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A precarização da educação no governo Bolsonaro: Por que enfrentar o novo ensino médio?

Flávia Telles

Ilustração: Alice Cauma

A precarização da educação no governo Bolsonaro: Por que enfrentar o novo ensino médio?

Flávia Telles

Texto originalmente apresentado no mini-curso “A precarização da educação no governo Bolsonaro: porque enfrentar o novo ensino médio?” da Semana de Educação da Faculdade de Educação da Unicamp, em 19 de outubro de 2021.

Propomos esse mini-curso como parte da Semana de Educação da FE-Unicamp, porque é muito fundamental a aliança entre a juventude, os professores, e os trabalhadores em geral que busque romper o abismo que infelizmente existe entre a escola pública e a universidade pública. Há profundas transformações operando na educação a partir da escola pública, e mais especificamente em São Paulo. A partir da nossa própria experiência, e comparativamente com outros estados, é possível dizer que São Paulo é hoje a experiência mais avançada de implementação da reforma do ensino médio, então é possível tirar conclusões maiores já desse processo que vem avançando em todo o país e é preciso pensar suas consequências, a relação com os planos do próprio governo Bolsonaro e o sentido que tem esse governo para a educação, e por fim porque é necessário e como é possível enfrentar essa implementação do novo ensino médio.

Há toda uma gama de intelectuais da educação que vem se opondo e produzindo conteúdo sobre os significados da reforma do ensino médio, e aqui vou utilizar alguns deles para contribuir com uma reflexão mais geral sobre suas consequências. Intelectuais tais como: Luiz Carlos Freitas, Evaldo Pioli, Carol Catini, Mauro Sala, Fernando Cássio e Débora Goulart. Também quero apresentar as experiências dos professores da rede pública que estão vendo de perto essas transformações.

1. Aprovação: A urgência da Reforma do Ensino Médio para dar o pontapé da “obra do golpe”

Em primeiro lugar, queria desenvolver o momento da aprovação da reforma do ensino médio, que ocorreu no pre-governo Bolsonaro. É importante salientar que o ensino médio no Brasil não é universalizado, o que eu quero dizer com isso, é que o ensino médio não é para todos. No Anuário da Educação Básica no Brasil de 2021, comparado ao ensino fundamental, é possível ver que se no ano de 2020, o acesso ao ensino fundamental estava colocado para 98% dos jovens no Brasil, no ensino médio esse número cai para cerca de 70%. Isso, só em relação ao acesso, sem falar na evasão durante o ensino médio e na própria visão que se tem de que o ensino médio é mais desinteressante, que está fadado ao fracasso. Fernando Cássio aponta que como no documentário “Nunca me sonharam”, que inclusive foi encomendado pelo Instituto Unibanco, existe uma forma interessada de reafirmar essa desilusão e falta de interesse da juventude do ensino médio na escola pública.

Portanto, a reforma do ensino médio parte de uma constatação de que o ensino médio é um fracasso no país, e há toda uma operação para reafirmar isso a todo tempo. E longe de buscar soluções para esses problemas, essa constatação é usada para fortalecer um sentido de reforma e mudança que busca aligeirar a formação da juventude, falando “ó, vamos fazer um ensino médio mais atrativo”, se ligando totalmente às necessidades do mercado precário de trabalho. E há uma pressão antiga por reformas educacionais, tanto do campo mais progressista ligado aos sindicatos da educação e intelectuais, e por outro lado há reformas que buscam dar um sentido mais fortemente neoliberal para a educação de conjunto e em especial para o ensino médio.

Em 2012, a partir de uma articulação do deputado federal Reginaldo Lopes, do PT de Minas Gerais, foi criada uma comissão na câmara dos deputados para se debruçar sobre os problemas do ensino médio e em 2013 essa comissão prepara um projeto de Lei, 6840 de 2013, que vai encontrar muitas críticas dos setores ligados aos sindicatos, e por conta também das próprias crises que veio vivendo ali o governo do PT, não se desenvolveu numa proposta mais concreta, mas ali já continha a ideia de uma separação entre uma formação curricular básica, e uma formação mais específica, menos generalista, que vai se desenvolver depois na nova BNCC.

