha do amor de Pedro por Maria, sua irmã mais velha. O romance acarretaria nas tragédias pessoais de suas irmãs gêmeas Nina e Teresinha, por quem Paulo nutria um carinho especial. Como num sonho, todos apresentam suas fragilidades, forças e desejos possíveis aos seus destinos. Esperando a festa, esperando a sorte, esperando a morte, esperando o norte. Como num sonho, a hora de acordar pode ser a qualquer momento."

Essa é a sinopse do espetáculo "Saudade de mim" da Focus cia. de dança. Dirigida e coreografada por Alex Neoral, a companhia chega ao seu aniversário de 15 anos com esse espetáculo inspirado nas obras de Cândido Portinari e nas músicas de Chico Buarque.

Oito bailarinos, quatro homens e quatro mulheres – Alex Neoral, Carol Pires, Clarice Silva, Cosme Gregory, Felipe Padilha, Gabriela Leite, Marcio Jahú e Mônica Burity - pisam o chão branco do palco sob galhos secos de árvores, que flutuam, e a luz azul; o cenário é a paisagem das obras de Portinari. As roupas tem cores de terra e vestem os personagens, que são na aparência os personagens de Cândido, mas nasceram das musicas de Chico Buarque, que invade os ouvidos cantando “Amou daquela vez como se fosse a última". Os bailarinos dançam "Construção" contorcendo o corpo, caindo ao chão nos versos "E se acabou no chão feito um pacote flácido/ Agonizou no meio do passeio público/ Morreu na contramão atrapalhando o tráfego”. É o Paulo da sinopse que cai "na contramão atrapalhando o tráfego, atrapalhando o público, atrapalhando o sábado". O acidente dará a Paulo a sensibilidade de conseguir ver e sentir todas as dores de sua família; aparecendo sempre como um espectador mudo, calado e sofrido.

A primeira coreografia termina com Paulo caído no chão, a areia cai sobre ele e seu acidente é só mais um, seu corpo ferido no chão vai se escondendo por baixo da areia, que cai, cai, cai por muito tempo, até que sua família entra no palco e vê seu corpo caído no chão. Todos se aproximam do corpo, olham, desviam o olhar, se escondem um atrás do outro como se pudessem se esconder do que houve, tentam tocá-lo, mas não podem – ou são impedidos ou não conseguem coragem para isso. A primeira personagem que consegue tocá-lo é a mãe de Paulo; o toca, o coloca no colo e com a voz entrecortada de choro põe-se a cantar “À flor da pele”. Os versos engasgados: “O que será que me dá/ Que me bole por dentro, será que me dá/ Que brota à flor da pele, será que me dá/ E que me sobe às faces e me faz corar/ E que me salta aos olhos a me atraiçoar” são depois repetidos na boca de um homem e os bailarinos recomeçam a dançar. É, a partir de, então, que veremos Paulo nos revelando a crueldade do ambiente familiar em que vive.

A refeição coreografada da família, que come unida em aparência, à mesma mesa. O pai sentado em uma ponta; Paulo, o único filho homem, à outra; Maria, a filha mais velha ao lado esquerdo do pai; a mãe ao lado direito; as irmãs gêmeas uma de frente para a outra. Tudo se aparenta normal, a cena óbvia de uma família feliz, mas tudo se desmancha com o braço erguido do pai a Maria de tempo em tempo como ameaça; e ao fim da refeição, quando o pai e a mãe saem da mesa e o abuso sexual se inicia. A coreografia é forte, os bailarinos demonstram maestria em cada expressão facial e levam a plateia à catarse e ao choro. A tentativa de fuga da mãe dos braços do pai mais fortes e violentos. As filhas gêmeas a brincar e sem entender o que acontece, sem entender o próprio abuso que sofrem; Maria querendo livrar a mãe dessa violência e sofrendo a mesma violência. Aqui mãe e Maria criam um laço de afeto por compartilharem o mesmo sofrimento e não conseguirem livrar uma a outra disso. É cruel notar que todas as personagens femininas do espetáculo sofrem abuso sexual, e, ao contrário do que a própria sinopse diz, é importante não ver uma submissão nelas, mas é preciso se simpatizar com o sofrimento de cada uma e compreender o quão difícil é se revoltar contra o pai ou o marido.

