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TEORIA | A diferença entre as teorias da demanda efetiva em Rosa Luxemburgo e Keynes

Esse artigo busca demonstrar que apesar de uma aparência extrínseca e formal de proximidade, posto que ambos explicam as crises capitalistas pelos limites da demanda efetiva, os pensamentos de Rosa Luxemburgo e John Maynard Keynes estão em campos opostos e são contrários em seus pressupostos e resultados.

segunda-feira 12 de setembro de 2016 | Edição do dia

A crise capitalista que se arrasta com fluxos e refluxos já a quase uma década e pode ser caracterizada assim como uma das mais longas da história do sistema, que tem características análogas a crise que marcou o fim do capitalismo de livre-concorrência e o começo da época imperialista no final do século XIX, colocou em xeque o consenso que primou no mainstream econômico durante a etapa de restauração burguesa e pressiona à busca de novos paradigmas na tentativa de entender a economia capitalista e suas crises.

O consenso neoliberal que predominou durante toda década de 90 e começo do novo século entra em declínio posto sua incapacidade de explicar a grande crise que se expressa, fruto de sua confiança dogmática e reacionariamente utópica na auto-regulação do mercado. Passa a existir entre os economistas um renovado interesse pelas escolas vistas como heréticas em relação a ortodoxia neoliberal.

Os recordes de vendas d’O Capital’ de Marx, dentro do campo do pensamento crítico ao capitalismo, o protagonismo de economistas que rompem com o paradigma neoliberal do não intervencionismo do estado e que se reivindicam adeptos das teorias de Keynes, como Paul Krugman ou Joseph Stiglitz, são só alguns símbolos desse novo momento de crise do paradigma anterior e busca por novos caminhos e escolas de pensamento que possam explicar os fenômenos econômicos que não se encaixam nas pobres teorias dos falsos sábios do pensamento liberal moderno.

O interesse pelo pensamento econômico marxista e a retomada do pensamento keynesiano, que apesar de um economista eminentemente burguês, preocupado direta e expressamente com a manutenção da ordem capitalista, é visto como grande herético pelos dogmáticos liberais, é expressão teórica da busca por explicações mais profundas dos porquês da crise estrutural capitalista que passamos.

Entre os grandes teóricos das crises no campo do marxismo está a dirigente revolucionária polonesa Rosa Luxemburgo; seu livro ‘A Acumulação do Capital’, publicado em 1913, é marco importante para esse debate e também para a teoria do imperialismo. Com os limites e equívocos contidos na obra, que o autor dessas linhas tentará expor no presente artigo, Rosa tem o grande mérito de ter colocado essa discussão de forma profunda no seio da cada vez mais adaptada social-democracia alemã.

Entre os economistas burgueses o grande teórico das crises é John Maynard Keynes, sua ‘Teoria Geral do e Emprego, do Juro e da Moeda’ sendo marco importante no pensamento econômico capitalista, vista como uma ‘’revolução’’ em grande parte das histórias econômicas que partem do ponto de vista do capital.

Ambos os autores partem como elemento chave para explicar as crises capitalistas dos limites da demanda efetiva, da capacidade socialmente determinada, dentro de relações específicas, da sociedade de absorver o produto social, a oferta de mercadorias. Ou seja, é a demanda real, baseada numa capacidade concreta de comprar as mercadorias, demanda solvente, baseada na capacidade monetária, não só no desejo subjetivo de adquiri-las, e os limites dessa demanda efetiva, o fator essencial que explica as crises. No entanto, essa aparente proximidade na explicação das crises entre os dois economistas é apenas isso, aparente, posto que a semelhança das explicações se dá apenas por elementos exteriores e formais sendo que na realidade a explicação de ambos para as crises é extremamente distante. É na busca de dissipar uma possível confusão que esse elemento meramente formal pode gerar que é escrito esse artigo, como forma de tentar mostrar que por traz dessa aparente proximidade entre as teorias de Rosa e de Keynes há uma distância enorme na explicação das crises entre os dois.