Em 2016, nós temos o que chamamos de golpe institucional, que se consolida com a entrada de Temer na presidência no dia 31 de agosto, e a MP 746 da reforma do ensino médio é aplicada no dia 22 de setembro. Em menos de um mês da entrada do Temer na presidência e como medida provisória, nós temos uma proposta de reforma do ensino médio. É importante salientar isso porque ser uma MP expressa que é uma demanda urgente do governo e que veio totalmente de cima para baixo, mostrando o nível maior de autoritarismo que esse momento vai inaugurar. Não sem resistência, já que nesse mesmo período, estudantes secundaristas vão ocupar aos milhares as escolas públicas contra a reforma e outros ataques.

Mas porque foi tão urgente aplicar a reforma? O contexto social desse momento e que inclusive leva ao golpe institucional é de profunda crise econômica e política no país, em que há uma pressão internacional da crise capitalista aberta em 2008 para que se aplique reformas, ainda maiores do que as que vinham se colocando nos governos do PT, e que busquem precarizar as condições de trabalho da população, já que um elemento central do que alguns autores vão chamar de uma nova fase de reestruturação produtiva do capital, é justamente a flexibilização das condições de trabalho. Segundo o professor Ricardo Antunes, trabalho digital, autogestão e expropriação da vida são elementos constituintes centrais de uma nova morfologia do trabalho de um sistema capitalista em crise há mais de uma década. Aqui se aprofundam os mecanismos usados pelo capitalismo para extrair cada vez mais mais-valor, com novas formas de explorar o trabalho: trabalho zero hora, voucher, uberização, intermitência, tudo com uma forte dimensão de gênero e também racial, já que estamos no maior país negro fora da África e onde as mulheres negras ocupam os piores postos de trabalho.

E aí é importante pensar, a partir de uma visão marxista, na relação entre mundo do trabalho e educação, porque a educação é parte fundamental do que compõe a formação da força de trabalho. Para que se diminua o valor da força de trabalho para o capitalista, justamente como parte dessa reestruturação produtiva, você também precisa diminuir o valor da formação educacional. Ou seja, se há uma necessidade de precarizar as condições de trabalho, precisa precarizar também as condições da educação que constitui a força de trabalho. Portanto, assim é possível compreender porque a reforma do ensino médio foi a primeira reforma pós-golpe, imediata, para expressar que o Temer não entrava na presidência para qualquer coisa, mas para de fato reestruturar a educação para também reestruturar o trabalho. Logo depois da reforma do ensino médio, também vem a reforma trabalhista, a PEC que congela os investimentos em serviços públicos em 20 anos, e a reforma da previdência que só foi aprovada no governo Bolsonaro.

Portanto, a gente pode aqui dizer que a reforma do ensino médio não responde a uma necessidade do jovem que agora, segundo o governo, é “protagonista”, não responde às necessidades do professor, da comunidade escolar, ela responde a uma necessidade da crise capitalista, das transformações do mundo do trabalho e portanto à ideia de que é preciso baratear a formação educacional. Por isso, é preciso ter em mente sempre que analisar e pensar a reforma do ensino médio é ver que ela está ligada a uma série de outras reformas, como a previdência, trabalhista, e também hoje a tentativa de aplicar a reforma administrativa que busca restringir os direitos dos servidores públicos, como foi a votação da PLC 26 de Doria em São Paulo.

2: Governo Bolsonaro: Reformadores empresariais e os fundamentalistas do Escola sem partido, todos juntos pela “Universidade para poucos”

O governo Bolsonaro, não é novidade para ninguém, sempre foi um inimigo declarado da educação pública, porque ele vem justamente na esteira dos ataques que vieram se colocando já no governo Temer. E os estudantes sabem bem disso e protagonizaram enfrentamentos importantes ao governo desde seu início. Para além dos cortes orçamentários na educação, que alcançaram a casa dos bilhões no governo, e recentemente vimos os cortes da pesquisa chegando a 92% do orçamento, existe uma disputa que eu queria tratar aqui porque ela marca os conflitos da educação que vai se desenvolver nesse governo.

