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ENTREVISTA COM TITHI BHATTACHARYA | A fonte de vida do capitalismo: a base doméstica e social da exploração

Reproduzimos aqui a entrevista com Tithi Bhattacharya, uma das organizadoras da “greve de mulheres do último 8 de março”, desenvolve os pontos fortes e as implicações da teoria da reprodução social.

quinta-feira 20 de setembro de 2018 | Edição do dia

Tradução: Lina Hamdan

Reproduzimos aqui a entrevista com Tithi Bhattacharya, fonte Original:

https://www.rs21.org.uk/2017/12/21/capitalisms-life-source-the-domestic-and-social-basis-for-exploitation/

Fonte em francês: http://www.contretemps.eu/capitalisme-reproduction-sociale/

Para conhecer mais sobre o debate do Pão e Rosas com a Teoria da Reprodução Social, veja texto de Andre D’Atri:

Nós mulheres, o proletariado

Introdução: Tithi Bhattacharya, uma das organizadoras da “greve de mulheres do último 8 de março”, desenvolve nesta entrevista os pontos fortes e as implicações da teoria da reprodução social. Marx explorou a maneira pela qual se organiza a produção de mercadorias no regime capitalista, mas como o capitalismo reproduz a força de trabalho? Quais papéis desempenham os gêneros e as raças neste processo de reprodução? Como a teoria da reprodução social se relaciona com abordagens em termos de interseccionalidade?

Estas são questões, dentre outras, que esta entrevista procura decifrar, propondo ainda um modelo dinâmico da transformação social e política e, especialmente, mostrando como a greve do 8 de março foi uma forma de colocar a teoria da reprodução social à prova de uma prática política.

Para alguém que ainda não se deparou com este termo, o que é a teoria da reprodução social?

A teoria da reprodução social (TRS) parece um tanto quanto intimidadora, mas as grandes palavras escondem aqui uma questão relativamente simples: se a produção capitalista é fundamentalmente a produção de mercadorias e se são os trabalhadores que as produzem, quem “produz” os trabalhadores? A TRS teoriza (sobre) os processos sociais através dos quais a força de trabalho (a capacidade do trabalhador de trabalhar) é reproduzida no capitalismo e a relação que estes processos têm com a produção de mercadorias.

A maioria das histórias sobre a produção capitalista começa quando o(a) trabalhador(a) chega às portas de seu lugar de trabalho. A TRS é a história que se situa atrás destas narrativas. Se a produção de mercadorias pelo(a) trabalhador(a) começa, por exemplo, às 7h da manhã e termina às 17h, então a TRS trata daquilo que se passa antes de 7h e depois de 17h.

Voltemos à questão de saber quem “produz” o(a) trabalhador(a): uma parte dessa resposta é fácil, quase senso comum, e esta é a parte desempenhada pela reprodução social na esfera privada ou em casa. Evidentemente, é devido ao fato de que nosso(a) trabalhador(a) jantou, dormiu em uma cama e teve acesso a outras formas similares de regenerar sua capacidade de trabalhar, que ele(a) é capaz de retornar ao trabalho. Depois de sua longa jornada de trabalho, ela teve que fazer uma “segunda jornada” de cozinha para ela e sua família? Ela teve que pegar seus filhos na escola e o confortar? Estas questões abrem todo um novo conjunto de problemas. Mas coloquemo-los um instante de lado e cataloguemos simplesmente as formas pelas quais sua casa, sua posição dentro da família, a ajuda a regenerar sua capacidade de trabalho.

Há ainda uma dimensão mais direta de como o(a) trabalhador(a) é reproduzido(a). O nascimento ou a reprodução biológica substitui uma geração mais velha de trabalhadores(as) e reproduz uma nova. Enquanto o capitalismo mistifica a natureza conjunta da produção e da reprodução, algumas vezes a língua falada retém ecos sociais desta unidade, pois continuamos falando de mulheres que “trabalham” para dar a luz. De forma similar, o termo proletariado tem sua origem no Latim “proletarius” ou “aquele que produz descendência”, pois o proletariado na sociedade Romana era registrado nos censos somente por sua (dela ou dele) capacidade de criar filhos.

