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LORDON, PIKETTY E MARXISMO | A ilegalidade do Capital

“Marx do século XXI?” é o título de um artigo do economista francês Frédéric Lordon, publicado na adição de abril da Le Monde Diplomatique. Lordon desenvolve uma crítica com tendências duvidosas ao já afamado livro do ex-assessor de Ségolene Royale em 2007 e atual assessor do dirigente do Podemos, Pablo Iglesias, Thomas Piketty. Apresentamos brevemente a seguir alguns elementos do texto e críticas dos pontos que nos pareceram mais significativos.

Paula BachBuenos Aires

segunda-feira 20 de abril de 2015 | Edição do dia

Esquivando-se da especificidade

Lordon reconhece em Piketty, com certa ironia, a virtude de ter escrito um livro ao contrário da mania moderna dos economistas de não superar as 15 páginas de um artigo para as revistas acadêmicas. Tampouco se esquece de reivindicar, como a maioria dos leitores e críticos do livro, a impactante quantidade e qualidade do trabalho estatístico ali presente.

Não obstante, Lordon discute primeiramente sobre a capacidade de Piketty de não proporcionar a mínima teoria sobre o capitalismo nem o mínimo projeto de apresentação de seus fundamentos, em um livro que leva no título “o capital”. Segundo o autor, essa notável capacidade explica que tanto os jornais Libération, Le Nouvel Observateur, Le Monde, L’Expansion, quanto o The New York Times, The Washington Post, entre outros, tenham coincidido em uma crítica tão unanimemente favorável.

Lordon descreve corretamente que a concepção “patrimonial” do capital de que Piketty se apodera – já criticada tantas vezes – entendida como “fortuna dos ricos” tem por objetivo esquivar-se da relação salarial, como especificidade do modo de produção capitalista. Assinala com razão que provavelmente os operário da Continental, Fralib, Frolange, entre outras empresas francesas, sintam menos repugnância pela ostentação insolente dos ricos do que se sentem devastados pela valorização financeira – para nosso dessabor, a “valorização produtiva” os devasta de igual forma e grau – do capital, pela tirania da produtividade, do ambiente estressante de trabalho, da rentabilidade, da ameaça permanente sobre as conquistas, da angustiante precariedade ou da violência generalizada das relações nas empresas.
Adiciona com razão que não há o menor vestígio de tudo isso sem o qual não se pode definir o capital – no Capital de Piketty.

Estando corretos todos esses aspectos assinalados, notamos que a harmonia entre a obra de Piketty e a recepção burguesa tem uma situação mais dinâmica e mais crítica.

Se por um lado “O Capital no século XXI” cumpre a tarefa de negar a especificidade do capital, por outro lado põe abertamente sua tendência intrínseca à desigualdade. E isso não pode ser entendido como uma lenga-lenga. Sucede-se que no momento que o crédito ao consumo já não pode ser uma contra-tendência à “miséria crescente” da relação salarial nas últimas décadas. Questão que grande parte do mainstream (até o FMI) vê com preocupações tendo em conta o limite de se incrementar o consumo das massas – ou a realização do valor produzido –, tendo em conta como um problema político. Sem ir mais adiante, a decadência da classe média norte-americana – questão que Piketty outorga uma posição primordial – constitui um problema estratégico para as burguesias.

Desistoricizando

O autor critica que, em sua paixão pelo muitíssimo longo prazo, Piketty está por um lado condenado à reconstrução de artefatos estatísticos muitas vezes sem sentido, como por exemplo a medicação da taxa de retorno do capital e da taxa de crescimento desde a Antiguidade até nossos dias. Diz bem que, como a maioria dos economistas, ele projeta categorias que na realidade são contingenciais, como se fossem universais. Assinala que assim, por meio de um paradoxo irônico, o economista parece se converter em historiador, quando se mostra mais ignorante da história e da historicidade de seu objeto. Faz parecer que os acontecimentos na escala de algumas décadas fossem insignificantes flutuações considerando-se milênios, quando as décadas são precisamente a temporalidade pertinente da ação política – temos que criticar esse aspecto de Piketty devido a sua intenção de refutar a tendência à queda na taxa de lucro.

O autor diz que Piketty pretende que possam aplicar-se as mesmas leis universais através de diversas eras, gerando um estranho capitalismo de tempos imemoriais. Assinala, então, que procurar, desse modo, que se possa encaixar o movimento do capitalismo sob leis invariante e não-históricas, segue sendo um sintoma, talvez o mais típico, das formas economicistas de pensamento. No entanto, e logo quando coincidimos plenamente com esse aspecto, é aqui que aparece a questão mais crítica (e que valha a redundância) da crítica de Lordon. Porque aqui assinala que os economistas sempre cederam a tentação das leis, leis da economia, ou do capitalismo.