Antes mesmo do governo se consolidar, era possível dizer que existe uma ala de reformadores da educação que se liga aos interesses do mercado, aos interesses econômicos dos grandes capitalistas da educação e por isso pressiona a reformas que vão nesse sentido e uma outra ala que sem deixar de se ligar aos interesses capitalistas, é mais ideológica, fundamentalista, de acordo com o projeto mais ligado ao próprio Bolsonaro de avanço de pautas conservadoras e autoritárias. Não à toa no pós-golpe, antes mesmo do governo Bolsonaro se consolidar, se retoma, por via da ala mais ideológica, os debates do Projeto do Escola sem Partido, e junto dele um movimento concreto de assédio nas escolas.

Então, essas duas alas disputaram as prioridades de pautas também no interior do governo antes mesmo dele começar. Mas é importante pensar que apesar de serem alas que disputam entre si as pautas, os ritmos e o conteúdo dos ataques, elas vão se ligar fortemente, e se unificam à medida que precisam fazer passar também aqueles ataques que consideram fundamentais à educação. A reforma do ensino médio é um deles. Então, por exemplo, nós vivemos nos últimos anos um MEC que contou com ministros como Ricardo Vélez, Abraham Weintraub e Milton Ribeiro.

Ricardo Vélez é o ministro que dizia “As universidades devem ficar reservadas para uma elite intelectual, a ideia de uma universidade para todos não existe”.

Weintraub dispensa apresentações, mas é quem cunhou a ideia de que a universidade é uma balbúrdia, que os estudantes plantam maconha nela. E que é profundamente racista e machista, dizendo que não tem isso de povo negro, povo indígena, é tudo povo brasileiro.

E Milton Ribeiro é o pastor que recentemente disse que a "universidade deveria, na verdade, ser para poucos, nesse sentido de ser útil à sociedade", quase repetindo a fala anterior do Vélez, e que constantemente faz ataques às pessoas com necessidades especiais, dizendo que elas atrapalham a educação.

O que eu quero dizer com isso, é que facilmente esses ministros poderiam ser identificados como parte da ala mais olavista, ideológica, fundamentalista do governo. Mas é fundamental entender que eles também se ligam aos reformadores nos planos mais concretos de ataques, e hoje são parte da implementação da reforma do ensino médio, que se foi imposta com um golpe, inicia sua implementação com um governo ultrarreacionário de Bolsonaro.

A ideia de que a universidade é para poucos, e por isso o ataque ideológico a ela, que podemos ver fortemente com todos os ministros, é uma ideia chave para a implementação da reforma do ensino médio. Porque nós como educadores dizemos há muito tempo que no interior da educação pública existe uma dualidade, que é o fato de que alguns poucos podem prosseguir seus estudos durante todo o ensino escolar e depois ter como perspectiva o prosseguimento desse estudo no ensino superior, e uma parte considerável vai desde cedo interromper esse processo e vai trabalhar imediatamente após a escola ou mesmo durante o ensino escolar.

A reforma do ensino médio busca aprofundar essa dualidade e colocar a ideia de que a universidade é para poucos não só no imaginário da juventude, mas no interior do currículo escolar, fazendo aquele estudante do 9º ano, que tem 15 anos de idade, já decidir se ele vai ter alguma perspectiva de prosseguir os estudos ou se ele já decide que vai pro mercado precário de trabalho. E no país onde o desemprego chega a 14,7% da população, onde as pessoas disputam a fila do osso e buscam comida no caminhão de lixo. Qual será a “decisão” desse jovem, senão já uma formação que o leva para a possibilidade de um trabalho, ainda que precário? Inclusive, a reforma do ensino médio coloca ao jovem fortemente uma ilusão de que se formando em cursos de baixa profissionalização, ele automaticamente vai conseguir um emprego, o que sabemos muito bem que não é verdade.

