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CORONAVÍRUS | EDUCAÇÃO | A educação e o papel do ensino em tempos de coronavírus

sexta-feira 27 de março de 2020 | Edição do dia

O debate sobre o enorme isolamento social preventivo domina o mundo. Em relação à educação, não há muito debate "alternativo". As políticas públicas oficiais que proclamam o isolamento como a única medida viável, juntamente com o medo e a ignorância, fizeram dos sistemas educacionais o foco da atenção e foram suspensos de forma maciça e abrupta de todas as atividades, em quase todos os países do planeta.

A UNESCO publicou um relatório que garante que "quase 80% da população estudantil do mundo não frequenta a escola devido ao COVID19". Existem 1.370 milhões de estudantes sem frequentar escolas em todo o mundo, de 138 países, como China, Itália, Espanha, Coréia do Sul e Argentina, que decidiram pelo isolamento social preventivo. Em todo o mundo, as sociedades valorizam o trabalho on-line de ensino, mas nos perguntamos: qual é o seu escopo? É possível que chegue a todos? Existe uma divisão digital? Por sua vez, os governos estão calculando quanto os capitalistas perdem com a suspensão das aulas. Eis os alcances e as contradições da pedagogia em tempos de coronavírus.

Uma nota no jornal The Economist, avalia que “são limitados os dados sobre a efetividade do fechamentos das escolas para desacelerar o Covid-19”. As crianças podem não ser as "principais vias de transmissão", diz Michael Head, que estuda saúde global na Universidade de Southampton. E os custos econômicos, sociais e educacionais são pesados. Em 12 de março, Bill de Blasio, prefeito de Nova York, disse que havia "muitas e muitas razões" para não fechar as 1.800 escolas da cidade (embora em 16 de março tenha fechado, encerrando o maior sistema escolar dos Estados Unidos por, pelo menos, quatro semanas) ”. Na história, é difícil encontrar outros casos como esse.

Outro exemplo é Cuba, onde medidas higiênicas foram implantadas nas escolas, como lavagem das mãos e limpeza geral da instituição, principalmente em cozinhas e refeitórios, mas que são ações necessárias a qualquer momento. Em suma, os testes diários de febre foram realizados em escolas de educação infantil e primárias, com o objetivo de que as crianças que tenham sintomas não apresentem risco para os outros e sejam enviadas para os centros de saúde. Até agora, com base nessa política em Cuba, as escolas não pararam, com um esforço conjunto entre saúde e educação. As universidades também continuaram com suas aulas habituais e aderiram aos planos de prevenção e ação.

Em relação à questão educacional, com o avanço do contágio em todo o mundo, abrem as questões sobre quem cuida dos filhos de homens e mulheres trabalhadores do setor de serviços essenciais, como saúde, serviços e transporte? Com quem as mulheres que trabalham cuidando de outras pessoas podem deixar seus filhos?, entre outras. Isso afeta o funcionamento das escolas e gera um "distúrbio" que deve ser planejado e atendido.

Em todas as partes do mundo as questões são semelhantes e, entre outras definições e funções, as escolas desempenham um papel no “cuidado das crianças”, que fica a cargo das trabalhadoras e dos trabalhadores da educação, para que as famílias possam trabalhar e economizar "esta despesa" dos capitalistas, sempre a favor de seus lucros. O custo da suspensão das aulas tem uma relação direta com o PIB, com a necessidade do capitalismo e dos governos assistirem as crianças, de sustentar o sistema educacional mesmo em sua forma mais precária, enquanto suas mães e pais são explorados em seus empregos.

Dois lados da mesma moeda

Essa função de "zelador" é combinada com a realidade de que as escolas públicas estão se tornando cada vez mais campos de treinamento de negócios financiados pelo Estado. Vemos isso em estágios e outras atividades que se preparam para o "mundo do trabalho". As escolas públicas também são espaços onde a força de trabalho (do futuro trabalhador) se reproduz social e ideologicamente. Como no caso da saúde pública, na educação, o Estado desembolsa alguns recursos para a reprodução social da força de trabalho.