Partindo de pontos de vista de classe antagônicos, que se refletem e projetam em pressupostos teóricos também antagônicos os dois economistas darão respostas profundamente distintas sobre as causas e a capacidade dos capitalistas de evitarem novas crises, por exemplo.

Esclarecer a distinção entre o pensamento desses dois economistas assim é fundamental, penso, para compreender de forma mais profunda as causas das crises capitalistas dentro de um ponto de vista marxista. Esse artigo se pretende o primeiro de uma série sobre essa questão da demanda efetiva dentro do pensamento marxista, que discuta também a polêmica do jovem Lenin contra os economistas populistas na Rússia no final do século XIX, as contribuições e equívocos do “marxista legal” russo Tugan –Baranovsky sobre essa questão e a resolução desse problema por Marx, principalmente em suas ‘Teorias da Mais-Valia’. Feito esse preâmbulo passemos a discussão efetiva, portanto.

O livro de Rosa Luxemburgo e a Social-Democracia Alemã

A publicação do livro de Rosa Luxemburgo ‘A Acumulação do Capital’ em 1913, as vésperas da primeira guerra mundial, causa um amplo e áspero debate dentro da social democracia alemã, algo que causa bastante surpresa na autora, posto se tratar de um tema econômico relativamente abstrato e aparentemente distante da atuação política imediata.

Tendo como objeto de estudo as formas de reprodução ampliada e acumulação no capitalismo Rosa busca relacionar esse debate com o novo fenômeno que se desenvolvia desde o final do século XIX e começo do XX, o imperialismo. Assim, o estudo de Rosa é uma tentativa de explicar a necessidade do imperialismo a partir das contradições do desenvolvimento da reprodução ampliada do capital e de sua forma específica de acumulação; outro elemento fundamental da obra é a tentativa de mostrar que existem limites objetivos, materiais, econômicos, ao desenvolvimento do capitalismo, dando dessa forma uma base objetiva para as aspirações e o projeto socialista.

Nesse sentido, o livro de Rosa Luxemburgo é parte do movimento que começa dentro da social-democracia internacional daquele período de busca por explicar o novo fenômeno imperialista a partir do instrumental marxista, movimento em que estão inseridos também as obras ‘O Capital Financeiro’ de Hilferding, os debates de Kautsky e Bukarin sobre o imperialismo e posteriormente a obra de Lenin ‘O imperialismo, fase superior do capitalismo’.

O livro de Luxemburgo, no entanto, é o que sofre os ataques mais virulentos, mais profundos; sem descartar que possa ter havido uma boa dose de machismo nos ataques, algo que o autor dessas linhas só pode levantar como hipótese, posto que para afirmá-lo seria preciso uma pesquisa histórica particular, o principal elemento que leva a fúria da direção social-democrata oficial naquele momento e principalmente os representantes teóricos do que se convencionou chamar de austro-marxismo (Hilferding, Otto Bauer, Max Adler, etc), que se encarregaram de refutar teoricamente Rosa, será sua afirmação de que existem limites materiais e econômicos, objetivos, a reprodução ilimitada da sociedade capitalista.

O autor dessas linhas vê efetivamente como um equivoco de Rosa Luxemburgo ter associado de forma muito direta e imediata os limites objetivos e materiais do capitalismo, que efetivamente existem, a limites econômicos. O limite material e objetivo do capitalismo é o desenvolvimento e aprofundamento da luta de classes, do qual a reprodução ampliada do capital é apenas um dos aspectos, apesar de ser aspecto fundamental. As contradições e crises resultantes da reprodução ampliada do capital tendem a se refletir e projetar numa luta entre as classes cada vez mais encarniçada, que a partir de um determinado momento não pode ser mais absorvida dentro dos marcos da sociedade burguesa e é essa luta entre as classes cada vez mais profunda o limite objetivo do capitalismo, não um limite puramente econômico; mesmo porque não existe um puramente econômico, uma economia pura, posto que a economia é expressão limitada e unilateral da totalidade de uma formação econômico social.