Portanto, pensar o governo Bolsonaro e a reforma do ensino médio é pensar que ainda que existam disputas sobre os rumos das medidas educacionais, todos os setores, dos reformadores empresariais aos fundamentalistas religiosos, defendem os ataques essenciais dos capitalistas para a educação, e nesse sentido a reforma do ensino médio é um exemplo. Por isso, foi recentemente com o ministro pastor Milton Ribeiro que foi anunciado o cronograma de implementação da reforma do ensino médio em todo o país, em que no mesmo anúncio ele também diz: “Não admito questões de gênero em livros didáticos”, conectando a ala ideológica e a ala reformadora.

E é por isso também que o principal exemplo de implementação da reforma do ensino médio vai vir do Dória, que se diz contrário ao Bolsonaro, mas também quando o assunto é reformas e ataques à educação e ao trabalho vai concordar em toda a linha com o governo. Ou como o próprio Doria é um defensor das escolas militares, que vai se ligar ao próprio bolsonarismo e ao exército como pilar do seu governo. E assim, podemos ver também outros setores que são parte do Estado, como judiciário e Congresso, que apesar das inúmeras disputas, concordam com a reforma administrativa, a reforma do ensino médio e as privatizações por exemplo.

3. O que é o novo ensino médio? O caso de São Paulo

Dito isso, eu queria entrar nos exemplos mais concretos do que é de fato a reforma do ensino médio. Como ela se materializa?

A ideia da reforma do ensino médio parte de uma divisão entre uma base comum, que todos os estudantes devem ter, que são as disciplinas que nós conhecemos, como português, matemática, história, geografia, inglês, educação física, sociologia, filosofia, arte, e uma outra parte de formação específica. Então, parece uma coisa muito positiva, como é possível ver na propaganda do governo, porque na aparência ela mantém uma formação geral, mas que se complementa com uma formação específica. Mas é assim na realidade?

Não é assim, porque ela não complementa a formação geral básica, ela na verdade opera um esvaziamento de conteúdo da formação geral básica. E aqui é importante alertar, que a reforma do ensino médio não vai diminuir apenas a carga horária da formação de filosofia, sociologia, artes e educação física, na verdade ela diminui a formação e a carga horária básica de todas as disciplinas que nós conhecemos. Anterior à reforma do ensino médio, o que nós tínhamos era uma formação geral básica de 800 horas no 1º ano do ensino médio, 800 horas no segundo, e 800 horas no terceiro, totalizando 2400 horas de formação geral básica, que é a BNCC, a Base nacional comum curricular.

Com a reforma essa carga horária diminui drasticamente, levando a que a formação geral básica seja de ATÉ, ou seja, no máximo, 1800 horas, o restante é complementado com os chamados itinerários formativos, que são a combinação das diferente áreas do conhecimento, então ciências humanas, ciências da natureza, matemática e linguagem, mais a formação técnica e profissional.

Então, o estudante vai fazer uma formação geral básica que é muito mais enxuta, e aulas que são parte desse itinerário formativo que são mais especializadas na área de conhecimento que ele “escolheu”. E daí o que parece específico, é também muito precário, porque o estudante vai ter uma formação básica mais enxuta, no ensino médio já precário, para ele se especializar em conteúdos que deveria ser parte da formação básica, e com professores que não necessariamente vão ter uma formação adequada para aquilo.

O professor Fernando Cássio, da UFABC dá um bom exemplo disso, ele diz que as aulas por exemplo que poderiam ser de redação, e que seriam dadas pelo professor de português, aparece na reforma lá no itinerário de linguagens e ciências humanas, com uma cara nova, de “oficina de redação jornalística" por exemplo, e agora pode ser dada por todos os professores da área de linguagens e ciências humanas. Ou seja, dilui a formação do professor, ao mesmo tempo que também precariza a formação dos estudantes, porque somente aqueles que escolheram esse itinerário vão ter acesso a esse conteúdo. É o que ele e a professora Débora Goulart, vão chamar de gourmetização do currículo.