Podemos ver, desde currículos e padrões educacionais, até métodos, que se concentram cada vez mais na preparação das crianças para as demandas do mundo do trabalho e menos em seu abrangente desenvolvimento cognitivo e necessidades imediatas. Nos EUA, por exemplo, os CEOS de tecnologia, como Bill Gates e Mark Zuckerberg, do Facebook, argumentam que a programação deve ser ensinada desde muito jovem, embora as escolas particulares de maior prestígio no Vale do Silício não permitam computadores na sala de aula. Além disso, estão muito em voga a renomada educação emocional e suas propostas de "treinamento" e bloqueio de sentimentos chamados "negativos", com todo tipo de estratégias adaptativas e de regulação emocional. Como já expressamos em várias notas neste Diário, há uma agenda imposta pelas empresas de acordo com suas necessidades, como a das chamadas neurociências, com seus programas e propostas pedagógicas que estão sendo difundidos em todo o mundo.

Educação 2.0, um fosso digital?

Mas, diante da crise iniciada pela pandemia, as diretrizes e as propostas educacionais estão se impondo sobre os programas, e podemos dizer que, de alguma forma, estão mudando. Diante da impossibilidade da educação presencial, foram os professores de todo o mundo que rapidamente tomaram uma atitude sobre o assunto e, com os mesmos desafios, embora não as mesmas possibilidades, tiveram que elaborar criativa e conjuntamente diferentes maneiras de educar.

A educação argentina, em seus vários sistemas provinciais e municipais, com 12,5 milhões de meninos, meninas e jovens e 1,2 milhão de professores, passou de ser presencial à distância em 4 dias (virtual ou não, de acordo com os contextos e as possibilidades), devido à crise do coronavírus. Uma enorme capacidade de mudar de um sistema para outro, que se fosse realmente para todos, com orçamento e insumos, seria de uma força criativa emocionante. Em contrapartida, muitas questões foram colocadas, como as fraquezas materiais do ensino on-line. O limite fundamental é que muitos de nossos alunos não têm a menor possibilidade de acessar um computador ou telefone celular de qualidade e, principalmente, a Internet. Enquanto os professores estão nessa corrida frenética por não deixar milhões de estudantes sozinhos, muitas empresas, projetos e fundações que anunciam plataformas educacionais capitalistas vêem uma oportunidade interessante no meio da crise e mostram suas garras. Sem mencionar os aplicativos sugeridos para salas de aula virtuais, que são negócios do Google, como HangOut, Google Classroom ou Meet-up, Edmodo. Google, Microsoft, Snappet, Blinklearning, YouTube, WhatsApp e inúmeras empresas que há tempos buscam formas de se apossar das salas de aula e, como em todas as crises, sempre há quem veja uma oportunidade para os negócios.

No mundo, recursos on-line são cada vez mais populares e, com essa pandemia, eles entraram em cena. Mas poucos países têm uma infraestrutura digital desenvolvida para todos os estudantes. Como amostra, apenas nos Estados Unidos, 7 milhões de crianças em idade escolar não podem acessar a Internet em casa. Na Argentina, empresas privatizadas como a Telefónica, somente nesta terça-feira, 24 de março, concordaram em não cortar o serviço por falta de pagamento, embora a quantidade de megabytes e a velocidade também diminuam. É difícil obter uma aula virtual se um 3G já expirado não chegar, ou se você não tiver uma impressora básica.

Na Argentina, a educação à distância tem sido utilizada principalmente nos estudos superiores. Mas isso não é generalizado. No ensino inicial, primário e secundário, é um desejo até ter alguma conectividade. O problema do orçamento é um limite específico. Na educação argentina, herdada das leis da última ditadura militar, as escolas são dirigidas pelas províncias e não pelo estado nacional. Por esse motivo, ao mesmo tempo em que o Ministério da Educação da Nação desenvolveu uma plataforma digital, as províncias estavam definindo como implementariam o ensino à distância em cada distrito. 24 sistemas educacionais que, de um dia para o outro, tiveram que ser atualizados, apresentando uma desigualdade muito grande entre os distritos, onde, claramente, as possibilidades não são iguais por área. As áreas rurais nem sequer têm conteúdo pedagógico por meio de rádios, que poderiam atingir a população, e o Estado só poderia implementar com vontade política.

De acordo com a revista Jacobin, nos Estados Unidos, os esforços dos professores de Cambridge para garantir que seus alunos mais marginalizados não tenham fome ou fiquem desconectados são surpreendentes. Os alunos foram enviados para casa com pacotes de trabalhos de casa, livros da biblioteca, instrumentos musicais e um Chromebook do Google para conectar-se virtualmente com os professores durante o intervalo inesperado. Mas em Cambridge, como em muitas outras cidades dos EUA, nem todos os estudantes têm acesso à Internet em banda larga em casa.

