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A experiência de controle operário dos delegados mineiros em resposta à crise do Covid- 19

quarta-feira 1º de abril de 2020 | Edição do dia

A pandemia do Coronavírus não para de aumentar: há 3 bilhões de pessoas confinadas em todo o mundo. Na França, acabou de ser cruzada a barreira de 2000 mortes e essa situação está apenas começando. No entanto, muitas empresas consideradas não essenciais continuam funcionando e há muitos testemunhos de funcionários obrigados a trabalhar sem proteção ou medidas de higiene adequadas, assim como nos serviços essenciais. Nestas condições,
em que a luta de classes assume diretamente a forma de luta pela vida, se faz necessário o controle dos trabalhadores sobre a produção, pois a solução está na garantia das condições de trabalho e, consequentemente, nas medidas de segurança.

Em tempos “normais” de capitalismo, toda a produção é projetada para que os funcionários não tenham uma opinião sobre o que produzir, nem como se deve produzir. O capitalista é o único "mestre a bordo", auxiliado por engenheiros, gerentes e encarregados. Seu controle sobre o processo de trabalho é exercido através do setor de Recursos Humanos (RH), que analisa e divide o trabalho em diversas tarefas, entre as mais simples e as mais complexas.
Isso é chamado de “organização científica do trabalho”, ou melhor, organização científica do trabalho de outros. Quanto mais "racional" a organização do trabalho, este é mais simplificado, fragmentado, menos qualificado e com menos funcionários no controle da produção. Independentemente do cargo ocupado, seja em um escritório ou em uma linha de montagem, a gerência determina aos funcionários como eles devem realizar seu trabalho.

A questão do controle da produção se tornou um dos maiores desafios da luta de classes dentro das empresas. A reivindicação pelo controle dos trabalhadores pode assumir várias formas, desde abrir os livros de contas, passando pelo controle do ritmo de trabalho, o que basicamente se traduz em questionar o funcionamento "comum" e a legitimidade do chefe em tomar decisões. Por exemplo, no final do século XIX e início do século XX, em alguns ramos, a luta pelo controle da produção opôs profissionais e patrões que queriam decidir sobre a qualificação dos trabalhadores. A “qualificação” dos trabalhadores, frequentemente adquirida no trabalho, era um obstáculo à acumulação de capital. Da mesma forma, durante as crises econômicas, os trabalhadores podem assumir o controle da gestão das empresas que faliram. Nesses casos, o controle é uma questão de sobrevivência econômica para os trabalhadores. Essa reinvindicação pode surgir quando a organização do trabalho representa um perigo para a saúde dos funcionários.

Na França, os acidentes de trabalho só viraram lei em 1898, enquanto que as doenças ocupacionais não tinham sido definidas até 1919. Então, tudo é feito pelos empregadores para não reconhecer um acidente de trabalho ou uma doença profissional, porque aumentam suas contribuições para o seguro de saúde. Ter reconhecimento de uma doença ocupacional é muito complexo, como demonstrou o caso do amianto, em que os chefes tentavam se esquivar enquanto aguardavam a morte das vítimas. Ainda hoje existem dezenas de milhares de funcionários vivendo com doenças ocupacionais (de acordo com algumas estimativas, são mais de 70.000 pessoas, 85% com distúrbios músculoesqueléticos) e estima-se que 1.700 cânceres ocupacionais sejam reconhecidos a cada ano. Por fim, para supostamente promover o reconhecimento de doenças e acidentes de trabalho, a medicina do trabalho, há muito tempo, desempenha um papel ambíguo em relação à saúde dos trabalhadores. Ou os médicos estão em conflito com o chefe, ou os procedimentos para reconhecer uma doença são muito longos, complexos e burocráticos demais para serem favoráveis ​​aos funcionários. Portanto, vemos que a saúde é importante demais para ser deixada nas mãos dos patrões.

O exemplo histórico dos delegados mineiros

Historicamente, a reivindicação pelo controle operário na segurança no ambiente de trabalho foi colocada pelas minas francesas, no final do século XIX. A experiência, chamada "delegados mineiros", é pouco conhecida até hoje, com poucas fontes e estudos realizados, mas podem servir de inspiração na luta pela saúde e segurança dos funcionários enquanto parte da luta contra o coronavírus.

Por ser considerado particularmente perigoso, o trabalho nas minas resultou em numerosos acidentes fatais. Os acidentes não eram somente frequentes, como também não haviam leis que protegessem os trabalhadores. Sob essas condições, os mineiros estabeleceram os "delegados mineiros", cuja função era controlar a segurança de maneira preventiva, para limitar os acidentes e determinar suas causas e os responsáveis. Esses delegados foram eleitos diretamente entre e pelos trabalhadores, agindo como um verdadeiro contrapeso nas minas, pois desafiavam a autoridade do chefe sobre a organização e a segurança no local de trabalho. Pouco a pouco, essa medida se espalhou para o restante da categoria.

Um dos desafios era fazer esses delegados serem reconhecidos rapidamente.
Em um congresso socialista de trabalhadores no Oriente, em 6 de junho de 1881, Michel Rondet, um antigo militante mineiro, pediu o reconhecimento, por lei, dos delegados de segurança dos trabalhadores das minas. Os delegados das minas exigiram que eles pudessem acompanhar os guardas no local dos acidentes e redigir atas conjuntas. Pois, até então, a ata era amplamente favorável às empresas, seja porque a administração encontrou um meio de corrupção, ou por falta de conhecimento prático dos inspetores de minas. Em 1882, a Câmara Sindical dos Mineiros de Saint-Etienne endossou essa ideia, que foi apresentada na forma de lei à Assembleia Nacional, apoiada por Jean Jaurès. Em 1883, essa discussão foi retomada pela Federação Nacional de Mineiros.