Vamos ao exemplo de SP. Em São Paulo, o governo Doria conseguiu antecipar a lógica dos itinerários formativos, porque desde 2019, além das aulas da formação básica, os estudantes ainda têm as aulas do INOVA, que são as aulas de projeto de vida, eletiva e tecnologia.

O Inova é um programa, firmado em parceria com o Instituto Ayrton Senna, que na prática antecipa em geral os itinerários formativos da reforma do ensino médio também para o ensino fundamental. São aulas de projeto de vida, tecnologia e eletivas que são parte do currículo dos alunos e buscam aprofundar ainda mais a inserção da lógica empresarial de gestão e meritocracia, focada em habilidades socioemocionais que atendem aos interesses do mercado e do capitalismo em crise. E aqui podemos pensar no exemplo das aulas de projeto de vida, como diz Ana Carolina Fulfaro, “o currículo é composto por uma noção de que a escola tem que ajudar a formar a personalidade dos estudantes para que estes se adaptem às exigências de competição do mercado. Uma visão individualista e meritocrática que coloca para a escola lidar com as especificidades dos estudantes, transmitindo para eles que basta acreditar e se esforçar em seu “projeto de vida” para superar as dificuldades e alcançar o sucesso.”

Ou também como diz o professor Luiz Carlos Freitas: “A ênfase recente em ensinar na escola as tais habilidades socioemocionais às crianças, entre elas a resiliência, tem a ver com esta preocupação de que os jovens vão se enfrentar com a precarização e com as instabilidades e incertezas no mundo do trabalho, por um lado. Por outro, tem a ver com o grau em que a juventude de um país possui as competências para “aceitar” estas novas formas de organização do trabalho. Isso, junto a outras variáveis, orienta investimentos.”

A ideia de ampliação de uma lógica mercadológica do ensino está presente também no fato de que recentemente foi aprovado no Senado projeto de autoria de Kátia Abreu, que coloca "empreendedorismo" e "inovação" nos currículos da educação básica e superior de todo o país. E aqui é importante pensar inclusive na pedagogia, reformas curriculares.

E aqui também chamo atenção de que há outro programa desenvolvido pelo governo Doria, o Novotec, que antecipa o itinerário que mais interessa à reforma, o itinerário de formação técnica e profissional. Se tomamos ele como exemplo das tendências colocadas ao ensino médio, veremos que o objetivo desse programa que diz “trazer opções de cursos técnicos e profissionalizantes gratuitas aos estudantes do ensino médio” é na verdade oferecer um treinamento ao trabalho precário que substitui desde já a formação básica do estudante, é o que Mauro Sala e Evaldo Piolli chamaram de dualidade da dualidade.

O Novotec está longíssimo da falácia de que irá oferecer oportunidade de formação técnica profissional de qualidade, o programa é fatiado em 4 tipos, em que a maior parcela é destinada a cursos profissionalizantes de até 200 horas, com grande parte em modalidade em EAD e com parcerias privadas, avançando na precarização e privatização do ensino. Um exemplo é que um dos cursos oferecidos é o de operador de telemarketing, um trabalho que se tornou cada vez mais precário na pandemia, e que agora desde a escola os estudantes poderão receber treinamento para ele, como parte da carga horária do ensino médio. Além disso, o governo Doria quer que 30% da rede esteja no Novotec, o que mostra que é o principal itinerário formativo do currículo. Portanto, o itinerário de formação técnica e profissional não significa cursos técnicos, como é possível ver nos poucos Ifs, ou etecs, significa uma formação profissional rápida e de baixíssima qualidade, que será constituinte do ensino médio.

O governo também atacou recentemente a educação através da imposição autoritária do Programa Ensino Integral (PEI), que também está presente na reforma do Ensino Médio. O PEI longe de trazer qualidade à educação de conjunto, como parece ser uma escola integral, é na verdade uma forma de aprofundar as desigualdades e estratificação entre escolas e para servir de modelo e propaganda ao governo, alçando algumas escolas que terão mais qualidade, com resultados favoráveis nos índices em base a forte pressão aos professores, mas tendo por baixo uma rede altamente precarizada.