Apesar desse limite do pensamento de Rosa, no entanto, ela tem o grande mérito de ter colocado no centro do debate dentro de uma social-democracia cada vez mais adaptada aos marcos do reformismo capitalista que existem limites objetivos e materiais para o desenvolvimento do capitalismo, que o objetivo socialista dos revolucionários não é expressão e fruto de um simples desejo subjetivo, ou uma questão abstratamente ética, um “imperativo categórico”, o que faria o socialismo voltar passos atrás num debate próprio do moralismo dos socialistas utópicos, mas que esse elemento moral e ético que se expressa no pensamento socialista é antes reflexo e projeção de limites materiais e objetivos da realidade capitalista, expressão do aprofundamento de suas contradições e da consequente resistência e luta cada vez mais radical do proletariado.

É essa afirmação de que existem limites materiais e objetivos ao desenvolvimento do capitalismo que irá chocar e enfurecer os intelectuais centristas que se colocavam como representantes do marxismo. Como bons centristas que eram, Hilferding, Otto Bauer, Max Adler e afins, ou seja, os principais representantes do austro-marxismo, queriam manter sua confortável posição de escreverem livros críticos e com uma fraseologia radical enquanto na prática sustentavam o rumo cada vez mais decididamente pró-capitalista da social-democracia, sua adaptação cada vez maior em deixar de ser um partido da revolução social para se tornar o partido das reformas dentro dos marcos da sociedade burguesa.

O livro de Rosa Luxemburgo, com seus limites e equívocos, que discutiremos abaixo, não deixava margem para esse tipo de política adaptada e hipócrita; colocava claramente as coisas as claras e de forma evidente. Os teóricos do austro-marxismo, principalmente, assim como sequazes de menor capacidade teórica no seio da social-democracia alemã, escreverão rios de tinta na triste posição de buscar mostrar que não existiam limites materiais e objetivos ao desenvolvimento ampliado do capital, que era possível sim uma reprodução ampliada ilimitada das relações capitalista e que portanto o socialismo era uma questão moral, uma escolha ética, um “imperativo categórico”, algo puramente subjetivo, sem nenhuma base objetiva e material nos limites do próprio capital.

As críticas de Rosa Luxemburgo aos esquemas de reprodução do Livro II do Capital

Um os elementos mais combatidos pelos austro-marxistas na obra de Rosa será a critica da revolucionária polonesa aos esquemas de reprodução ampliada do capital presentes no segundo volume da grande obra de Marx.Com uma visão criativa, não dogmática, apesar de ortodoxa, do marxismo Rosa irá mostrar que ser marxista não é reproduzir de forma esquemática todas as afirmações de Marx, mas sim se ligar ao espírito revolucionário e proletário de sua obra. Os críticos de Rosa Luxemburgo em vários sentidos reproduziram uma crítica oportunista e falsamente ortodoxa, na verdade dogmática, como se a simples crítica aos esquemas de reprodução expressos no livro II fossem uma heresia inaceitável por parte de Luxemburgo.

O autor dessas linhas, no entanto, vê efetivamente a crítica de Rosa aos esquemas de reprodução ampliada do livro II do Capital como contraditórias, para dizer o mínimo. Não porque seria uma heresia criticar aspectos do pensamento de Marx (pois apesar de sua genialidade ele também era humano e portanto certamente passível de erros) mesmo no campo do marxismo, mas porque a crítica de Rosa parte efetivamente de pressupostos metodológicos equivocados.

Assim, a crítica dos austro-marxistas a Rosa Luxemburgo é equivocada pois parte do elemento meramente formal e extrínseco de que ela crítica Marx, uma crítica dogmática portanto. É ainda mais errada, pois busca tirar conclusões totalmente estranhas ao pensamento marxista daqueles esquemas de reprodução, como se Marx ali quisesse provar a possibilidade da reprodução ilimitada do capitalismo.

A crítica de Rosa aos esquemas de reprodução do livro II contraditoriamente partem de pressupostos metodológicos análogos a de seus críticos austro-marxistas, como se nesses esquemas Marx estivesse buscando refletir a concretude das formas de reprodução ampliada do capital.

Os dois lados se equivocam portanto por não apreenderem o significado metodológico daqueles esquemas, sua função no método de aproximações sucessivas a partir do qual é construído ‘O Capital’; um campo defendendo os esquemas de forma dogmática como se eles refletissem diretamente as formas de reprodução ampliada do capital e Rosa criticando os mesmos esquemas porque esses não refletem de forma correta essa reprodução.