Acesso e qualidade: uma questão de classe

A classe dirigente da Argentina, desde as origens da formação do Estado, projetou um sistema educacional de acordo com seus próprios objetivos. A educação nunca esteve separada dos seus interesses de classe, apesar de sua aparência de neutralidade e universalidade. Para cada "projeto de país", para cada esquema de acumulação capitalista, havia um projeto específico para "adaptar" a educação aos interesses da burguesia nacional e estrangeira. Hoje, responde internacional e nacionalmente às necessidades do capital para precarizar ainda mais a força de trabalho, com milhões de jovens entrando para trabalhar no "capitalismo de aplicativos", como Rappy, O´Globo, Requests Now e Ubber, entre outros. Na Argentina e na América Latina isso é aprofundado com a interferência do imperialismo da mão do FMI, que tem planos de saque na região.

No entanto, um pilar ideológico que a burguesia impôs à estruturação da educação é que ela se baseia em uma suposta igualdade. E aí reside a expectativa e a esperança de milhões. Isso explica a sensação de que "tudo estava bem até a pandemia". Sabemos bem que isso é uma ilusão e que as condições materiais da existência fazem diferença no que diz respeito à escolaridade. Longe da resignação, os trabalhadores da educação em todo o país, historicamente, fazem esforços extenuantes em diversos contextos, mas, mesmo assim, a educação ainda reflete a miséria e pobreza da sociedade.

Resta então nos perguntar, no calor da enorme força e reconhecimento demonstrados pelos professores em todo o mundo, como podemos controlar cada vez mais as informações que as escolas e os ministérios da educação enviam e mantêm? Como uma aliança indissolúvel pode realmente ser criada com as famílias que trabalham? Os grupos do WhatsApp (ou outras redes de comunicação) trabalham com as famílias para a transmissão de informações e consultas sobre as necessidades dessas famílias? É possível lutar pela democratização total das instituições de ensino, com operações por assembléias, posições revogáveis, projetos votados de baixo para cima, junto à comunidade? É válido perguntar aos alunos o que desejam estudar e qual é a melhor maneira?

Consideremos, por exemplo, como seria se pudéssemos impor aos governos que eles garantissem que nenhuma família fique sem Internet e sem comunicação, com a reabilitação de todas as linhas desativadas ou retiradas por falta de pagamento e adiamento do vencimento das contas. Redes de wi-fi gratuitas ou modem sem fio, onde não há zona wi-fi. Equipamento e serviço de telefonia fixa e/ou móvel gratuita por empresas de telecomunicação. Entre outras medidas que podem ser tomadas para começar a pensar em "igualdade".

Os trabalhadores à frente

A predisposição e a organização docente (onde muitos estão aprendendo como transmitir o ensino on-line, enviar materiais para uma plataforma, enviar arquivos e outros procedimentos) pode dar a impressão de que tudo pode funcionar de alguma maneira. Mas hoje é difícil fazer um balanço global do impacto.

A educação pública, decorrente de um processo de degradação abrangente de seus aspectos estruturais, financeiros, pedagógicos e das próprias condições de trabalho e de vida de professores e alunos, enfrenta o desafio diante dessa nova crise, com sua vasta experiência em garantir que a educação continue, apesar da realidade material.

Isso revela, na Argentina e em todo o mundo, o papel fundamental de milhões de trabalhadores da educação, em seus diferentes níveis, intimamente ligados a todas as comunidades e suas realidades. O profundo conhecimento da realidade vivida pelas famílias que frequentam a escola e seus laços estreitos são de um potencial enorme. A isto se acrescenta a questão territorial, sabendo que existem escolas em cada bairro de todas as cidades, como nas áreas periféricas ou rurais.

Famílias escolares

Nos Estados Unidos, existem cerca de 26 milhões de crianças nas escolas, cerca de metade de todos os estudantes, que recebem almoços grátis ou a preço reduzido. O que aqui seriam os restaurantes ou cantinas escolares. Somente na cidade de Nova York, 22.000 crianças dormem em abrigos municipais. Na Espanha, 12,3 milhões de pessoas estão em risco de pobreza, 26,1% da população. E poderíamos continuar com os exemplos que, em números, são mais impressionantes para a América Latina. A situação de desamparo infantil deve ser uma discussão mundial. Na Argentina, já se fala que ao final desta crise (ainda imprevisível em sua extensão e profundidade), a pobreza pode aumentar entre 3 e 5%. Ou seja, os meninos das escolas públicas, quando tiverem que voltar, estarão em pior situação do que antes.