Além disso, há em torno da PEI uma enorme exclusão daqueles estudantes que por diversos motivos, como a necessidade de trabalhar, não poderão frequentar essas escolas em tempo integral, já que na prática a PEI fecha os noturnos e fazem os estudantes migrarem para outras escolas onde possam concluir os seus estudos.
A reforma do ensino médio já expressava uma tendência em curso de aprofundar o ensino à distância na educação básica, autorizando até 20% do diurno em EAD, 30% do noturno e 80% do EJA. Mas a pandemia acelera os projetos de precarização da educação e os empresários da educação veem a oportunidade de lucrar ainda mais, como disse o próprio Jorge Paulo Lemann: “O que eu mais gosto, francamente, é que toda crise é cheia de oportunidades".
Que oportunidades são essas senão empurrar o ensino à distância aos professores e estudantes, sem dar mínimas condições materiais para isso, e tentar usar da pandemia como forma de impor de uma vez por todas o EAD como parte permanente do ensino regular e privatizar em parte o funcionamento da educação pública. Esse é o projeto de fundo do ensino à distância e já estamos observando hoje o fechamento de salas, em especial do EJA, como expressão desse processo. Todas essas tendências são possíveis de serem vistas claramente na nova matriz curricular da SEDUC, lançada há poucas semanas.

Analisando essa matriz é possível ter noção das profundas transformações de que estamos falando. Em todas as disciplinas básicas há diminuição da carga horária, as aulas de Português e Matemática por exemplo serão 5 no primeiro ano, 3 no segundo ano e 2 no terceiro ano, as demais também sofrem com diminuição. E tudo que está escrito “contraturno” são disciplinas que tem a possibilidade de serem dadas via Centro de Mídia de São Paulo, o CMSP, e elas são ainda maiores no ensino noturno, ou seja, é a expansão clara do EAD no currículo escolar que já vinha sendo colocada pelo projeto do novo ensino médio e se acelerou na pandemia e vão atacar sobretudo a juventude trabalhadora, essa que já está lidando com os fechamentos ostensivos de noturnos nas escolas.
Por último queria combater a ideia que existe um protagonismo e uma escolha do jovem estudante. Primeiro, a escolha de qual itinerário o estudante vai escolher, está determinada pela imposição da realidade social a que ele vive. Depois que as escolas não vão ter infraestrutura para oferecer todas as diferentes possibilidades de itinerário formativo, a tendência é que cada escola ofereça duas possibilidades. Ou seja, a “escolha” já está bastante limitada, já que se quiser cursar um itinerário que não contém na escola, ou o estudante sai da escola ou faz o itinerário que tem. E isso é ainda mais grave quando, segundo pesquisa do REPU, 51% dos municípios de São Paulo têm apenas uma escola do ensino médio, quer dizer, aquele estudante que não quiser cursar o itinerário fornecido pela escola tem que mudar de cidade em busca do seu itinerário de preferência. E esse mesmo processo vai ocorrer com o professor, já que tendo menos aulas do ciclo de formação básica a carga horária de trabalho terá que ser complementada com as disciplinas dos itinerários, mas se não houver o itinerário correspondente a sua formação na escola, o professor terá que fatiar a sua carga em diferentes escolas para completá-la.

É possível dizer com isso, quem são os perdedores da reforma: a juventude trabalhadora, pobre, precária, os professores e a comunidade escolar. Mas quem ganha com a reforma?