No entanto, os esquemas de reprodução ampliada do capital expressos no livro II não buscam ser um reflexo integral das formas dessa reprodução; sua função metodológica na obra é outra, e a não compreensão disso leva à crítica equivocada de Luxemburgo. Num primeiro nível de abstração dentro do método de aproximações sucessivas com que é construído ‘O Capital’ os esquemas do livro II tem por função mostrar como é possível a reprodução ampliada da produção capitalista mesmo com a anarquia da produção que caracteriza esse sistema.

Se baseando na tabela econômica do fisiocrata francês Quesnay Marx mostra como apesar dessa anarquia é possível que se estabeleça um equilíbrio relativo e sempre parcial, fruto de múltiplas interrupções e gargalos, entre o setor I da economia (que produz os meios de produção) e o setor II (que produz os meios de consumo). Para mostrar essa possibilidade, nesse primeiro nível de abstração, Marx suprime elementos que são chave para a reprodução ampliada do capital, como o papel do dinheiro, do crédito, a composição orgânica do capital e seu aumento, os mercados externos, etc.

Nesse sentido, longe de mostrar a possibilidade de uma reprodução ilimitada da economia capitalista, como pensam tanto Rosa Luxemburgo ao criticá-los, como os austro-marxistas, ao defendê-los, os esquemas de reprodução do livro II tem um objetivo bem mais modesto, e correto metodologicamente: mostrar a possibilidade de um equilíbrio relativo e sempre crítico entre o setor I e o setor II da economia, mesmo com a anarquia da produção que caracteriza o capitalismo.

As contribuições e limites da obra de Rosa

A obra de Rosa Luxemburgo ‘A Acumulação do Capital’, portanto, é uma obra contraditória, que tem importantíssimas contribuições ao pensamento econômico marxista assim como encerra importantes limites. Entender essas contribuições e limites é fundamental para que se possa construir uma teoria marxista integral sobre as crises capitalistas, algo que Marx não pode fazer, apesar de apontar caminhos seminais em sua grande obra, posto o caráter inacabado d’O Capital’.

A grande contribuição do livro de Luxemburgo, na opinião do autor dessas linhas, que coloca seu escrito como obra clássica do pensamento econômico marxista é a colocação de que a acumulação capitalista só pode se dar em relação metabólica, de apropriação/dissolução, com os modos de produção pré-capitalistas. Ou seja, nunca é possível um capitalismo totalmente puro, é sempre necessário um entorno não capitalista, ou pelo menos não totalmente capitalista, de que através de um processo de continua “acumulação primitiva” o capital se aproprie, dissolvendo essa antiga forma e transformando ela em formas capitalistas.

Demonstração análoga já tinha sido feita por Lenin no contexto dos debates sobre as possibilidades do desenvolvimento do capitalismo na Rússia, em crítica aos populistas russos que negavam essa possibilidade. Mas a obra de Rosa nessa questão específica vai além da obra de Lenin pois generaliza essa perspectiva da necessidade da relação metabólica com o entorno não capitalista não mais apenas para o desenvolvimento do capitalismo num país atrasado como a Rússia, mas como necessidade imanente do desenvolvimento do capital social total, sendo fundamento para a teoria do imperialismo.

A obra de Rosa é seminal nessa questão também pois supera um limite relativo d’O Capital’ de Marx, dado o caráter inacabado da obra do grande mestre; ainda num primeiro nível de abstração, que começa a ser superado apenas no livro III da obra. Marx. em geral n’O Capital’ parte como base de sua análise das formas de acumulação de uma sociedade composta apenas por burgueses e proletários e cujas relações são totalmente dominadas pelas formas capitalistas de produção. É sabido que nos esquemas para a realização do projeto de escrever sua grande obra econômica tais quais expressos na introdução dos ‘Grundrise’, que partem de níveis mais elevados de abstração até chegar a níveis mais concretos de reprodução da realidade na teoria, a interação do capital com as formas sociais ainda pré-capitalistas, sua relação recíproca no mercado mundial e as crises são o momento final do processo, momento em que as várias mediações teóricas já foram explicitadas e assim o concreto pensado e o concreto como realidade material independente se aproximam, o primeiro refletindo efetivamente o segundo.