Maria, vinda da música “Olha Maria”, de Chico, encontra a felicidade e o alívio das dores que tem que aguentar dentro de casa nos braços de Pedro; do amor proibido por Pedro, ao som de “João e Maria”. Vemos o riso no rosto da menina, no rosto de Pedro; eles, mais um casal a brincar entre outros casais, a conhecer a felicidade efêmera do primeiro amor, até que o pai a descobre e Maria, mais corajosa que Pedro, foge. O primeiro ato se encerra na coreografia de “Maria fugindo/ Contra a ventania” ao som de “Trocando em Miúdos”, a fuga é do pai opressor e de Pedro, que não teve a coragem de largar tudo para viver o amor deles contra tudo. Maria correndo no mesmo lugar, o vestido a dançar na ventania e o choro no rosto da bailarina, a mão levada ao peito que dói física e emocionalmente, até disparar na corrida e sair do palco por entre a plateia. As luzes do palco se apagam, as da sala se acendem para o intervalo e não são raros os rostos que se levantam com os olhos cheios d’água.

O segundo ato se inicia com a repetição da coreografia da cena da refeição, mas agora sem Maria. Pedro entra nessa coreografia e leva Nina, uma das irmãs gêmeas, irmãs mais novas de Maria, em casamento. Teresinha permanece sozinha e recebe do irmão um boneco como demonstração do carinho especial, que esse sente por ela e que se revelará mais tarde. O casamento de Nina e de Pedro não é por amor, é apenas mais um casamento por obediência a norma social. Pedro é o personagem nascido da canção “Pedro pedreiro”, que é recitada pelos bailarinos como anúncio da gravidez de Nina. Todos os bailarinos ajoelhados em posição de prece repetindo “esperando a morte, esperando a morte”. Pedro está cumprindo a vida que cabe: vir do norte em busca de trabalho, casar, procriar, trabalhar, esperar que a vida melhore, trabalhar, esperar que a condição de trabalho melhore, esperar a morte, esperar a volta para o norte, esperando o filho, que vai esperar a mudança também.

Maria volta, de cabelos curtos, emancipada, entregue sexualmente por vontade e por prazer a quem ela quiser causando choque ao pai, a Nina, que será abandonada por Pedro, que finalmente tem coragem de fugir com Maria. No segundo ato os acontecimentos se passam muito mais rápidos. O pai opressor morre e é enterrado ao som de “Funeral de um Lavrador”, a família compõe a cena ao lado da cova em que o pai é enterrado, até que a realidade se coloca e ninguém consegue manter o papel de luto que deveria cumprir; todos se põe a rir de forma nervosa, um riso de alívio. A morte os livrou do pai que os oprimia.

A fuga de Pedro com Maria desola Nina, e em uma das coreografias mais belas, duras e doloridas de se assistir, vemos Nina sofrendo um aborto. A areia, que no início da peça caía sobre o corpo de Paulo agora cai por entre as pernas de Nina, enquanto em dança seu corpo se contorce, a música “Pedaço de mim” invadindo os ouvidos da plateia na voz de Zizi Possi, até que o corpo de Nina cai e seu pai vem lhe buscar. Nina morre de abandono junto com o filho morto antes de nascer: “o revés de um parto”.

Cada personagem tem sua tragédia, suas dores e desejos contados. A última personagem que se apresenta é Teresinha, que, solitária, só tem um boneco para amar, a objetificação do seu sonho. Sua tragédia invade o palco na figura de três homens com o rosto escondido em um pano branco, que abusam de Teresinha. Outra forte coreografia, que se encerra com o palco negro e o grito da menina nos braços dos três homens que a abandonam no chão. Ela vai buscar consolo no boneco, que dança com ela, em uma dança de carinho, afeto e consolo, e que se revela ao fim da coreografia ser o irmão Paulo, que sempre zelou por ela.

A ultima coreografia traz todos os bailarinos vestidos de branco em uma festa felizes. Destoa de todos os sofrimentos que o público acompanhou até aqui; parece como se víssemos um retrato da felicidade que um dia existiu, ou como se invadisse os sonhos de paz e felicidade de todos que sofreram até aqui.

É preciso relembrar que toda a narrativa dessa obra feita nesse texto; cada dor, tragédia e opressão aberta em chaga nesse espetáculo é dançada. Conseguir, por um lado, transformar essa narrativa em dança, e, por outro, conseguir que a dança comunique essa narrativa inteira, torna a obra de Alex Neoral de uma maestria e de um fascínio surpreendentes. Mais uma vez vemos a dor transformada em arte. No fim, a inspiração da obra em Cândido Portinari e Chico Buarque, são apenas chamarizes para conseguir que o público faça fila para entrar nas salas onde o espetáculo será dançado, pois que essa historia coreografada - que é a história de tantas famílias com suas tragédias domésticas - surpreende e leva o publico muito além do figurino, cenário e musica.

O espetáculo "saudade de mim" estreou em São Paulo na galeria Olido com entrada gratuita no dia 2 de abril e fica em curtíssima temporada até o dia 12, com apresentações de quinta a sábado, às 19h, e domingo, às 20h, – retirada dos ingressos uma hora antes -, depois o espetáculo segue para outras cidades brasileiras.


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