4. Os ganhadores da reforma do ensino médio e a privatização da educação

No ano passado, o Banco Mundial liberou U$10 milhões de dólares para implementação do novo ensino médio no Brasil. Em 2018, como apontou Ana Carolina Fulfaro, “o mesmo BM apresentou um documento dizendo que “o envelhecimento da população gera um imperativo e aumenta a urgência na elevação da produtividade do trabalho” (BANCO MUNDIAL, 2018, p. 7), como o país está em um momento de transição demográfica, é importante que haja um “maior engajamento dos jovens” (BANCO MUNDIAL, 2018, p. 8) e que estes desenvolvam as “competências necessárias” (cognitiva, socioemocional e técnica) para aumentar a produtividade do país e gerar crescimento econômico. Além disso, a “adoção da tecnologia digital está modificando rapidamente as competências demandadas pelos empregadores brasileiros.”
Alguma relação desse documento com a reforma do ensino médio?
Mas a reforma permite não só uma inserção da lógica mercadológica e empresarial sem precedentes no currículo e na formação dos jovens. Ela diretamente coloca atores empresariais no desenvolvimento, implementação e operação do novo ensino médio.
Exemplo disso é a Frente de Currículo e Novo Ensino Médio que construiu o que se chama de “arquitetura” curricular das escolas de ensino médio. Uma Frente sob coordenação do conselho nacional de secretários da educação, presidido por Rossieli Soares. Uma frente que tem como parceiros o Instituto Unibanco, o mesmo instituto que fez o documentário “Nunca me sonharam”, Itaú BBA, Instituto Oi Futuro, Instituto Natura, Movimento pela Base, Instituto Sonho Grande, Fundação Telefonica e Instituto Reúna, esse último diretamente tem orientações aos secretários da educação de como aplicar a reforma do ensino médio.
Além disso, há órgãos privados como o Politize, que diretamente elaboram itinerários formativos com seu próprio conteúdo que vão ser oferecidos nas escolas como parte do currículo do novo ensino médio. Um deles é a “Trilha de Aprofundamento “Liderança e Cidadania”, que oferece um caminho para que os estudantes possam ampliar seus conhecimentos sobre liderança consciente e desenvolver ações cotidianas que contribuam para o exercício da cidadania.”

Além disso, com o novo ensino médio há uma reformulação de todo PNLD, com novos livros, que também vão atingir fortemente o mercado editorial dos livros didáticos. Também é possível com o NEM, que os estudantes possam fazer suas horas de itinerários formativos em cursos da iniciativa privada, EAD ou presencial. Então, são muitos inúmeros atores privados que se fortalecem e que são atendidos pela reforma do ensino médio. Seja pela inserção de uma lógica empresarial e de mercado na escola pública, seja diretamente produzindo conteúdo para o currículo escolar e suas mil e uma relações com o Estado que não é de hoje, visto exemplos como Maria Helena Guimarães de Castro do PSDB e a fundação Vanzolini, articuladora da reforma do ensino médio.

5. Como enfrentar o novo ensino médio?

Partindo de todo esse cenário que tentei mostrar, é nossa tarefa aqui também refletir como enfrentar o NEM. Muitos intelectuais da educação hoje buscam criar um pólo crítico que mostre o sentido que tem o NEM e desmascare a propaganda canalha e mentirosa dos governos Bolsonaro e dos diferentes governadores que vem aplicando a sua implementação.

Esse é um caminho fundamental, mostrar que a realidade da escola pública, da vida da juventude e do trabalho docente não tem nada a ver com a realidade do que propagandeiam os governos. Nesse sentido, nós do Nossa Classe, junto com outros professores, estamos buscando fazer um Comitê contra a reforma do ensino médio, que busque justamente fortalecer nossa articulação para ter medidas concretas nas escolas sobre esse tema, um comitê aberto a todos que também querem pensar conosco como enfrentar o NEM.

Mas a minha opinião é que nosso objetivo deve ser fortalecer um campo crítico para preparar os professores, estudantes, intelectuais da educação e a comunidade escolar para se mobilizar efetivamente contra a reforma e o conjunto dos ataques que estamos vivendo na educação pública.

Hoje como professora, vendo toda essas transformações operando dentro da realidade da escola pública, só reafirma ainda mais a minha certeza de que nós precisamos rechaçar por completo a reforma do ensino médio e o conjunto de reformas ao trabalho se quisermos dar uma basta a precarização da escola pública e a realidade dos jovens de ter que ficar 12, 15 horas em cima de uma bicicleta pedalando para conseguir um salário no fim do mês.