Sabemos que a quarentena não é a mesma para todos. Em 2017, foi realizado, pelo Ministério Público da Defesa e pela Ouvidoria, o último censo de pessoas em situação de rua na cidade de Buenos Aires. Das 7.000 pessoas nessa condição, 4.400 estavam dormindo nas ruas e 1.500 em abrigos. A maioria deles não tinha um emprego fixo ou programas sociais, sobreviviam com gangues. Os números não param por aí. Mais de um milhão de pessoas têm "necessidades de moradia". Elas vivem aglomeradas em vilas, assentamentos ou hotéis dispersos. Segundo o Escritório do Ombudsman, 70% das famílias de inquilinos da cidade de Buenos Aires ficam abaixo da linha da pobreza depois de cobrirem os custos de moradia. Somando-se a esses problemas, devemos acrescentar o terrível serviço de alimentação do Governo da Cidade de Buenos Aires, as milhares de vagas que faltam na escola pública, os precários Centros de Educação Infantil e muitos outros, deixando essas pessoas sem o direito à educação, já que não podem pagar uma escola particular. E isso se repete em todo o país, com exemplos terríveis como o da infância Wichi em Salta, onde as mortes continuam em meio à pandemia, ou as soluções miseráveis, de Suárez, em Mendoza, entregando sacolas de alimentos que são realmente uma falta de respeito pelas famílias trabalhadoras de bairros populares.

Por outro lado, o papel das organizações sindicais, que deveriam ser muito mais do que as reivindicações salariais ou corporativas, poderiam ser uma poderosa alavanca que move os trabalhadores e suas famílias, o que é quase toda a população. Na Argentina, a CTERA (Confederação dos Trabalhadores da Educação) é um dos sindicatos nacionais realmente existente que organiza centenas de milhares de professores em todo o país. Esses sindicatos poderosos, em aliança com as organizações sociais que trabalham em bairros e centros estudantis, poderiam rapidamente reorganizar a sociedade sob outros parâmetros e com medidas de segurança e higiene, que hoje existem, na maioria dos casos, apenas por causa da vontade e ação da classe trabalhadora. Em vários sindicatos educacionais e seccionais, liderados pela oposição anti-burocrática, foram denunciadas a falta de alimentos, em quantidade e qualidade, e de materiais de higiene, e são os professores que estão se organizando para distribuir os materiais e continuam a fazer as exigências aos governos para que alimentem a população. Na maioria dos casos, eles fazem isso apesar da inércia das direções sindicais.

Mas, falando em educação, isso não é tudo

As professoras e os professores têm uma tarefa enorme: contribuir para o próprio processo educacional e, ao mesmo tempo, para a construção de uma realidade diferente, que permita outra educação. O "sucesso" de Cuba, onde a saúde e a educação são de importância decisiva, é o produto de uma conquista do processo revolucionário que ainda persiste, apesar do regime político e para onde o regime está indo. Lá foi necessária uma revolução que expropriou os expropriadores. A partir dessa base, ele foi capaz de desenvolver uma revolução em áreas como educação e saúde.

Como socialistas, sabemos que o verdadeiro acesso à cultura, educação, artes, etc., não virá das mãos da burguesia, nem em tempos de relativa estabilidade, quanto mais em uma crise de tal magnitude. Somos nós, os trabalhadores da educação, estudantes e famílias que lutam incansavelmente pelo direito à educação gratuita, pública, científica e laica. E pensamos que isso não é apenas na escola, mas como parte de uma vida mais plena.

É por isso que temos que nos apropriar do conteúdo, dos métodos, das formas de transmissão, da própria organização das escolas, lutando todos os dias para que a educação esteja disponível para todos. O Estado tem que fazer sua parte, porque fala sobre igualdade de oportunidades e direito à educação, mas sabemos que permanece no discurso. É necessário mais financiamento e garantia de acesso real de tudo, para todos.

Nós, como trabalhadores da educação, continuaremos tentando diferentes maneiras de fazer as coisas para a maioria e preparando uma verdadeira transformação social. Este ensaio em meio à pandemia, na preparação de uma educação a distância, mas, para todos, também nos proporciona uma rica experiência. Cada experiência em termos pedagógicos, de organização e solidariedade que se desdobra neste momento, é um material vital para (re) pensar escolas e trabalhadores da educação, em organização comum com a comunidade, na ofensiva para poder inventar a reorganização da sociedade sob outros valores não capitalistas.




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