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A fórmula trinitária em Clausewitz e Trotsky

É conhecido o apresso que tinham os principais dirigentes bolcheviques pelo grande teórico da guerra prussiano Carl Von Clausewitz. Tanto Lenin quanto Trotsky citam em diversos momentos de suas obras com profundo reconhecimento e aprovação a contribuição do prussiano para o pensamento estratégico, não só diretamente no campo militar mas também para pensar a estratégia e programa político; contribuição que deve ser meditada e apropriada pelos revolucionários que buscam aportar de forma efetiva para as lutas do proletariado por sua emancipação.

quinta-feira 2 de fevereiro de 2017 | Edição do dia

É conhecido o apresso que tinham os principais dirigentes bolcheviques pelo grande teórico da guerra prussiano Carl Von Clausewitz. Tanto Lenin quanto Trotsky citam em diversos momentos de suas obras com profundo reconhecimento e aprovação a contribuição do prussiano para o pensamento estratégico, não só diretamente no campo militar mas também para pensar a estratégia e programa político; contribuição que deve ser meditada e apropriada pelos revolucionários que buscam aportar de forma efetiva para as lutas do proletariado por sua emancipação.

Lenin estudará com grande atenção a principal obra de Clausewitz, ‘’Da Guerra’’, em seu exílio durante a primeira guerra mundial como base fundamental para pensar o caráter da guerra imperialista e seu significado, e a partir disso qual seria a política correta dos revolucionários em relação ao conflito; a relação entre a insurreição, a guerra civil e o conjunto da política dos revolucionários, e todo o conjunto de questões que se relacionam entre a política em tempos “normais” e sua expressão mais radical e conflituosa, a guerra, se apropriando da grande máxima do general prussiano de que “a guerra é continuação da política por outros meios’’.

Trotsky mostrará também, ao longo de sua obra, uma grande apropriação do pensamento estratégico clausewitiano, desde suas reflexões e sua ação prática nas insurreições das quais participou, nos escritos e na direção da guerra civil russa, em seus debates políticos ao longo da década de 20 e 30, décadas de grandes convulsões sociais, de enfrentamentos constantes, em diferentes fronts, entre revolução e contra-revolução. Será no final da vida, no entanto, em um de seus escritos mais importantes e interessantes, ‘Classe, partido e direção’, de 1940, que o revolucionário russo fará uma das apropriações mais originais e profundas do pensamento de Clausewitz, apropriação que merece ser apreendida não só por aqueles que buscam assumir uma posição de vanguarda na luta do proletariado revolucionário, mas por todo aquele que reflete sobre estratégia e sobre o pensamento clausewitiano.

Trotsky faz nesse artigo uma apropriação extremamente original da formula trinitária, da ‘’notável trinidade’’, expressa por Clausewitiz em sua grande obra. Essa apropriação profunda e original do pensamento estratégico do general prussiano e sua colocação a serviço de uma estratégia revolucionária será um grande aporte teórico, fundamento para a ação prática, de Trotsky. É para buscar compreender esse aporte que é escrito esse breve artigo.

O SIGNIFICADO DA FORMULA TRINITÁRIA, SUA EXPRESSÃO HISTÓRICA CONCRETA EM CLAUSEWITZ E A APROPRIAÇÃO DE TROTSKY

É preciso ter claro para pensarmos o significado da formula trinitária no pensamento do general prussiano o caráter histórico do conceito e de sua reflexão de conjunto sobre a guerra. Entendendo o fenômeno como historicamente determinado Clausewitz mostrará que as formas como são levadas a frente as guerras são expressão das condições sócio-históricas efetivas na qual ela está imersa, o contexto histórico sendo elemento fundamental para pensar esse fenômeno social. A separação e relativa independência entre cada um dos momentos que forma a trinidade clasewitiana (1-o ódio primordial, a violência, 2-o jogo das probabilidades e chances, 3-a subordinação a racionalidade política) só pode ser entendida e compreendida dessa maneira em uma sociedade em que há diferenciações de classe, entre dirigentes e dirigidos, entre aqueles que ocupam uma marcada posição de comando e os que ocupam uma posição de obediência. Em guerras tribais, por exemplo, de sociedades sem diferenciação de classe, não poderia haver uma separação entre os 3 momentos que formam a trinidade, posto que todos os membros da sociedade expressam ao mesmo tempo o ódio primordial e a violência e os objetivos “políticos” que motivam o conflito.