Muitas feministas afirmam que a ordem do trabalho da reprodução social termina aqui, nas fronteiras do trabalho domestico e reprodutivo. Segundo estas teóricas (Selma James ou Mariarosa Dalla Costa são alguns exemplos notáveis), é o “trabalho de cuidado”, de assistência, feito principalmente por mulheres dentro da família, que reproduz a força de trabalho do(a) trabalhador(a) que ele vende, em seguida, ao capital. O capital se beneficia enormemente deste “trabalho de cuidado”, mas não paga nada por ele. Consequentemente, estas intelectuais militantes lançaram uma campanha exigindo salários para o trabalho doméstico.

Porém, outras teóricas da reprodução social, e eu me considero entre elas, sustentam que a força de trabalho é apenas parcialmente reproduzida dentro da família. Os sistemas educativos, os transportes públicos, as instalações recreativas como parques e piscinas, a possibilidade de uma comunidade operária de ter acesso à água potável (Flint, Michigan ou Standing Rock são exemplos) são recursos, criados e mantidos nas relações sociais, que reproduzem sua força de trabalho. Portanto, o acesso a estes recursos que contribuem para a reprodução da força de trabalho é fundamental para os (as) trabalhadores(as) tanto individualmente como para classe como um todo. Paralelamente, a classe trabalhadora não é reproduzida apenas pela reprodução biológica, mas a escravidão e a imigração são algumas maneiras históricas pelas quais o capitalismo “regenerou” sua mão de obra.

A TRS funciona, portanto, segundo um duplo movimento: ela teoriza, por um lado, as diferentes práticas sociais que reproduzem a força de trabalho – todas as numerosas tramas de relações sociais que constituem tal processo – e, por outro lado, como estas relações, enquanto distintas, não estão separadas da produção de mercadorias, mas formam uma totalidade unitária. Mudanças nas relações de produção afetam, portanto, as relações de reprodução e vice-versa. Os cortes salariais no trabalho podem contribuir para perder sua moradia ou desenvolver violência doméstica, enquanto que a privatização da água ou o aumento do preço do pão e de outros produtos de necessidade social básica podem levar à revoltas sociais e nos lugares de trabalho.

O que esta teoria trás de novo?

A questão da “novidade” é interessante. Para os marxistas, as proposições centrais da TRS devem parecer muito familiares, pois a TRS pode ser considerada como uma amplificação analítica da teoria do valor-trabalho (TVL).

A TVL consiste em reproduzir em pensamento as relações sociais que constituem o capitalismo. A primeira falsa ideia, de que elas devem ser compreendidas em termos estritamente “econômicos”, deve ser rejeitada. A TVL se interessa por duas questões: como os seres humanos produzem as condições materiais para sua existência no capitalismo? Como o capitalismo se reproduz como sistema?

A produção de valor de uso, de coisas as quais nós necessitamos para viver (pão, casas, livros, instrumentos de música), se refere à maneira pela qual nós, humanos, reproduzimos a nós mesmos e as nossas vidas. Mas “como nós produzimos estes valores de uso” e, principalmente, “por quem os produzimos” determinam como o capitalismo se reproduz.

A lei do valor-trabalho revela:

• O processo social pelo qual o capitalismo organiza a produção de mercadorias através dos lugares de trabalho em escala global, de tal maneira que diferentes trabalhos concretos de seres humanos são medidos uns em relação a outros, não diretamente, mas através do mecanismo do mercado;

• Como diferentes mercadorias (um pão e um Iphone) são colocadas em equivalência entre eles sob a base de tempo de trabalho socialmente requerido para produzi-las;

• Que o pivô da reprodução capitalista não é que diferentes tipos de trabalhos produzindo deferentes tipos de mercadorias são trocados (isto poderia ocorrer se artesãos independentes levassem seus produtos para um mercado). O capitalismo como um sistema é marcado pela compra e venda da força de trabalho do trabalhador pelo capitalista que, então, sob seu inteiro controle e sua total dominação, coloca esta força de trabalho para a produção de lucro.

O capitalista de fato paga o(a) trabalhador(a) por sua força de trabalho, este é o salário que ele(a) recebe. Mas este é somente igual ao tempo de trabalho necessário para “reproduzir” o(a) trabalhador(a) a si mesmo, ou os bens que o(a) trabalhador(a) irá comprar com seu salário. O resto do valor que o(a) trabalhador(a) produz no local de trabalho vai para o capitalista como mais-valia.