Mas nos perguntamos, que leis da economia ou do capitalismo? Porque, para dizermos a verdade, a mania dos economistas consiste em encontrar leis não-históricas da economia que têm por objetivo negar as leis específicas do capitalismo. Nisso consiste a operação mais grosseira da naturalização do capital. No entanto, Lordon, que critica Piketty por querer aplicar leis ahistóricas ao capitalismo, negando-lhe como “coisa” específica, nega por sua vez que o capitalismo tenha leis próprias, com o qual ele mesmo acaba negando sua especificidade, vejamos:

Ilegalizando

O autor faz um malabarismo criticando com razão a escassa alusão de Piketty à luta de classes e às relações de forças entre as classes, reafirma sua própria concepção de ausência das leis do capital, lançando-se contra o rol de guerras que resulta casualmente em um dos pontos mais convulsivos do “Capital no século XXI”, Lordon retrocede algumas décadas e afirma que foi devido a 1936 preparar o terreno; devido às elites liberais das décadas de 1920 e 1930 terem sido liquidadas; devido à patronal sair do revanchismo para o colaboracionismo; devido ao Partido Comunista francês alcançar 25%, e devido à URSS levar a raiva os capitalistas, foi por isso que ao fim da segunda guerra mundial se observou um impressionante movimento de sincronização institucional ao ponto da qual a relação – de forças entre capital e trabalho – se inclinar a favor (relativo) do segundo: controle férreo dos capitais, desvalorização das Bolsas, movimentações internacionais altamente reguladas, política econômica orientada para o crescimento e emprego, desvalorização da moeda regulares. Tudo isso, diz, é o que leva ao crescimento de 5% e conduz o capital (a força) a um pouco mais de decência.

Muitos elementos dos aqui assinalados são sem dúvida parte da realidade, mas pecam por serem considerados de forma extremamente unilateral. Carecem de partes fundamentais. Sigamos a linha que Lordon empreende contra Piketty, acusando-o de substituir a história institucional e política pelos efeitos da guerra, encarregada de destruir o capital e de retroceder os mediadores até zero, segundo o autor do “Capital no século XXI”. O verdadeiro problema é que Lordon, para dizer a verdade, desacredita – assim como critica em Piketty – da existência de leis próprias do capital. Leis que induzem em última instância ao desenvolvimento de guerras interimperialistas pela repartição de espaços para a acumulação e que, em virtude da destruição, voltam até certo ponto “os mediadores até zero”, tal como observa Piketty.

Mas Lordon exclui das guerras a história da política do capital e pretende constituir uma histórica pacífica e abstrata das instituições como se a guerra fosse uma das principais dentre elas, sob o modo de produção capitalista. Da negação da guerra e seu efeito destrutivo e restaurador das condições de acumulação do capital – da negação das leis do capital, em última instância – se deriva a ilusão pacifista e embelezadora segunda a qual as condições de existência do capital sob o boom dos pós-guerra e seu caráter “produtivo” (crescimento de 5%, desvalorização das Bolsas, etc) seriam resultado dos conflitos entre os grupos sociais – notadamente excluindo derrotas revolucionárias e guerras – que definem, segundo Lordon, as bifurcações do capitalismo.

Na verdade, o caminho destrutivo empreendido pelo capital foi a conclusão da derrota dos processos revolucionários, por um lado (leia-se Alemanha nos anos 20, China, burocratização da União Soviética, triunfo do fascismo, França e Espanha nos anos 30, entre outros). Outra coisa muito distinta é dizer que por detrás das penúrias inesgotáveis da guerra, o pânico da revolução e as abomináveis traições do stalinismo, a relação de forças entre as classes obrigou o capital a relegar uma pequena porção do lucro que aumentava exponencialmente. Mas somente sob – como mínimo – duas guerras mundiais e a crise de 1930, como nesse caso muito bem nota Piketty. Esse “pacto” desigual chegou, não obstante, ao seu fim quando as leis do capital voltaram a impor seus limites no fim dos anos 60 e principio dos anos 70.

O que Lordon denomina de “valorização” financeira do capital acabou na crise de 2008, na qual nos encontramos imersos. E nesses momentos, economistas do mainstream tão importante como Larry Summers, Paul Krugman, Robert Gordon, entre outros, mentores da tese do estancamento secular, insistem em duvidar das virtudes da “política” no papel e começam a saudar as vantagens restauradoras das guerras.

É estranho que ao mesmo tempo, autores como Lordon, que se posiciona desde a esquerda, colocando que a crise histórica atual volte a colocar na ordem do dia intelectual a necessidade de nos livrarmos do capitalismo, ponham tanto empenho – apostando em novos fracassos reformistas – em negar as leis específicas do capital e sua natureza, precondição necessária para nos livrarmos dele, materialmente.




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