Assim, a obra de Rosa Luxemburgo marca um passo importante no pensamento econômico marxista ao explicitar esse necessário metabolismo do capital com formações sociais mais atrasadas, sua necessidade de dissolver essas antigas formas e moldá-las a suas necessidades. Mostra assim Rosa que o violento processo de acumulação primitiva que marcou os primórdios da sociedade burguesa não é algo superado e meramente forma primitiva da acumulação capitalista, mais parte inerente e sempre presente da reprodução ampliada do capital. Ainda hoje a busca pelo imperialismo de dissolver de forma violenta as relações ainda não totalmente dominadas pelo capital no oriente médio, ou as formas de expropriação do campesinato chinês para que esse se torne mão de obra barata nas grandes cidades industriais do país, são formas de acumulação que longe de serem meramente “pacíficas” dentro das relações normais capitalistas são imposições estatais que possibilitam a acumulação da riqueza burguesa.

O grande limite da obra de Rosa, contudo, é não compreender a forma econômica efetiva dessa interação entre o capital dominante e as formas subordinadas de relações pré-capitalistas. Rosa Luxemburgo, nessa questão específica, retoma os erros do economista suíço Simonde de Sismondi e dos populistas russos que negavam a possibilidade do desenvolvimento do capitalismo na Rússia, que já haviam sido criticados por Lenin.

Para Rosa o limite para a acumulação ampliada do capital dentro de um sistema capitalista fechado, que só conte com capitalistas e proletários, é o limite da demanda efetiva capaz de absorver o novo produto criado no novo ciclo produtivo, ou seja, a demanda que não é apenas um desejo subjetivo de consumo, mas é baseada numa capacidade monetária de transformar esse desejo subjetivo em consumo efetivo.

O problema levantado por Rosa pode ser expresso da seguinte maneira, portanto: num primeiro ciclo foram investidas 10.000 unidades monetárias (reais, por exemplo) para a produção do produto total da sociedade, sendo divididos da seguinte maneira; 4.000 foram investidos na produção dos meios de produção (maquinários, insumos, instalações, etc) 3.000 no fundo de consumo dos trabalhadores, no capital variável, 3.000 no fundo de consumo dos capitalistas. Temos, portanto, um produto total da sociedade nesse primeiro ciclo produtivo, que inaugura o processo de reprodução, com o valor de 10.000, expresso nos meios monetários necessários para a realização no consumo desse valor total.

No entanto, o processo de reprodução do capital não é um processo de reprodução simples, mas visa sempre sua reprodução ampliada, visa que o próximo ciclo produtivo parta de um patamar superior ao ciclo que o antecedeu; esse novo patamar da produção tem como base um valor superior no final do primeiro ciclo produtivo do que o valor investido para sua realização; esse valor superior ao investido é o lucro do capitalista. Ao final do primeiro ciclo produtivo, portanto, temos um valor superior ao investido em seu começo, um valor de 11.000, por exemplo.

É aqui que se expressa o problema levantado por Luxemburgo; fruto dos investimentos do primeiro ciclo produtivo, quando os capitalistas do setor I usaram sua capacidade monetária para investir nos meios de consumo tanto para si mesmos quanto para seus operários produzidos pelos capitalistas do setor II e esses usaram sua capacidade monetária para adquirir os meios de produção produzidos pelos capitalistas da setor I, e dado que a capacidade do consumo dos operários é limitada aos gastos dos capitalistas com o capital variável e os gastos dos capitalistas para seu consumo limitados pelo fundo de consumo estabelecido de antemão e que permite uma acumulação ampliada (posto que se os capitalistas consumissem todo o novo produto não haveria possibilidade de ampliação da produção) a capacidade monetária total de consumo da sociedade é de 10.000 frente a um novo produto saído desse ciclo produtivo que é agora de 11.000. De onde vem a capacidade monetária, a demanda baseada em uma possibilidade monetária efetiva, de consumir esse novo produto de 1.000 que saiu do antigo ciclo produtivo? Rosa Luxemburgo responde que essa capacidade de consumo vem das formas econômicas mercantis ainda não totalmente submetidas ao capitalismo. Ou seja, é a interação entre o capitalismo e seu entorno ainda não capitalista, a relação reciproca de trocas entre esses dois elementos, que garante o mercado, a demanda efetiva, para a produção capitalista.

