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OPINIÃO | A teoria marxista da moeda e as políticas de quantitative easing

Um dos elementos mais controversos hoje e que mais merece uma análise e um desenvolvimento na teoria econômica marxista é a teoria da moeda. Pensada por Marx num momento em que a moeda era ou diretamente metal precioso (ouro ou prata, com predominância do primeiro) ou notas emitidas por bancos com sua convertibilidade garantida legalmente, a teoria marxista da moeda deve ser repensada a luz dos novos fenômenos, principalmente a existência da moeda inconvertível, sem lastro em ouro, e portanto sem valor imediato, que passa a ser sua forma predominante a partir de 1971, quando os EUA acabam com o padrão entre o ouro e a cotação do dólar, tal qual tinha sido estabelecido durante os acordos de Bretton-Woods, que forjaram o novo sistema e instituições financeiras após a segunda guerra mundial, agora sob hegemonia estadunidense.

sábado 17 de outubro de 2015 | 00:00

A insuficiência da formulação de Marx para explicar os principais fenômenos monetários contemporâneos tal qual expressa em suas principais obras econômicas (A Crítica da Economia Política, Os Grundrisse, os 3 volumes d’O Capital, as Teorias da Mais-Valia) aparece de forma evidente no fato de que em todas essas obras não existe um tratamento sistemático de um dos principais problemas que devem explicar os economistas na atualidade, a inflação. Isso de forma alguma invalida o pensamento econômico marxista, como tenta fazer parecer a economia vulgar, tanto em sua versão monetarista quanto em sua versão keynesiana, mas certamente coloca novos desafios para aqueles que buscam compreender os principais fenômenos da economia hoje, tarefa central para pensarmos a luta de classes. Mostra apenas que o marxismo longe de ser um dogma é um pensamento vivo e em constante ebulição, tendo sempre novamente que se desenvolver e aprofundar, em busca de explicar e ser guia para a ação frente aos novos fenômenos e acontecimentos.

Infelizmente, pelo menos ao que me parece, esse é um dos campos em que menos se desenvolveu o pensamento econômico marxista posterior a Marx. Após os brilhantes insights de Rudolf Hilferding ao pensar uma teoria da moeda sem lastro em ouro, inconvertível, em sua grande obra O Capital Financeiro (teoria incorretamente criticada de passagem por Lenin em seu Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo) e dos debates que se abriram dentro da segunda internacional entre Hilferding, Eugene Varga e Karl Kautsky em relação a moeda e sobre a inflação, as discussões pouco se aprofundaram, tanto nos teóricos da segunda internacional quanto da terceira.

Na segunda metade do século XX serão a economista francesa Suzane de Brunhoff e o dirigente trotskysta e economista belga Ernest Mandel que irão de forma mais aguda tentar refletir os novos fenômenos monetários, sem, contudo, pelo menos ao que me parece, chegar a posições conclusivas.

É evidente que esse pequeno artigo está longe de ter a pretensão de resolver problema tão complexo e com tão longa história, mas apenas ser um pequena contribuição para avivar um debate que penso necessário.

A crítica a teoria quantitativista da moeda de David Ricardo por Marx

A teoria da moeda formulada por Marx reflete o fato de uma moeda cuja substância são os metais preciosos ou diretamente ou através do papel moeda com convertibilidade legal, ou seja, cujo valor pode ser convertido legalmente na quantidade de ouro ou prata que ele diz expressar. Portanto nos tempos de Marx a moeda ou tinha diretamente um valor ou era reflexo direto e imediato de um valor efetivo (no caso do papel moeda com convertibilidade legal).

A teoria da moeda marxista, a partir disso, é construída em polêmica direta com a teoria da moeda que ganha sua formulação mais elegante com David Ricardo (seu primeiro formulador é na verdade, segundo Marx, David Hume) que ficou conhecida como teoria quantitativista.

A grosso modo e de forma vulgarizada a teoria quantitativista da moeda de Ricardo anulava a teoria do valor para essa mercadoria particular que é a moeda (grande contradição para um economista do calibre de Ricardo, que buscou explicar a maioria dos fenômenos econômicos a partir da perspectiva científica da teoria do valor) ao estabelecer que o preço dos metais preciosos, diferente de todas as outras mercadorias, era determinado pela relação entre oferta e procura dessa mercadoria específica, isso por conta do papel particular exercido por ela.