Como é sobre a “reprodução” do trabalhador que a TRS elabora, ela analisa tanto os bens comprados que reproduzem o(a) trabalhador(a), ou seja, o salário real, como também analisa o trabalho não remunerado (trabalho doméstico, nascimento de um bebê) que ajuda a manter e a reconstituir a classe trabalhadora. A TRS combina, portanto, as práticas sociais que produzem a “vida” (entendida biologicamente e socialmente) junto às práticas que produzem as “mercadorias” em um sistema unitário.

O que pode ser novo sobre a TRS é que ela mostra que a explicação da TVL de Marx, que trata apenas da origem e do destino das mercadorias, é uma explicação parcial. Na maioria das considerações marxistas do capitalismo, a força de trabalho é simplesmente considerada presente. A TRS mostra que nós não podemos nem supor que ela esteja simplesmente “lá”, nem tratar sua produção como desprovida de história. A TRS introduz em nossa compreensão do capitalismo as formas profundamente marcadas pelo gênero e pelas raças pelas quais a força de trabalho é produzida e tornada disponível para o capital, e é esta a contribuição crítica da TRS à teoria marxista.

Deixe-me desenvolver. A reprodução da força de trabalho, apesar de não ser feita diretamente sob a dominação direta do capital, toma formas altamente específicas sob o capitalismo. O trabalho doméstico não remunerado das mulheres da classe trabalhadora e a capacidade biológica das mulheres de darem à luz estão no centro desta reprodução. Nenhum destes dois elementos é a-histórico nem determinável pelo indivíduo, mas são organizados pelo capitalismo para assumir formas particulares na sociedade. Por exemplo, a emergência da monogamia, da família heteronormativa, espacialmente separadas da produção, não são um desenvolvimento acidental da história moderna e sim, estão relacionados à exigência geral do capitalismo de dispor de uma fonte constante de mão de obra disponível imediatamente a um preço mínimo.

É importante dizer algo sobre a reprodução biológica, desde que a transfobia emergiu como uma nova fronteira do sexismo e da violência. A capacidade das mulheres de ter filhos (ou, para dizer dentro dos termos da TRS, sua capacidade de substituir “geracionalmente” a força de trabalho) cria as condições de sua opressão no capitalismo. Mas este não é um argumento biologicamente determinista, pois a TRS concentra-se na organização social da capacidade biológica, e as formas pelas quais tal organização acontece são históricas e contingentes à cultura, geografia etc.

Na realidade, a TRS nos fornece um argumento vital, anti-essencialista, possivelmente inclusivo às pessoas trans, sobre a reprodução biológica. Ela não chama atenção para a biologia feminina, mas para a necessidade do capitalismo de uma substituição geracional da força de trabalho. É a dependência do capital de funções corporais específicas, como o parto, a lactação etc, que forma a reprodução social privatizada e que reforça a forma duradora do lar dominado pelos homens no capitalismo. As diferenças biológicas entre um homem e uma mulher ou entre um corpo cis e um corpo trans são, aqui, importantes somente pelas maneiras pelas quais estas diferenças são articuladas e organizadas pelo capital. Além disso, tal argumento implica que, no fim das contas, é irrelevante se as funções de procriação biológica são exercidas por mulheres cis ou trans, mesmo que o último fenômeno nunca seja generalizado dentro da forma social. Enquanto estas funções são requeridas e organizadas pelo capital, a opressão à mulher e, por extensão, a opressão e violência de gênero, irá continuar a existir.

A família é um dos meios pelos quais a classe trabalhadora é reproduzida. Mas, como você disse acima, a migração é outro. A Teoria da Reprodução Social tem algo a dizer sobre migração e raça?

A TRS oferece dois níveis de análise sobre o papel da migração e do racismo no capitalismo. O primeiro entre eles é fácil de discernir. Esta teoria se interessa pela maneira pela qual a força de trabalho se torna disponível para o capital. A família trabalhadora heteronormativa é, evidentemente, a principal fonte para o capital. Mas a migração forçada, a escravidão e a imigração foram meios chave pelos quais as forças de trabalho foram constituídas em países e regiões específicas, ou em uma comunidade delimitada.

