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Conflito no Cáucaso | A guerra entre a Armênia e o Azerbaijão pode enfraquecer a hegemonia russa na região?

É impossível dizer até onde a guerra em Nagorno-Karabakh irá, mas pode enfraquecer as posições russas na região a médio prazo.

sexta-feira 2 de outubro de 2020 | Edição do dia

Apesar da dissolução da URSS em 1991, a Rússia tem procurado ao longo das últimas décadas manter sua hegemonia na região do Cáucaso e da Ásia Central através de acordos econômicos e militares com as antigas repúblicas soviéticas. Entretanto, durante esses anos, alguns estados se distanciaram de Moscou ou pelo menos tentaram se aproximar das potências ocidentais a fim de ter mais espaço de manobra frente a Rússia. Em alguns casos, esta retirada da órbita russa ocorreu após grandes convulsões políticas, como no caso da Geórgia, onde a chamada Revolução de Veludo estabeleceu um governo pró-ocidente, inclusive chegando ao ponto de provocar uma guerra de curta duração entre esse país e a Rússia em 2008.

Contudo, a Ásia Central e, em particular, o Cáucaso continuam sendo regiões vitais para os interesses estratégicos russos especialmente para a defesa. É nesse sentido que Moscou se esforça para manter boas relações com a maioria dos estados nestas áreas geográficas. Assim, embora no Cáucaso a Rússia tenha uma base militar na Armênia e seja um importante aliado do país, ela também tem boas relações com o Azerbaijão ao ponto de vender para ele armas nos últimos anos, o que não deixou de irritar os líderes armênios.

De fato, o regime russo está tratando de desempenhar um papel moderador no conflito territorial entre a Armênia e o Azerbaijão; seu objetivo é evitar um grande conflito que desestabilize a região. “A Rússia participa da interação diplomática, econômica e militar com o Azerbaijão, equilibrando seus compromissos entre os dois países com a esperança de evitar um conflito direto entre eles. A escalada do conflito seria considerada prejudicial à posição da Rússia no Cáucaso meridional, já que poderia dar lugar a uma maior influência da Turquia e da OTAN através do Azerbaijão e fazer da Armênia a única nação amiga da Rússia na região fronteiriça” , diz uma análise recente de Stratfor sobre a guerra.

É por isso que a guerra atual representa um importante risco para os interesses russos. Porque embora seja muito provável que Moscou tente resolver a questão pela via diplomática, está claro que a Rússia não pode se permitir ao luxo de deixar que um aliado como a Armênia sofra uma humilhação militar sem fazer nada para defendê-la, tanto mais que tem uma base militar no país e ambos os países fazem parte de uma aliança militar que tem por objetivo, entre outras coisas, garantir a defesa dos Estados membros em caso de agressão, a Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC). No entanto, este acordo não se aplica ao território separatista de Nagorno-Karabakh.

Sem embargo, se a escalada continuar e a guerra se intensificar, não se pode excluir um “acidente” e ações do exército azeri diretamente contra o território armênio. Isso é o que o governo já está denunciando. Segundo ele, a cidade armena de Vardenis foi o objeto de um ataque das forças azeris, ativamente apoiadas pela Turquia.

Esta é uma complicação adicional para a Rússia: o apoio explícito da Turquia a seu aliado azeri. O governo de Erdogan está alimentando o conflito entre os dois países com declarações provocativas; algumas ONGs e observadores da região chegam ao ponto de afirmar que a Turquia enviou mercenários sírios para lutar no Azerbaijão.

Por sua vez, o Conselho Turco, uma organização que agrupa os Estados de língua turca, que serve como plataforma de influência para a Turquia na Ásia Central, emitiu um comunicado ecoando as declaração muito hostis de Erdogan em relação à Armênia: “o Conselho Turco lembra que as resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas adotadas em 1993 exigem uma retirada imediata, incondicional e total das forças armadas armênias de todos os territórios ocupados da República do Azerbaijão”.