Assim, segundo a teoria de Ricardo (a grosso modo e com uma exposição vulgar) com o afluxo maior de ouro ou prata - devido a uma maior produção no caso dos países possuidores de minas, ou no caso de um superávit na balança comercial, no caso dos países sem minas - e com a consequente maior oferta de metais preciosos, com uma pletora de ouro ou prata que estivesse para além das necessidades imediatas da circulação, o preço dos metais preciosos cairia para um patamar abaixo de seu valor, o movimento contrário se dando no caso de uma oferta insuficiente de metais preciosos, que faria com que seu preço superasse seu valor.

Marx irá demonstrar como com essa concepção Ricardo entra em contradição com sua teoria do valor, o que se torna mais importante pelo fato de isso se expressar na tentativa de explicar um fenômeno tão central para o pensamento econômico quanto o valor da moeda e sua variações.

Contra a concepção quantitativista de Ricardo, portanto, Marx irá demonstrar como o valor dos metais preciosos, assim como toda outra mercadoria, está submetido a lei do valor, que por fora de algumas pequenas variações conjunturais seu preço tende a refletir seu valor. Como? No caso de um afluxo maior de metais preciosos, que exceda o montante necessário imediatamente para a circulação uma parte do ouro e prata é absorvida para cumprir outras funções para além da circulação (lembrando sempre que a circulação é apenas uma das funções da moeda, que pode funcionar também como meio de pagamento, medida de valor, tesouro e moeda mundial) como entesouramento ou para fora mesmo de seu papel como moeda, sendo absorvido para fins ornamentais ou outros afins. No caso de uma oferta deficiente de metais preciosos, em que a demanda exceda a oferta e em que falte a quantidade necessária de metais para cumprir a função de fazer as mercadorias circularem ouro e prata afluem novamente dos lugares onde estavam entesourados ou deixam a forma de ornamento para voltarem à circulação.

Como vemos toda a lógica com que pensa Marx o fenômeno monetário parte do pressuposto de uma moeda com valor efetivo, cuja substancia reflete em seu preço a quantidade de trabalho social necessário para sua produção. Mesmo quando trata de bilhetes com curso forçado emitidos por bancos esses tem sua convertibilidade em ouro garantida legalmente, ou seja, refletem de forma direta e imediata o valor da mercadoria expressa em sua face. Mesmo nos poucos momentos na Crítica da Economia Política e dos Grundrisse em que trata da moeda inconvertível a trata como um fenômeno marginal, quase folclórico, como na crítica do bônus-trabalho pensado pelos phroudonianos, que seria signo imediato de uma determinada quantidade de valor.

Como então pensar uma teoria da moeda inconvertível, sem lastro, a partir da teoria do valor trabalho?

Hilferding e as primeiras reflexões sobre uma teoria da moeda inconvertível e sem lastro

O primeiro economista marxista posterior a Marx a tentar desenvolver e explicar os novos fenômenos monetários que começavam a se expressar na Europa no começo da nova fase imperialista do capitalismo será o austríaco Rudolf Hilferding em seu brilhante livro O Capital Financeiro (o própria Lenin o caracterizará como praticamente uma continuação d’O Capital).

Segundo o austríaco a moeda inconvertível sem lastro não reflete o valor de uma mercadoria particular, como o ouro, mas é reflexo simbólico do valor do conjunto das mercadorias, dividido pela velocidade de circulação, posto que cada unidade monetária particular podia cumprir seu papel como moeda várias vezes num dado período de tempo. A essa função denominou valor socialmente necessários da moeda.

A tese de Hilferding sobre a possibilidade de uma moeda inconvertível e sem lastro será combatida por Karl Kautsky, então principal referência teórica da segunda internacional, com todo o dogmatismo que era peculiar a esse autor. Fazendo referência de forma mecânica a teoria da moeda tal qual formulada por Marx, Kautsky irá negar a possibilidade de uma moeda inconvertível, postulando que necessariamente a moeda dentro do capitalismo, como mercadoria que era, necessita ter ou diretamente um valor ou refletir de forma ideal um valor, ter um lastro.

Dado o fato de que naquele momento histórico a moeda inconvertível ainda não era o fenômeno predominante, pelo contrário, os países capitalistas centrais ainda tinham suas moedas lastreadas em ouro, a teoria de Hilferding sobre a moeda teve pouca influência, sendo criticada mesmo por aqueles que reconheciam o grande valor de sua obra sobre o capital financeiro, como Lenin. Será a partir da segunda metade do século XX, principalmente depois de 1971, que a moeda inconvertível será transformada em norma sob o capitalismo e as reflexões feitas pelo economista austríaco ganham, aí, nova vitalidade.

A teoria de Hilferding como base para a explicação do fenômeno inflacionário

A teoria da moeda tal qual formulada por Hilferding será base para a explicação marxista para o fenômeno que passará a ser constante nas economias capitalistas do pós-segunda guerra mundial, a inflação.