Estes processos históricos, especialmente a escravidão, não são acidentais ao capitalismo e sim, constitutivos dele. É um exercício teórico um tanto quanto fútil separar o capitalismo “abstrato” – o qual presumimos neutro do ponto de vista de gênero e/ou de raça, impulsionado apenas pela necessidade de acumulação – do capitalismo “histórico”, no qual o gênero e a raça constroem e sustentam a acumulação. Falar do capitalismo apenas por abstrações é como falar da vida na terra somente nos termos das leis da gravidade, sem falar dos Estados-nação, das guerras ou do sexo!

Como a TRS nos leva a compreender a força de trabalho não como já disponível, mas como tornada disponível, ela se interroga sobre a miríade de processos pelos quais isso ocorre: como a força de trabalho é reproduzida nas e pelas relações sociais sexualizadas /racializadas. Como eu disse anteriormente, Isto mostra como a opressão é um organizador-chave das relações sociais capitalistas.

Mas há um segundo nível de análise da questão de raça e do racismo na TRS. Enquanto a teoria estabelece a reprodução da força de trabalho como a condição para a reprodução do capital, ela também questiona se toda força de trabalho é reproduzida igualmente.

O capitalismo, sendo um sistema de produção, esforça para estabelecer equivalências entre diferentes mercadorias, assim como entre diferentes capacidades de trabalho, como nós vimos acima. Mas todas as forças de trabalho não são iguais. Certos corpos/povos e suas forças de trabalho são reproduzidos de maneira a torná-los mais vulneráveis do que outros ao domínio do capital. Enquanto os efeitos destas diferenças se manifestam frequentemente no local de trabalho (último(a) a ser contratado(a), primeiro(a) a ser demitido(a), iniquidade salarial), a produção destas diferenças devem ser sem dúvida atribuída às entranças da reprodução social – sistemas educacionais, acesso aos cuidados de saúde, se a família estava presente para nutrir a criança ou se os dois pais tiveram que enfrentar os efeitos do encarceramento em massa e assim por diante – e o papel que estas desempenham na produção destas diferenças.

Portanto, a TRS realiza duas coisas de maneira bastante eficaz. Primeiramente, teorizando (e não descrevendo) o papel desempenhado pela opressão na acumulação do capital, ela rejeita de maneira conclusiva as clivagens analíticas entre exploração e opressão e as mostra como internamente relacionadas. Segundamente, como a TRS reconhece esta imbricada unidade entre elas, ela nos permite ter uma abordagem distintamente não funcional da opressão. O racismo e o sexismo (e outras opressões específicas) não são compreendidos como formas criadas pelo capital porque ele precisava delas, mas sim, como bricolagens ou montagens obscuras de diversos passados que emergiram, através de muitas tentativas e erros, por causa das maneiras pelas quais o capitalismo organizou a produção social. Não são, portanto, nem formas estáveis, nem eternas, mas dependem tanto da acumulação como das lutas contra esta. Enquanto isto significa que tanto a forma quanto a extensão da opressão irão variar de acordo com lutas coletivas contra ela, isto também implica que, como a opressão está indissociavelmente ligada ao desejo de acumulação, o capitalismo determina os limites de nossas lutas anti-opressões dentro de sua própria estrutura. Ou seja, a TRS enfatiza teoricamente a necessidade de uma luta anticapitalista contra a opressão.

Muitas pessoas insistem no fato de que não podemos olhar a classe, o racismo, a opressão às mulheres ou à sexualidade isoladamente – que nós deveríamos abordar estes problemas de maneira “interseccional”. Como a Teoria da Reprodução Social se relaciona com a interseccionalidade?

A resposta a esta pergunta necessita de uma longa e refletida análise! David McNally a escreveu e ela faz parte do próximo volume da TRS que eu editei. Portanto, irei levantar aqui somente aquilo que eu considero como alguns problemas teóricos do modelo interseccional.