Apesar do problema da demanda efetiva e da consequente superprodução serem problemas reais da economia capitalista (diferente do que pensam economistas como Henryk Grossman e Paul Mattick, que veem na queda tendencial da taxa de lucro a causa única das crises capitalistas) a solução que dá Rosa a essa problemática é equivocada. Se o problema da superprodução e demanda efetiva no capitalismo fosse unicamente ou mesmo principalmente o problema da falta da capacidade monetária para o consumo as possibilidades dos burgueses associados de superarem esse problema seriam relativamente simples. Poderiam aumentar indefinidamente a capacidade social de consumo através do crédito, da emissão estatal de moeda, de uma circulação mais rápida da mesma quantidade de moeda, o que aumentaria a capacidade monetária de consumir da sociedade de conjunto.

Inclusive essas já são políticas tomadas pelos capitalistas, na medida em que o limite da capacidade monetária de consumo é um limite ao desenvolvimento ampliado do capital. O que é necessário explicar, portanto, é porque mesmo com essas medidas capitalistas de aumentar artificialmente a capacidade monetária de consumo ainda ocorrem às crises, algo que a teoria de Rosa não é capaz de explicar.

Serão os elementos expressos por Marx em suas ‘Teorias da Mais-Valia’ que darão as bases para relacionar a questão da superprodução e da demanda efetiva com uma teoria integral das crises, relacionado ela com outro aspecto central da teoria das crises marxista que é a teoria da queda tendencial da taxa de lucro; os desenvolvimentos do geografo e economista britânico David Harvey sobre a acumulação por despossessão serão também fundamentais para esclarecer essa questão. Mostrar como o autor dessas linhas vê a síntese dessas contribuições, no entanto, é papel de outro artigo. No presente escrito o que se quer demonstrar apenas é que como apesar dos equívocos a teoria de Rosa Luxemburgo sobre a demanda efetiva parte de pressupostos totalmente diversos da teoria de Keynes. Enquanto para a polonesa esse era um problema estrutural do capitalismo, impossível de ser resolvido em seus marcos, para o economista inglês, um lorde da coroa britânica, esse era um problema que poderia ser superado pela ação consciente, mediada pelo estado, dos capitalistas associados, resolvendo assim as crises e criando um capitalismo harmonioso. Par demonstrar essa diferença será necessário que exponhamos brevemente a teoria de Keynes.

Segunda Parte

A “revolução Keynesiana

Em grande parte dos manuais e histórias do pensamento econômico escritos e publicados por intelectuais e economistas burgueses o lançamento do livro de John Maynard Keynes ‘Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda’ é caracterizada como uma revolução na teoria econômica, uma quebra radical de paradigma.

Evidentemente isso é um grande exagero, posto que Keynes não rompe fundamentalmente com as perspectivas do pensamento burguês na economia e nem de longe faz uma radical crítica aos fundamentos do pensamento ‘’neoclássico”, à teoria da utilidade marginal. Sua crítica é apenas aos pressupostos mais absurdos e irreais presentes nessa teoria.

O que faz então com que um setor de economistas acadêmicos veja na obra do “lorde” Keynes uma revolução? Keynes irá publicar sua principal obra em meados da década de 30 do século passado, mais exatamente em 1936, durante, portanto, a grande crise capitalista que tem seu marco inicial em 1929 e é ainda vista pela maioria dos historiadores como a maior crise da história desse sistema.