A crise capitalista e os governos arrancam da nossa juventude qualquer perspectiva de futuro, querem dizer que a juventude é que é NEM NEM, que não quer trabalhar e nem estudar, mas eu concordo com a Débora Goulart, essa juventude é SEM SEM, porque na verdade há enorme desemprego e querem tirar até mesmo o direito a estudar. Nós, como educadores, não podemos permitir! Em poucas semanas eu soube que dois alunos de escolas aqui de Campinas se suicidaram e eu digo com todas as letras que é responsabilidade sim do Estado, dos governos, e desses empresários sanguessugas que arrancam o futuro desses jovens em nome dos seus lucros.

Eu tenho alunos no 8º ano que assistem e se identificam com Round Six, uma série em que as pessoas se matam porque são endividadas e não tem mais perspectiva de vida. Essa é a realidade da escola pública hoje, e não a realidade da propaganda do governo e é contra essa miséria capitalista que nós professores e estudantes precisamos lutar.

Por isso, nossa perspectiva deve ser sim ampliar a crítica ao NEM, a reforma administrativa, as privatizações e a todos os ataques, mas isso para fortalecer a nossa mobilização, que deve acontecer no chão de cada escola deste país. E por isso é urgente abrir um debate com o nosso sindicato de professores, que é a APEOESP, dirigida pelo PT e que não chama nenhum espaço para que os professores possam debater como se organizar para exigir a revogação da reforma do ensino médio por exemplo, pelo contrário, apostam mais nas vias institucionais e quer que fiquemos passivos esperando as eleições de 2022, do que na força dos trabalhadores. Ou mesmo entidades como a UNE, a UBES, que são levadas a frente pelo PCdoB, e que preferiu durante todos esses anos apoiar o Rodrigo Maia na Câmara, ou até mesmo ao lado do Rossieli Soares, do que colocar uma perspectiva de mobilização aos estudantes contra o NEM.

É urgente que para de fato criar um pólo crítico, possamos também criar uma força que exija dos sindicatos da educação de todo o país, nossa mobilização pela base, com um plano de lutas sério que possa avançar para enfrentar não só a reforma do ensino médio, como as demais reformas, ao trabalho, aos serviços públicos. Os professores têm uma força que quando se coloca, junto com a juventude, em movimento, pode incendiar toda a classe trabalhadora e ser uma faísca para que se abra mesmo uma perspectiva de lutar contra todas as reformas e por Fora Bolsonaro e Mourão.

Nós queremos não só lutar para nos defender desses ataques, mas queremos pensar um projeto de educação, primeiramente livre de toda a iniciativa privada, e que possa pensar no estudante em toda sua integralidade, na formação da arte, do corpo, no acesso à ciência e na formação de qualidade ao trabalho. São protagonistas dessa educação que queremos ver os estudantes, e não da miséria que reservam os capitalistas.

Essa é uma pequena contribuição para a reflexão do porquê e como enfrentar o novo ensino médio em todo o país.

Referências bibliográficas:

FULFARO, A. et al. Escolas ocupadas e formação política: da luta estudantil à reação conservadora. 2020.

PIOLLI, E. SALA, M. Itinerário técnico e profissional na reforma do ensino médio paulista: dualidade e dualidade da dualidade. Esquerda Diário, 2020. Disponível em: https://www.esquerdadiario.com.br/Itinerario-tecnico-e-profissional-na-reforma-do-ensino-medio-paulista-dualidade-e-dualidade-da

FULFARO, A. INOVA, a educação do desemprego e da precarização. Esquerda Diário, 2019. Disponível em: https://www.esquerdadiario.com.br/INOVA-a-educacao-do-desemprego-e-da-precarizacao-29944

CASSIO, F. Milton Ribeiro não está sozinho. Carta Capital, 2021. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/opiniao/milton-ribeiro-nao-esta-sozinho/

Materiais para a escola. REPU. Disponível em: https://www.repu.com.br/materiais-para-escolas


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