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Crônica de Bruna Motta, professora da rede estadual de Marília.

quinta-feira 28 de abril de 2016 | Edição do dia

Ela sentou e a princípio não queria falar. Estava com expressão de raiva, olhar profundo perdido em sí mesmo. A cabeça erguida. O corpo quase não se mexia, exceto alguns momentos que tremia um pouco aparentando ser alguma reação física de uma verdadeira guerra que se passava lá dentro, mas logo parava e voltava a posição de estátua. O olhar permanecia parado, profundo, perdido.
Minutos observando essa cena era o suficiente para comprovar que era louca. No relatório dizia que era agressiva, violenta e manipuladora, responsável por insitar seus alunos a revolta e rebelião. O surto se deu quando foram lhe aplicar a anestesia. Ela se recusou a ser anestesiada, gritando repetida vezes: "Façam o que quiserem, mas não permito que me anestesiem". Os enfermeiros que estavam de plantão tentaram utilizar de força física para segurá-la, mas não foi possível, brotou uma força não se sabe de onde e ela conseguiu impedir a anestesia. Depois de acalmá-la conseguiram traze-la para cá e a deixaram sentada no meu divã, com esse olhar perdido, o corpo sem se mover e a boca calada.
Tentei começar uma conversa:
Psiquiatra - Então porque você não quis ser anestesiada?
Professora - Façam o que quiserem comigo, mas jamais permitirei ser anestesiada.
Psiquiatra - Porque você se recusa a anestesia?
Professora - Porque eu tenho o direito de sentir.
Psiquiatra - Mas você sentiria muita dor sem a anestesia...
Professora - Quando olho para as pessoas que se permitiram anestesiar percebo que a dor é ainda maior.
Psiquiatra - Mas elas não sentem dor. A anestesia é para isso.
Professora - Então é melhor deixar doer. Já me acostumei com a dor. Mas jamais me acostumarei com a anestesia.
Já estava me irritando aquela relutância dela pela anestesia, afinal, qual o problema daquela mulher? Qual o problema em ser anestesiada? E não falava nada que tivesse sentido. Para cada frase que soltava tinha um intervalo de longos minutos em que ficava estática, com o olhar perdido dentro de si, para só depois me responder com uma frase solta e sem sentido. Respirei e continuei a tentativa de diálogo:
Psiquiatra - Você é professora?
Professora - Não, eu sou louca. Estou proibida de entrar na sala de aula, recomendação médica.
Psiquiatra - E porque você está proibida de entrar na sala de aula?
Professora - Porque a escola me enlouqueceu.
Psiquiatra - E porque a escola te enlouqueceu?
Professora - Porque eu não permiti ser anestesiada.
Nesse momento senti que iria explodir. O que essa mulher está falando? Novamente essa história de anestesia? Ela não quer falar comigo, nem parece ser tão perigosa quanto está descrito no relatório. Penso em dar alta para ela para que me deixe e paz, porque sua negativa constante em ser anestesiada e seu olhar profundo, perdido em si está começando a me incomodar. Mas então ela começa a falar por um longo tempo, com pausas em que fica pensativa e retoma fala, na tentativa de me explicar o que aconteceu.
Professora - Dei aula durante 15 anos. Você já entrou numa escola? É encantador e perturbador. Dava aulas de história. Mas não consegui suportar a dor que era estar naquele espaço sem anestesia. E me recusei a ser anestesiada. Poderia morrer de dor, mas jamais me deixarei anestesiar. Foi assim que enlouqueci. Era cotidianamente minha pele sendo cortada, meu corpo sendo perfurado, minha garganta sendo sufocada. É proibido falar, é proibido pensar, é proibido respirar, é proibido existir. Era professora e a única coisa que não fazia era dar aula. Adentrava de segunda a sexta às 7:00h da manhã aqueles portões que se assemelham aos de uma cadeia, passava por suas grades, via prender atrás de mim as correntes e entrava numa sala pequena, superlotada, sem ventilador, com cadeiras enfileiradas como numa linha de produção e tal qual na fábrica deveria ditar tarefas que pudessem repetir de forma mecânica enquanto vigiava a porta dessa prisão para que ao menos para quem olhasse de fora, tudo aparentasse estar em ordem. Você já pensou o que é estar tudo em ordem? Estar tudo em ordem é garantir que eu não vou poder dar aula sem que ninguém perturbe a paz questionando esse sistema. E querem me fazer acreditar que não consigo dar aula porque eles não querem aprender! Colocam 30 crianças de 12 anos em uma sala pequena, sem ventilador, sem material didático adequado, sem recursos áudio-visuais, sem impressora para imprimir material, sem papel higiênico para que possam utilizar o banheiro com o minimo de humanidade, sem água potável, sem merenda, e querem que a preocupação dessas 30 crianças seja repetir silenciosamente os comandos que eu vou dar lá na frente? Não me deixam nem ao menos preparar aula. Me empurram um material insuficiente que preciso engolir guela a baixo caso queira ser recompensada um dia no ano com um bônus que promete compensar todos os outros 364. É repressão o tempo inteiro. São câmeras, grades, ocorrências, diários, preenchimento de burocracias e mais burocracias e se ousar se rebelar contra qualquer coisa, você é louca, precisa de mais uma dose de anestesia para voltar ao seu lugar. É opressão o tempo todo. Corroe o meu corpo todo ser metralhada com todas as formas de opressão possíveis. Você tem que ensinar seus alunos a respeitar as outras pessoas, desde que essas outras pessoas não sejam gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais, negras, mulheres ou gordas. A dor que eu sentia estava me corroendo. Não aguentava mais. Eu não podia mais me submeter a lógica de despertar o senso crítico dos alunos até o momento que a crítica beneficiava esse projeto de educação capitalista, porque quando a crítica ultrapassava os limites da ordem meu papel tinha que ser de contenção. Não me permitiram ser professora. Me quiseram carcereira. Me fiz louca. Não é possível ensinar fora de um ambiente de liberdade. Foi aí que eu percebi que a escola não foi feita para eu ensinar. Toda a dor que eu suportei durante toda a minha vida só pode ser suportada porque eu alimentava a esperança de poder um dia, quem sabe, um único dia que fosse, dar aula. Mas o único conhecimento que eu tenho para transmitir não pode ser produzido em um espaço que não tenha liberdade. Foi nesse momento que eu surtei, fui tachada de agressiva, de violenta e de louca. Surtei porque não permiti que me anestesiassem, escolhi sentir cada centímetro de dor de cada segundo que passava dentro da escola. Escolhi sentir dor porque era a única forma de sentir as coisas boas que esse espaço cheio de contradições pode nos reservar. Se fosse anestesiada não poderia sentir as coisas boas. Não poderia sentir. Não. Me recusei a ser anestesiada. Tudo menos isso, toda a dor que for preciso sentir, mas a anestesia não, a isso eu me recuso.
Fez uma longa pausa. Foi aí que percebi que seu olhar profundo na verdade não estava perdido em si, estava se encontrando lá dentro, estava costurando sentidos.
Professora - Se eu me anestesiasse não conseguiria me revoltar. Quem não consegue se revoltar com esse cotidiano violento não consegue se revoltar com nada mais. E se a gente não se revoltar, derrubar esses muros e por de pé um projeto de educação e de escola onde a gente consiga ensinar, então nada vai ter tido sentido, nem mesmo o alivio momentâneo da anestesia.




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