Sua obra tem como pressuposto e tarefa básica criticar a inacreditavelmente fantasiosa ideia que dominava o pensamento econômico de então de que seria impossível um desemprego massivo forçado ou involuntário (lembremos a altíssima taxa de desemprego nos países imperialistas centrais, como o EUA, por exemplo, para termos claro o quão fantasiosa era essa teoria). Para a teoria neoclássica então em voga a relação entre oferta e procura de trabalho sempre encontrariam um equilíbrio, desde que um dos contratantes, o vendedor ou comprador da mercadoria força de trabalho, adaptasse o preço de mercado do produto a sua “utilidade marginal”; assim, desde que o trabalhador aceitasse receber qualquer quantia, mesmo a mais miserável, por sua força de trabalho num momento de baixa dos negócios nunca haveria um desemprego involuntário ou forçado, o desemprego sendo expressão da escolha voluntária dos trabalhadores de não aceitarem as condições dadas do mercado.

E contra essa escandalosa e absurda teoria, que mesmo com seus pressupostos bárbaros - de que o trabalhador deve aceitar qualquer condição imposta pelo mercado para a venda de sua força de trabalho - é falsa, pois naquele momento mesmo aceitando-se salários miseráveis era impossível encontrar trabalho, que escreverá Keynes.

Outro elemento que será criticado pelo economista britânico é o postulado dogmático da teoria marginalista de que o mercado se autorregularia de maneira espontânea, e de que mesmo em meio a uma enorme crise como a vivida no momento qualquer intervenção estatal seria negativa, tendo de ser necessário deixar às forças “invisíveis” do mercado a tarefa de encontrar um novo equilíbrio.

Contra essa dogmática do laissez faire Keynes expressará o mínimo do bom senso burguês de que o estado capitalista deve ser utilizado como instrumento para impedir o desenvolvimento catastrófico da crise para os negócios dos próprios capitalistas. Esse mínimo de bom senso burguês de Keynes contra os alucinados teóricos da teoria neoclássica esta longe, no entanto, de poder ser caracterizado como uma revolução no pensamento econômico, mas é antes expressão de que apesar de intoxicados pela fantasia de uma sociedade capitalista eterna e insuperável alguns burgueses pensam.

Keynes e a “lei” de Say

O signo mais claro que o pensamento de Keynes esta longe de ser uma “revolução’’, uma grande ruptura, com os pressupostos do pensamento econômico capitalista predominante é sua aderência em última instância a famigerada “lei” de Say, pelo menos na visão do autor desse pequeno artigo. Jean-Batiste Say, economista francês do começo do século XIX tornou tristemente célebre seu nome na história do pensamento econômico a associá-lo a “lei” dos mercados que sustenta que existe uma relação de equilíbrio entre produção e demanda, a ideia de que a produção gera sua própria demanda.

Esse metafísico equilíbrio entre produção e demanda, que impediria a existência de crises estruturais no capitalismo, pois só seriam possíveis crises parciais, dados possíveis gargalos em ramos específicos da produção, mas nunca uma crise geral da economia, posto que o mercado seria sempre capaz de absorver toda a oferta de mercadorias, foi formulado na verdade por James Mill, segundo Marx, sendo ligada ao nome de Say pelo oportunismo do segundo.

Esse metafísico equilíbrio objetivo entre oferta e demanda não é contestado por Keynes, na opinião do autor dessas linhas. Os limites da demanda efetiva que busca demonstrar o economista britânico e que são as causas das crises capitalistas em seu pensamento não são objetivos, mas fruto das escolhas subjetivas dos agentes econômicos.

Dadas as incertezas em relação ao ambiente econômico quanto mais nos alongamos em pensá-lo em relação ao futuro a psicologia da comunidade é tal que por mais que a propensão ao consumo aumente assim como aumenta a produção o primeiro termo aumenta sempre num ritmo inferior em relação ao segundo. Essa menor propensão ao consumo frente ao aumento da produção diminui também o incentivo ao investimento dos empresários, que não poderiam realizar os lucros médios de suas mercadorias dada a propensão ao consumo reduzida da comunidade.

Esse desequilíbrio na propensão ao consumo em relação as possibilidades da produção é expresso na preferência pela liquidez, ou seja, na busca pelos agentes econômicos da segurança de uma mercadoria que possa se tornar e metamorfosear em qualquer outra a qualquer momentos, na busca pela mercadoria mais “líquida”, portanto; essa mercadoria é a moeda.