Tendo esse primeiro elemento sido tornado claro outro fator ainda a se esclarecer é que deve-se afastar a confusão feita por alguns teóricos influenciados pelo pensamento clausewitiano de que a forma específica e historicamente determinada a partir da qual a trinidade se expressou na época de Clausewitz, entre população (representando o ódio popular primordial), o exército (como representante da chance e do jogo das probabilidades ), e o governo (representando a racionalidade política) seria a única forma de expressão da formula trinitária. A formula se expressa dessa maneira concreta no pensamento do prussiano porque era essa sua forma de manifestação naquele contexto, das guerras napoleônicas, da formação do estado burguês moderno que rompia com as antigas amarras ainda existentes do feudalismo que se expressavam no estado absolutista, do estabelecimento de um novo equilíbrio entre estados na Europa; é nessa situação específica que a separação entre a população oprimida e a racionalidade política, mediadas pela formas através das quais esses dois momentos contraditórios interagem, se expressará em população, exercito e governo.

A fórmula trinitária, contudo, entendida como elemento basilar para compreender a guerra na modernidade, pode se expressar de diferentes formas, a partir de diferentes contextos, estratégias e programas políticos. Um programa e estratégia de emancipação nacional de um povo oprimido expressará a trinidade de maneira diferente do qual a luta de um estado nacional, por exemplo, posto que um dos elementos, pelo menos, não existe no primeiro caso, que é o estado nacional, o governo, que na formula trinitária tal qual expressa diretamente em Clausewitz, representa a racionalidade política; nesse caso, portanto, a racionalidade política seria expressa por uma instituição distinta de um governo estabelecido.

A questão se torna ainda mais complexa quando rompemos com a idéia da paz civil dentro do estado, com a idéia de unidade nacional, que permeia toda reflexão de Clausewitz e entendemos o conflito e divisão dentro do próprio estado nacional, dentro do próprio povo, quando compreendemos que o estado-nação não é uma unidade, mas é dividido e composto por classes distintas, com diferentes bases populares, direções, formas institucionais que medeiam a relação entre a base e sua direção. A partir dessa compreensão entendemos que dentro de uma mesma unidade nacional podem existir, pelo menos potencialmente, diferentes trinidades que se chocam não só militarmente, mas também e principalmente de forma política.

Dentro de um mesmo estado existe não apenas a relação entre os 3 elementos: população, exercito e governo, mas a própria formação e estabilidade relativa dessa trinidade está em disputa, pois essa primeira expressão da trinidade não é algo natural, mas fruto dos interesses de uma classe especifica que compõe o estado nacional, a burguesia. Como parte da luta entre as classes que perpassa o estado, como elemento fundamental dela, existe uma contestação permanente da forma como a trinidade se torna concreta expressando os interesses da burguesia, contestação que propõe a ruptura com a antiga e a formação de uma nova trinidade, de uma nova unidade político/militar.

Essa nova unidade político/militar, expressa na trinidade classe, partido e direção, representa os interesses do proletariado em sua luta contra a burguesia.

TRINIDADE E NÃO LINEARIDADE

A possibilidade da ruptura da antiga trinidade que representa os interesses da burguesia (povo, exercito e governo) e sua substituição pela trinidade que representa os interesses do proletariado (classe, partido e direção) se dá pela relação não linear, sempre contraditória e instável, entre os três elementos que formam a tríade. A não linearidade entre esses 3 elementos pode ser expressa pela metáfora do pendulo atraído por imãs em que cada um dos pólos da tríade, representando um imã na metáfora, atrai o pendulo, fazendo com que os movimentos do instrumento sejam totalmente imprevisíveis e incalculáveis.