Isso porque a teoria do austríaco irá mostrar como a perspectiva quantitativista rejeitada por Marx no caso de uma moeda com valor intrínseco é reabilitada no caso de uma moeda sem valor, que é puro signo de valor, como passa a ser predominante no capitalismo a partir da década de 70.

Como exposto anteriormente, o preço da moeda (pois não é possível falar em valor aqui) inconvertível, que é puro signo de valor, é dado por seu valor socialmente necessário, ou seja, o reflexo do valor agregado do conjunto das mercadorias dividido pela velocidade da circulação da moeda; dado esse preço da moeda em um momento específico se o estado, através de seu banco central (órgão responsável pela emissão da moeda), emite um montante desses signos de valor que esteja para além das necessidades imediatas da circulação de mercadorias o preço da moeda tende a se deprimir, a cair, frente ao preço das mercadorias e frente a seu próprio preço anterior, causando assim a inflação de preços, ou seja, a depreciação do preço da moeda frente as mercadorias.

Mas porque seria interessante para o estado capitalista emitir uma quantidade de moeda que supere o montante necessário à circulação imediata das mercadorias (posto que é evidente que com seus vários meios técnicos essa emissão maior que a necessária não é fruto de um puro erro de cálculo)?

Porque essa depreciação do preço da moeda frente ao preço agregado das mercadorias não se dá de forma imediata, mas é necessário que o novo montante emitido percorra todo o circuito da circulação até que seja percebida a nova relação entre moeda e mercadorias, o novo valor socialmente necessário da moeda, o que permite por um tempo ao estado criar para si uma demanda artificial, totalmente sem lastro em nenhum novo valor efetivo, se apropriando assim sem contrapartida de uma parte maior do valor efetivamente criado pela sociedade, obviamente maior parte disso apropriado em relação ao proletariado.

O papel do dólar na relação entre as moedas no mercado mundial

A existência de um novo tipo de moeda, sem valor intrínseco, cria uma novo complicação econômica; enquanto no caso da moeda que era efetivamente uma mercadoria, com um valor próprio, a relação de troca entre os produtos era garantida pelo fato de que ambos eram imediatamente expressão de uma determinada quantidade de trabalho socialmente necessário, com a nova moeda inconvertível o que garante que aquele determinado signo contém efetivamente o valor que diz possuir?

Dentro de um determinado país essa garantia é dada pela legitimidade política do estado e em última instância pela força, pela capacidade de o estado impor suas diretrizes ao conjunto da sociedade.

Mas e nas trocas e relações comerciais entre diferentes países, onde não existe um superestado capaz de impor a aceitação de determinado signo e garantir que ele é expressão efetiva de uma quantidade específica de valor?

Após a segunda guerra mundial foi necessária a construção de toda uma nova estrutura financeira, de novas instituições e mecanismos (como o FMI, o Banco Mundial) que garantissem estabilidade ao comércio e as finanças internacionalmente, agora sob hegemonia estadunidense. Dentro dessa nova configuração econômica foi dado ao dólar predominância frente as outras moedas. Num primeiro momento essa predominância do dólar era dada por uma relação imediata com uma dada quantidade de ouro, x dólares correspondendo a y de ouro, com as outras moedas estabelecendo sua cotação, a partir daí, em dólar, tendo como base essa relação estável entre o dólar e o ouro.

Essa relação garantida por acordos internacionais entre o dólar e o ouro e o papel do dólar como moeda universal, no entanto, permitiu ao governo estadunidense emitir uma quantidade de moeda que estava para além da relação concreta entre suas reservas de ouro e a potência de sua economia, mais ou menos como fazem os estados nacionais quando emitem moeda para gerar uma demanda artificial dentro de seu espaço econômico. O papel hegemônico dos Estados Unidos, porém, permitiu que o país desvalorizasse de forma unilateral sua moeda, fazendo com que todos aqueles que tinham parte de suas reservas em dólar de uma hora pra outra vissem essas suas reservas se desvalorizarem (exemplo, se você tem reservas em dólar correspondentes a 100 x em ouro e o dólar se desvaloriza em 50% suas reservas em ouro passam a corresponder a 50 x).

O que garante, nesse sentido, o dólar como simbolo de uma determinada quantidade de valor internacionalmente é o papel hegemônico dos Estados Unidos nas relações internacionais, sua capacidade de impor que sua moeda como signo de valor que deve ser aceita como expressando efetivamente aquela determinada soma de valores. Se num primeiro momento, após os acordos em Bretton-Woods essa capacidade era dada pela enorme preponderância econômica estadunidense com a perda dessa liderança incontestável cada vez mais essa imposição do dólar como signo de valor internacional se dá ou pela incapacidade de outros países de construírem circuitos financeiros alternativos ou diretamente pela força, dada a ainda inconteste fortaleza militar estadunidense.