Esta declaração não é insignificante porque o Cazaquistão e o Quirguistão são membros tanto do Conselho Turco como da OTSC encabeçada pela Rússia. Em outras palavras, através deste conflito, a Turquia pode estar aproveitando a situação para aumentar sua influência entre os Estados próximos à Rússia na região. Não esqueçamos que historicamente a Rússia e a Turquia lutaram pela hegemonia nesta parte do planeta, e como muitos analistas afirmam, embora hoje Moscou e Ancara estejam em uma aliança pragmática, em vários conflitos se opõem um ao outro. De modo mais geral, a Rússia e a Turquia são rivais geopolíticos a longo prazo.

Além disso, o próprio Azerbaijão está se tornando um concorrente da Rússia no setor energético, o que torna a relação entre ambos os Estados igualmente ambígua. Por isso, apesar da Rússia estar tentando evitar uma maior deterioração da situação e tentando manter boas relações com o Azerbaijão, este último não deve cruzar certas linhas vermelhas que “forçam” a Rússia a agir, não em defesa de seu aliado armênio, mas em uma tentativa de proteger suas posições como potência hegemônica na região, que não abandona seus aliados.

Sem dúvida, Putin tentará evitar chegar a esse ponto. Também tentará explorar as debilidades da Turquia. Como aponta um artigo de Bloomberg: “Putin está muito consciente de que Erdogan já está sobrecarregado, com operações militares na Líbia e na Síria, assim como um choque geopolítico no Mediterrâneo oriental, onde os navios de guerra russos também se escondem. A intervenção no Cáucaso pressionará a economia da Turquia, que já se encontra em uma situação desesperada. A lira turca caiu a um nível muito baixo em termo da possibilidade do país envolver na guerra entre o Azerbaijão e a Armênia”.

Mesmo que a Turquia não intervenha diretamente no conflito, é inegável que as declarações do governo turco alimentam o Azerbaijão em sua ofensiva contra Nagorno-Karabakh. Ainda que a maioria dos analistas acredite que por enquanto as possibilidades de uma guerra em grande escala entre os dois países são menores e que no limite nenhum dos dois países têm interesse em um conflito desse tipo, não se pode descartar um “acidente”, situação na qual o retrocesso se torne algo muito caro do ponto de vista político. De fato, em ambos os países os sentimentos nacionalistas têm sido despertados há vários anos, entre outras coisas, para desviar a raiva social perante as dificuldades econômicas. A pandemia do Covid-19 só piorou a situação econômica da classe trabalhadora dos dois lados da fronteira. Neste sentido, ambos os governos podem se encontrar em uma situação na qual necessitem apresentar algo como uma “vitória”. E este talvez seja o maior risco de entrar em uma dinâmica de guerra total entre os dois países.

Contudo, avivar tais sentimentos reacionários entre a população também pode ser uma faca de dois gumes para os governos envolvidos na guerra. Como informa uma artigo de julho passado durante as últimas escaramuças sangrentas entre os dois países: “No Azerbaijão, porém, o sentimento pró-guerra degenerou na noite de 14 de julho, quando milhares de pessoas se manifestaram na praça Azadilq em Baku para uma manifestação que se transformou em revolta. O que começou como uma manifestação nacionalista pró-guerra em grande parte espontânea se transformou em uma espécie de manifestação contra o governo e a polícia. Um pequeno grupo invadiu o edifício do Parlamento enquanto a polícia usava gás lacrimogêneo, balas de borracha e canhões de água para desfazer o tumulto. Os manifestantes estavam furiosos com o grande número de balas, incluindo um general altamente respeitado e condecorado. Essas manifestações são a expressão mais importante e visível do descontentamento popular no Azerbaijão nos últimos tempos, e ressaltam que a guerra pode ter consequências imprevisíveis. Essas manifestações seguem um aumento das queixas sociais e da raiva pela brutalidade policial, uma vez que o contrato social do país entrou em colapso em um contexto de estagnação econômica e da pandemia do coronavírus”.

Os cálculos geopolíticos dos governos capitalistas só podem levar ao desastre para os trabalhadores e para as populações locais. É neste sentido que consideramos fundamental que os trabalhadores e as classes populares rejeitem as políticas nacionalistas e “hegemônicas” de seus governos tanto na Rússia quanto na Turquia, assim como na Armênia e no Azerbaijão. Opor-se aos capitalistas “nacionais” é a maneira mais eficaz de pôr fim às guerras que pressagiam sofrimentos e misérias agravados para os explorados.




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