Nesse sentido, a relação entre governo, exercito e população é uma relação sempre contraditória e instável, sempre passível de ruptura, portanto. A racionalidade política representada pelo governo consegue se ligar ao ódio popular? O exercito consegue realizar os objetivos racionais expressos pelos governantes? O ódio popular se contrapõe de forma direta a racionalidade política da classe dominante?

É dessa contraditoriedade e da instabilidade que se manifestam entre os 3 termos da tríade que é expressão dos interesses da classe dominante que surge a possibilidade da ruptura revolucionária e que o proletariado crie uma alternativa de poder. É no momento de exacerbação das crises e fricções entre a racionalidade governamental e os sentimentos populares, mediados pelos aparatos repressivos, momentos de crise orgânica ou crise de autoridade, é que o proletariado consegue irromper como alternativa político/militar e aparecer como representando tanto o ódio popular como a racionalidade política, com sua tríade alternativa, classe, partido e direção.

ESPONTANEIDADE E AÇÃO CONSCIENTE DO PROLETARIADO

Contudo, se a tríade que expressa os interesses da classe dominante é não linear, contraditória e instável isso é ainda mais verdadeiro para a tríade que expressa os interesses da classe operária. A classe dominante conta além da tradição, de seus múltiplos aparatos hegemônicos e ideológicos, da atomização e alienação do proletariado, com o monopólio do uso da força dentro do estado. Ou seja, apesar da inerente não linearidade e instabilidade da relação entre os 3 termos da tríade, a burguesia tem a possibilidade de impor ideologicamente e pela força, uma certa ordenação e organicidade.

Como pode, portanto, o proletariado garantir uma relativa organicidade para a tríade alternativa que propõe posto a fraqueza inerente de seus aparatos hegemônicos frente aos da burguesia, dada sua condição de subalternidade e a inexistência de um seu aparato militar/repressivo (pelo menos até o momento da insurreição)?

Essa possibilidade se dá pela relação mais complexa, mas também mais profunda e radical, entre os 3 elementos da tríade no caso do proletariado em relação à tríade burguesa. Enquanto a tríade burguesa é inerentemente baseada na repressão e coerção (apesar de sempre existir o elemento do consenso, mas que é determinado) , 1-posto o caráter opressor e explorador do aparato estatal burguês que compõe e organiza a tríade frente ao conjunto da população, o que gera uma série de fricções e rupturas, 2-posto que o sentimento popular está em choque quase que permanente com a racionalidade política, 3-posto ambos representarem em geral interesses de classe distintos, o sentimento popular só podendo se conformar a racionalidade política através da sua repressão, alienação e distorção; a racionalidade política expressa pela direção, no caso da tríade proletária, é expressão orgânica e intrínseca do sentimento e ódio popular.

A capacidade da direção do proletariado de efetivamente representar a racionalidade política nesse caso não é uma capacidade de impor sua vontade ou de deformar e alienar a vontade da base da tríade, mas de sua capacidade de ser expressão ativa, estratégica, programática e organizativamente, do ódio espontâneo contra a exploração que existe na classe operária. É essa capacidade de ser expressão teórica, estratégica e programática da luta espontânea do proletariado que pode possibilitar à direção revolucionária a capacidade de efetivamente se colocar a cabeça de um processo revolucionário.

Essa relação, portanto, entre o ódio e o sentimento popular e a racionalidade política é muito mais complexa e mutável no caso da tríade proletária em relação à burguesa; enquanto o governo, como representante da racionalidade política burguesa, detém os meios materiais e ideológicos de garantir a subalternidade e obediência popular, a direção revolucionária, buscando a emancipação do proletariado, não tem nenhum meio dado de antemão que garanta uma relação orgânica com sua base, a não ser sua capacidade de efetiva e concretamente, em lutas reais, se mostrar na prática e experiência concreta do proletariado como sua representante.