Primeiramente, permita-me dizer que as(os) teóricas(os) da interseccionalidade nos forneceram ricos estudos empíricos sobre raça e gênero e o funcionamentos destes sob o capitalismo. Elas(es) também insistiram sobre a centralidade da opressão na formação do nosso mundo moderno. Em ambos os casos, nós, como marxistas, devemos encontrar uma causa comum. Não surpreende que, hoje em dia em um campus universitário nos Estados Unidos, quando uma estudante diz que ela é uma “feminista interseccional”, o que ela realmente quer dizer é que ela é antirracista. E ela é, definitivamente, alguém que nós devemos procurar para trabalhar conosco.

Mas a interseccionalidade é uma ferramenta adequada para entender e, consequentemente, mudar a realidade capitalista? Os problemas teóricos que os marxistas têm com a interseccionalidade começam com o próprio termo. A interseccionalidade como termo implica que diferentes opressões (por exemplo, o racismo e o sexismo) se cruzam e que uma combinação destas diversas interseções forma uma realidade entrelaçada.

Tomemos a metáfora da “interseção” a sério. Uma interseção é o lugar onde duas estradas distintas se cruzam. Mas raça e gênero constituem “estradas” ou relações sociais distintas? Se sim, onde elas apareceram e o que as sustentam? Além disso, qual é a lógica da interseção entre elas?

Além do termo, e dos problemas que ele coloca desde o princípio, há a questão da ideia marxista de uma totalidade em relação a um tipo de conjunto social entrelaçado. Uma combinação adicional de relações não é a mesma coisa do que os marxistas entendem por “totalidade”. Os trabalhos de Georg Lukács e, em sua sequência, de Bertell Ollman são umas das melhores exposições do que os marxistas compreendem por totalidade. Aqui, permita-me sublinhar duas diferenças principais entre os dois conceitos.

A compreensão marxista da totalidade social é intrinsecamente dinâmica. A mudança, as mutações, a adaptabilidade são suas ‘marcas de fábrica’. Existe quase uma tendência vitalista em diversas passagens de Marx sobre a sociedade (e as relações sociais). Ele escreve como se a sociedade fosse um organismo vivo. A visão “entrelaçada” ou interseccional da sociedade é completamente estática, quase bidimensional. Não existe nem no conceito nem na metáfora a ideia de em alguma destas interseções estão mudando ou respondendo a alguma mudança.

Segundamente, o projeto Marxista é de desenvolver uma teoria da mudança histórica através do conceito das contradições permanentes. O marxismo mostra esta totalidade social mutável e palpitante atravessada de contradições imanentes e não externas a ela. A interseccionalidade, devido a seu modelo estático, apenas obtém modelos transhistóricos da opressão que estão sempre presentes e são, na melhor das hipóteses, arbitrários no modo como funcionam. Por exemplo, se as opressões sociais são interseccionais, de onde vêm as novas opressões?

A teoria e os conceitos não são importantes apenas porque são ferramentas que explicam nosso mundo, mas porque eles deveriam nos dar as formas de como mudá-lo. Aqui, também, a interseccionalidade é um tanto quanto inadequada para esta tarefa. Por exemplo, seguindo a interseccionalidade, é muito fácil de discernir porque nós devemos ser solidários aos mais oprimidos; porque estes são os que portam múltiplas interseções. Mas porque a mais oprimida deveria ser solidária ao trabalhador branco?

Por último, eu penso que os resultados empíricos das(os) teóricas(os) interseccionais, na verdade, contradizem uma metodologia interseccionalista. Raça e gênero não são sistemas separados de opressão ou mesmo opressões separadas apenas com trajetórias relacionadas externamente; pelo contrário, as conclusões intelectuais do feminismo Negro mostram como raça e gênero são, na verdade, co-constitutivos. A TRS nos oferece, como defendeu David McNally, um meio de “reter e reposicionar” as perspectivas da interseccionalidade, rejeitando sua premissa teórica de uma realidade agregadora.

Você editou um livro de ensaios sobre reprodução social que foi publicado no outono de 2017 (em inglês). Quais são as questões-chave tratadas neste livro?

Uma consideração importante para mim foi explorar as implicações estratégicas da TRS para nosso tempo. A TRS demonstra que as relações sociais que estão fora da relação trabalho assalariado/capital são cruciais para a reprodução do capital e como a formação da força de trabalho serve de condição prévia fundamental à reprodução do capital. Se as relações sociais capitalistas são forjadas e sustentadas por fora do local de produção, por consequência, estas relações podem ser desafiadas e interrompidas fora do lugar de produção.

