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CULTURA | A poesia do clube da esquina. Notas

A esperança é que o trabalho coletivo do grupo de mineiros encontre os ouvidos e os corações apropriados fazer valer o sonho sempre. Como dizia o poeta Paulo Leminski: “Na luta de classes/ todas as armas são boas/ pedras/paus/poemas

Romero Venâncio Aracajú (SE)

segunda-feira 24 de outubro de 2016 | Edição do dia

A hipótese mostrou ser fantasiosa, mas a beleza desses capítulos deve-se
a plenitude de vida que ela prometia e em certa medida facultava

Roberto Schwarz

A obra de arte não tem uma precisão para brotar. Pode aparecer em momentos de abertura ou de autoritarismo. Mas tenhamos claro uma coisa: ela (a obra de arte) será sempre libertária. Na forma ou no conteúdo e quando se encontram os dois, a obra chega a sua “perfeição”. Na música popular brasileira temos exemplos vários para tal afirmação. Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazaré, Pixinguinha, Noel Rosa, Cartola, Tom Jobin, João Gilberto, Chico Buarque… Se repararmos bem, essas obras têm contexto preciso, mas não se limitam a tal contexto. Não são reduzidas a uma situação histórica, mas sempre sabendo que tal contexto existe e situa qualquer obra de arte que valha o nome.

Dito isto, chamamos a atenção para um desses momentos luminosos da MPB em tempos de repressão e autoritarismo: o lançamento do álbum “Clube da esquina” (agora novamente lançado em CD/livro pela abril coleções). Desde a capa, uma obra “clássica” na seara da música brasileira. A capa tem dois garotos, um negro e um branco ancorados à beira de um barranco em uma estrada a olhar o que se passa. Olhar atento e distante, indicando algo lá num horizonte que não sabemos e que só um olhar ainda da primeira infância pode nos remeter. Estávamos em momento de ditadura perversa onde até a ingenuidade poderia ser presa, se apresentasse credenciais de rebeldia. Tristes tempos! Mas o disco de Milton Nascimento nos fazia imaginar/sonhar com um mundo mais lírico, mais criança.

Mais aberto ao horizonte da poesia. As roupas dos dois meninos revelam uma simplicidade tocante que mais alegoriza o povo anônimo brasileiro. Desde a capa o álbum já revelava sua originalidade e sua força poética (marca determinante da obra de Milton Nascimento e Lô Borges). Mas quando escutamos o repertório, ficamos com um sentimento de uma “beleza pura” e ingênua que nos remetem a um mundo que ainda não existe (utopia), mas que é preciso que pensemos nesse “mundo do ainda não” e que pode nos fazer sonhar no “mundo realmente existente”. Como na composição que fez história com Beto Guedes: “Da janela lateral/ do quarto de dormir…/vejo uma grade um velho sinal”.

Na música como na vida era preciso ver para além da grade, era preciso ver o “velho sinal”. Na mesma música sentimos a evocação do “cavaleiro marginal”, este ser enigmático e sem proporção na canção e que em muito pode nos remeter a um tanto de “marginais’ que naquela quadra de ditadura nos faziam sonhar com um outro mundo. Porém o momento alto do disco fica por conta de duas “imortais” canções: “Clube da esquina N. 2” e “Cais”. Na primeira temos uma jovialidade musical sem precedentes na MPB. “Porque se chamava moço/também se chamava estrada/viagem de ventania”. Uma imediata lembrança aos tempos furiosos em que a juventude não era apenas uma idade, mas um estado de disposição para ávida para a errância que encerra os que se sentem impelidos a rebeldia. Lembra em muito a “geração Jack Kerouac”.

Mas o mais bonito poeticamente nesta canção é a sua chamada radical para o sonho: “Também se chamava sonhos/ e sonhos não envelhecem”. Um verdadeiro hino à utopia, tão rara naqueles momentos e ainda mais rara nos dias pragmáticos de hoje. A canção ainda abriga o frescor do passado por ser o nosso presente tão infeliz e mesquinho em termos de sonhos como antes. Mas a mesma música nos ensina pedagogicamente o rumo: “E basta contar compasso/ e basta contar consigo/ que a chama não tem pavio”. Soberbo! A canção “Cais” talvez seja aquela que mais identifica o estilo de Milton Nascimento.

Tem o tom nostálgico e a melodia colabora muito para isto. A letra é algo magistral e lapidar onde diz: “Invento a mim o sonhador” e mais “Para quem quer se soltar/ invento o “Cais”. O sentimento que fica, 40 anos depois, é que o álbum ainda nos faz sentir alguma beleza que não passou. Uma beleza que tem uma força libertária que nos incomoda. Dias como os atuais não tem a grandeza de um disco como “Clube da esquina”. Como numa canção curta na letra e grande no sentimento, “O trem azul”: “Coisas que a gente se esquece de dizer/ frases que o vento vem às vezes me lembrar”. A esperança é que o trabalho coletivo do grupo de mineiros encontre os ouvidos e os corações apropriados fazer valer o sonho sempre. Como dizia o poeta Paulo Leminski: “Na luta de classes/ todas as armas são boas/ pedras/paus/poemas”.


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