A teoria da moeda e as políticas de quantitative easing

A política monetária conhecida como quantitative easing (a emissão de dólares e bônus do tesouro dos EUA) foi pensada pelo FED (banco central dos Estados Unidos) como forma de combater a recessão e injetar liquidez na economia. Foi essa a política que garantiu uma relativa e débil recuperação da economia estadunidense após um momento mais marcado de queda com a quebra do Lemhan Brothers.

A emissão massiva de liquidez na economia mundial (posto que a emissão de dólares e bônus do tesouro dos EUA se reflete na economia do mundo todo, dado o papel de moeda universal cumprido pelo dólar) permitiu uma recuperação relativa do país, posto que permite aos estadunidenses financiarem o déficit em sua balança comercial, lhes permite um sobreconsumo, que está para além das capacidades efetivas de sua economia, permite a criação de uma demanda artificial no país, dado que os novos signos de valor emitidos não tem correspondência em efetivos novos valores produzidos, mas são antes signos artificiais e ilusórios, uma espécie de capital fictício emitido pelo banco central estadunidense.

A partir disso duas perguntas se impõe: porque os outros os países aceitam essa nova injeção de liquidez sem lastro efetivo em novos valores imposta pelos EUA, que permite a esse país viver e consumir as expensas da produção dos outros países dentro da economia mundial? Como essa emissão massiva de dólar não criou uma forte pressão inflacionária dentro dos EUA?

A primeira questão é respondida pelo papel hegemônico que ainda mantém os EUA, apesar de sua crise de hegemonia, pelo fato de todo o circuito financeiro e suas instituições terem como centro os estadunidenses, pela própria supremacia militar do país, que lhe permite, em última instância, impor a aceitação do valor de sua moeda tal qual emitido, através da mediação da imposição de uma determinada estrutura financeira e comercial.

Esse papel central que ocupa o dólar nas relações comerciais internacionais, cumprindo o papel de moeda universal antes ocupado pelo ouro, permite ao FED emitir moeda e impor sua aceitação pelo valor que essa moeda diz expressar, sem um correlato efetivo em valores reais, o que permite o sobre-consumo estadunidense e o papel de rentista e consumidor em última instância ocupado pelo país atualmente.

A segunda questão está imediatamente ligada a primeira: pelo fato de os EUA conseguirem impor a aceitação de sua moeda com o valor que ela diz possuir, sem um correlato efetivo em novos valores produzidos, dada a aceitação do dólar como moeda universal nas relações comerciais internacionais, os estadunidenses conseguem exportar, por assim dizer, as pressões inflacionárias que poderiam existir dentro de sua economia para as economias periféricas e dependentes. O valor socialmente necessário da moeda, tal qual formulado por Hilferding, não é determinado apenas pela relação entre a moeda nacional e os valores produzidos dentro do espaço econômico de um país específico, mas pelas relações estabelecidas entre as diferentes moedas na economia mundial; esse fator se agudiza frente a relações de câmbio flutuantes, como são as que predominam entre as diferentes moedas hoje.

Assim, através das políticas de quantitative easing os EUA conseguem tanto financiar seu déficit comercial e seu sobre-consumo quanto exportar a pressão inflacionária existente em sua economia para outros países, principalmente os países semi-coloniais.

As contradições dessa política e as possibilidades de futuros conflitos

Logo após o estouro da presente crise, com a quebra do Lemhan Brothers, o ex-secretário do tesouro estadunidense Larry Summers se questionou em entrevista: -"Por quanto tempo será possível que o mair devedor mundial continue a ser o país hegemônico?". Summers expressava assim uma das grandes contradições da posição geopolítica ocupada pelos EUA hoje. Se ainda é possível aos estadunidenses impor seu papel como país "rentista"e consumidor em última instância, financiando seu crescente déficit comercial com a emissão de moeda que cada vez mais ganha um caráter fictício, isso se dá pelo fato de que todos os principais circuitos financeiros ainda estão centrados no país e por sua grande superioridade militar, que lhe permite impor uma ordem mundial que lhe seja favorável.

Já a construção pela China de circuitos financeiros alternativos é uma busca de romper com essa situação contraditória, de financiamento sem correspondência à economia estadunidense. Quanto tempo demorará mais para que outros países se coloquem mais agudamente contra essa imposição estadunidense? Aqui podem estar as bases de conflitos mais agudos fruto da crise internacional.




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