Os movimentos sociais que se desenvolvem ao redor de meios de subsistência ou de serviços que ajudam a reproduzir a vida – as lutas por moradia, saúde ou por dignidade frente à violência racial – podem, portanto, ter tanto de carga anticapitalistas quanto as lutas que se desenvolvem no lugar de trabalho. É um tema crítico que inspira o livro e que eu acredito que nós precisamos desenvolver mais profundamente devido ao reduzido nível de lutas nos locais de trabalho.

Você foi uma das principais organizadoras da greve de 8 de março. De onde veio a ideia desta greve?

A inspiração veio da histórica greve de mulheres na Polônia contra uma proposição de lei para proibir totalmente o aborto (2016) e de uma mobilização feminista massiva semelhante na Argentina organizada pelas ativistas do Ni Una Menos contra a violência masculina. O chamado para uma greve internacional de mulheres foi lançado primeiramente por feministas polonesas e se estendeu progressivamente a militantes de 50 países. Nós adotamos a palavra “greve” para destacar que as mulheres trabalham não apenas nos locais de trabalho, mas também na esfera da reprodução social.

O 8 de março, para nós nos Estados Unidos, foi o momento de testar a TRS na prática. Nós sabíamos que a densidade sindical nos EUA (assim como mundialmente) estava em seu menor nível histórico. As ferramentas de organização que estavam, tradicionalmente, à disposição da classe trabalhadora inexistiam na maioria dos locais de trabalho ou haviam sido enfraquecidas devido a dezenas de anos de sindicalismo de colaboração. Isto não significa que a classe trabalhadora foi derrotada pelo capital. Significava que, frequentemente, o terreno da luta de classe passa da esfera da produção para a da reprodução.

O 8 de março se mostrou como uma lição alegre e concreta desse tipo particular de organização. Mais de 30 cidades americanas participaram da greve na forma de manifestações, encontros, aulas livres nos campi universitários e de verdadeiras paralisações de trabalho em três distritos escolares. Mulheres se declararam doentes no trabalho, escreveram cartas a seus maridos para que estes fizessem sua própria comida durante o dia, se reuniram e marcharam como professoras, enfermeiras, trabalhadoras do sexo e mães. Nosso manifesto chamou por um feminismo dos 99% para desafiar diretamente o feminismo “Lean-in” (1) patronal, tal qual o de Sheryl Sandberg, e o feminismo imperialista de”falcões” como Hillary Clinton. Um dos fatos marcantes para mim foi o discurso de uma jovem mulher trans que falou em nosso ato em Nova York sobre a maneira pela qual ela liderou uma campanha sindical bem sucedida em seu local de trabalho contra sua patroa “feminista”. O feminismo patronal se evaporou. Contra tal feminismo, ela disse com orgulho, o 8 de março foi para ela o início de um feminismo dos 99%.

Será importante obsevar qual tipo de práticas e de formas de organização nós podemos reconstruir a partir da experiência do 8 de março. O 8 de março nos mostrou que existe hoje um enorme potencial para o reagrupamento de um novo movimento feminista mundial. Quarenta anos de depredação neoliberal da vida da classe trabalhadora nos demonstrou claramente esta necessidade.

A partir do exemplo da greve das mulheres, um movimento semelhante de amplitude global, se vier a se concretizar, não será composto unicamente de marxistas. Mas se nós, como marxistas, queremos desempenhar um papel de sua formação, é necessária uma preparação teórica e prática – marcada por anos de derrotas, sectarismo e timidez – para tal movimento. A TRS pode ser uma contribuição essencial a esta preparação, mas a nova geração de militantes que irão forjar e estimular tal movimento trará, sem dúvida, à TRS uma nova “fusão do pensamento e da ação”, ou seja, sua própria “filosofia da práxis”.

(1) Esta expressão faz referência à obra de Sheryl Sandberd Lean-in: Women, work, and the Will to lead, publicado em 2013. Ela revindica o feminismo de mulheres executivas e CEOs ou chefes de empresas.




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