Isso pressupõe, inclusive, uma relação muito mais dinâmica entre a direção e a base do que no caso da tríade burguesa, onde essa relação é na prática estanque, com cada um dos pólos tendo uma posição bem demarcada de antemão. É necessário para que a direção possa futuramente ocupar concretamente essa posição, e não só seja uma direção meramente “potencial”, uma relação metabólica constante com a base, onde a direção absorve parte da base e a transforma em direção e parte do que antes era direção se torna base. Além disso, ódio popular e racionalidade política, no caso do proletariado, não são momentos paralelos mas que se interpenetram. Quanto mais uma direção é orgânica e enraizada frente ao proletariado mais ela é capaz de ser impulsionadora das lutas e incentivadora do ódio de classe contra a dominação; quanto mais o proletariado é ligado a uma tradição teórica, estratégica e programática revolucionária mais ele é capaz de de forma ‘’espontânea’’ transformar seu ódio e sentimentos em estratégia e programa conscientes, influenciando e antecipando sua direção.

Essa maior instabilidade e dinamicidade entre os elementos que formam a tríade, no caso do proletariado, apesar de aumentar a não linearidade inerente a formula trinitária são elemento fundamental de sua força explosiva e de sua possibilidade de vitória.

FORMULA TRINITÁRIA, PROPORCIONALIDADE E FRICÇÕES

Se é inerente a trinidade a não linearidade e instabilidade isso não quer dizer que uma direção capaz deve se adaptar a esses fatores, posto que quanto maior a instabilidade entre os 3 elementos maiores as fricções inerentes a toda organização preparada para a luta. Já os exércitos burgueses encontravam o problema de como fazer com que uma massa de homens amorfa, mas disposta ao combate, se tornasse não uma mera turba mas um efetivo exercito combatente, ou seja, qual deve ser a proporção entre generais, oficiais, suboficiais e corpo do exercito para transformar uma massa desagregada de homens em um efetivo exercito.

Esse problema se coloca também para a direção revolucionária, pois não basta apenas a política, a estratégia e o programa corretos, mas é necessário também ter o conjunto de combatentes, de militantes, capazes de fazer com que esse programa e estratégica se liguem de forma orgânica com o proletariado; não basta também o ódio de classe e a vontade espontânea de luta da massa, mas é necessário que esse ódio de classe seja organizado e direcionado para os centros de gravidade do poder inimigo com força suficiente para derrotá-lo.

Uma direção revolucionária deve portanto ser capaz de acumular as forças necessárias para nos momentos de crise orgânica da dominação burguesa, momentos por definição efêmeros e fugazes, ser capaz de ligar de forma estrutural sua estratégia e programa com o levante e ódio espontâneo do proletariado. A formação anterior de uma efetiva coluna de quadros combatentes e militantes, capazes de fazer prática e concreta a orientação estratégica e programática formuladas pela direção é condição sine qua non para a possibilidade de vitória.

Assim como a relação entre direção e base é mais complexa e dinâmica na trinidade proletária do que na que expressa os interesses da burguesia também a relação entre esse elemento mediador entre os dois momentos precedentes é mais complexa e dinâmica. O partido não é mero elemento realizador da racionalidade política com base no sentimento popular, como três compartimentos que se inter-influenciam, mas que são marcadamente distintos, como no caso da formula trinitária expressa por Clausewitz , mas tem uma relação metabólica constante com os outros dois elementos. O partido é formulador inerente, junto a direção, da racionalidade política que forja a estratégia e programa, e ao mesmo tempo é parte fundamental do ódio de classe que é a base dessa estratégia e programa.

Não é assim mero instrumento da racionalidade política, como é o exercito para o estado burguês, nem é organismo que se coloca de forma estanque acima da base popular, mas é parte ativa e mediador real entre ambos os elementos. Um partido forjado de forma revolucionária conseguirá antecipar e corrigir muitos dos erros de sua direção, assim como será fator fundamental para insuflar o ódio e a combatividade em sua classe.


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