A lei de 8 de julho de 1890, aprovada com o apoio dos socialistas, finalmente reconheceu o papel dos delegados mineiros de segurança. Eles têm a função oficial de elaborar relatórios de suas visitas às galerias subterrâneas, após acidentes, ou quando acompanham os inspetores de minas. No entanto, seu trabalho está repleto de incidentes e obstáculos: o chefe faz de tudo para reduzir o horário dos delegados, a frequência de suas visitas às galerias, ou impede que eles se interessem por outros assuntos além da segurança. Além disso, sob o efeito de sua institucionalização, os delegados perdem sua liberdade de ação. Agora, eles são exclusivamente responsáveis ​​em "examinar as condições de segurança dos trabalhadores e, por outro lado, em caso de acidente, as condições sob as quais ele teria ocorrido". O artigo 11 da lei ainda prevê o cancelamento de qualquer eleição na qual um candidato esteja interessado em outro assunto que não a segurança. Por fim, há o problema das condições para ser eleito delegado. A lei estipula que você deve ser de nacionalidade francesa, ter mais de 25 anos e saber ler e escrever, o que exclui cerca de dois terços dos mineiros ... Por outro lado, estipula que nenhum membro da administração pode ser eleito delegado e que mineiros também podem eleger alguém que parou de trabalhar nas minas em até três anos. Isso possibilita eleger mineiros demitidos por fazerem parte da organização sindical e escolher alguém que não estará sujeito à autoridade dos patrões, por exemplo.

Em uma carta de Trotsky, de 1931, sobre o controle dos trabalhadores [1],
ele lembra que o controle da produção pelos funcionários resulta em uma forma de poder duplo na empresa e, portanto, em uma situação contraditória e conflitante. Não tem nada a ver com "participação" ou "cogestão", para usar termos mais contemporâneos, pois são modelos de colaboração de classes. No caso dos delegados mineiros de segurança, a luta por seu reconhecimento levou à sua institucionalização gradual. Ao longo dos anos, eles se tornaram representantes da equipe, eleitos por uma lista sindical, como a conhecemos hoje. Seu potencial subversivo para controlar a segurança e contestar as prerrogativas da patronal lhes foram tirados, em favor do gerenciamento diário das condições de trabalho.

Covid-19 e a luta pelo controle das medidas sanitárias

O exemplo dos delegados mineiros, apesar de seus limites, mostra que é possível exercer controle sobre as condições de trabalho para garantir a segurança dos trabalhadores. Hoje, pode-se dizer que a luta pelo fechamento de empresas não essenciais; e o controle e garantia de condições de segurança adequadas para os setores essenciais no gerenciamento da crise, são duas maneiras de colocar a perspectiva do trabalhador no controle da situação.

Os exemplos dos aeroviarios na região de Toulouse, ou do transporte público na região de Paris, mostram que é possível lutar concretamente por essa perspectiva. Nas oficinas de Haute-Garonne,, polo da Airbus, a CGT solicita a criação de um comitê de controle de medidas de saúde em caso de retomada ao trabalho, com total independência da administração. Esse comitê deve ser capaz de reunir funcionários eleitos e qualquer funcionário que seja voluntário.
No caso do transporte público na região de Paris esse comitê poderia reunir usuários, também expostos à falta de medidas de higiene por parte da RATP ou da SNCF. Como nas minas do século XIX, não se pode confiar nos patrões para implementar medidas de saúde e segurança nas empresas.

Até o momento, as lideranças sindicais se mostraram aquém dessa orientação. Os mais traidores pedem abertamente uma união sacra com a Medef [2] e o governo, as mesmas pessoas que acabaram de dar ordens para tornar possível aumentar as horas de trabalho em até 60 horas por semana, ou que exigem que as pessoas vão a pé ao trabalho, para sustentarem a economia. Philippe Martinez, que se diz de esquerda, solicitou que o governo elabore uma lista de atividades "essenciais para a saúde e a vida dos cidadãos".

No entanto, é impossível confiar no governo de Emmanuel Macron para estabelecer essa lista, como está sendo mostrado por sindicalistas e grupos combativos, que se opõem à retomada do trabalho. É por isso que a CGT deve interromper de uma vez por todas as discussões com esse governo, que já pretende nos fazer suportar os efeitos da crise econômica que se aproxima, ao mesmo tempo em que oferece presentes aos empregadores. O exemplo da Itália mostra que as promessas dos governos europeus de fechar os serviços não essenciais é, na verdade, uma grande mentira. Enquanto o governo de Giuseppe Conte havia prometido encerrar atividades não essenciais, a Cofindustria, a Medef italiana, fez lobby para que os setores "de importância estratégica para a economia" fossem incluídos. Fábricas de armamentos, da aeronáutica, texteis etc. continuaram em operação ... tudo isso antes que uma greve ocorresse na quarta-feira, 25 de março, difundida por centenas de enfermeiras e pela equipe de enfermagem, em que declararam " É hora de entrar em greve. Saúde e segurança acima de tudo! Embora nossa [participação] em greves seja apenas simbólica - um minuto de rotação com o pessoal da guarda, entre 13h30 e 14h30 -, pedimos que você faça uma greve. [Faça greve] por nós também. ”

Ao invez de um acordo "à italiana", que é apenas uma variante da união sagrada exigida por Macron, o controle dos trabalhadores, sobre a segurança e a produção, é nossa única solução para a crise sanitária.

Notas:

[1] Trotsky, « Au sujet du contrôle ouvrier de la production », 20 août 1931. Disponível em : https://www.marxists.org/francais/trotsky/oeuvres/1931/08/lt19310820c.htm

[2] Medef - Mouvement des Entreprises de France, existe desde 1998, é a maior organização de empregadores da França.




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