Dado seu caráter não só de meio de circulação, mas também de reserva de valor a moeda permite aos agentes econômicos a busca por segurança e previsão em relação a futuros distúrbios ou turbulências econômicas. A possibilidade de poupar as riquezas para situações futuras é uma das características centrais da moeda, assim.

Dessa forma, a falta de demanda efetiva e portanto a possibilidade das crises capitalistas não é dada por uma característica estrutural e objetiva do modo de produção burguês, mas pelas escolhas subjetivas dos agentes econômicos, que preferindo a liquidez a aumentar sua propensão a consumir rompem o equilíbrio objetivo entre oferta de mercadorias e a demanda por elas. Ou seja, objetivamente existe a possibilidade de consumir todas as mercadorias ofertadas no mercado, o que impede isso e cria uma falta de demanda efetiva é a escolha pela poupança ao invés do consumo por parte dos agentes econômicos.

Intervenção estatal e complexo industrial militar

É esse elemento de um equilíbrio objetivo entre oferta e demanda e o entendimento de que é a propensão subjetiva menor ao consumo em relação as suas possibilidades concretas o que causa uma falta de demanda efetiva em relação aos produtos ofertados no mercado que permite que através de intervenções anticíclicas o estado atue para fomentar que a demanda possa se relacionar de forma equilibrada com a oferta.

Dessa forma, a possibilidade da intervenção anticíclica do estado ser funcional, no pensamento de Keynes, tem como base o equilíbrio objetivo entre oferta e demanda que é rompido pela preferência pela liquidez dos consumidores que diminui sua propensão ao consumo. O estado, portanto, atua como força subjetiva organizada que busca superar a fragmentação do mercado e as ações deletérias que os agentes econômicos individuais podem ter em relação ao desenvolvimento econômico em momentos de crise, organizando sua atuação a partir da racionalização do consumo e de um planejamento do investimento que supere pelo menos parcialmente essa fragmentação.

Assim, Keynes propõe que em momentos de crise o estado atue como propulsor da demanda, através de planos de obras públicas, capazes de fomentar o consumo e o investimento, criando a partir daí a demanda efetiva capaz de superar a superprodução. A força do estado parece tão onipotente para o economista britânico que usa como metáforas dessa atuação estatal capaz de criar demanda a construção das pirâmides pelos faraós egípcios e o cavar buracos para depois tapá-los. Ou seja, o estado deveria garantir a atividade econômica em momentos de crise através de seu investimento, com a única finalidade de manter a atividade econômica estável.

Contudo, longe do que pensa o economista ligado a realeza da Inglaterra o poder estatal de gerar demanda é tudo menos onipotente. A lenda criada posteriormente de que teria sido as políticas keynesianas que teriam tirado a economia estadunidense da crise são apenas isso, lendas, parte da mitologia dos ideólogos burgueses para tentar cobrir com folhas de parra as contradições inerentes ao sistema. O que tirou efetivamente a economia estadunidense da crise que já se arrastava a mais de uma década foi a entrada na segunda guerra mundial, e a consequente organização da economia para o esforço de guerra, criando aí sim todo um mercado praticamente inesgotável para as mercadoria ligadas a questão militar, a partir de uma posição insular, que fazia com que os EUA se beneficiassem da guerra sem poderem ser diretamente atacados e a posterior conquista de uma posição predominante sem precedentes dentro da economia capitalista, criado todo um sistema de relações econômicas internacionais que giravam todos em torno de sua economia.

Se devemos admitir, dessa forma, que a intervenção estatal pode evitar os efeitos mais caóticos e catastróficos de uma grande crise capitalista, coordenando a ação dos diversos agentes econômicos, como a presente crise demonstra, inclusive, devemos também mostrar que essa capacidade anticíclica do estado está longe de ser onipotente. A grande capacidade que tem o estado de criar uma demanda artificial capaz de gerar um relativo equilíbrio entre demanda e oferta está no complexo industrial militar, como inclusive já havia demonstrado Rosa Luxemburgo.

Contudo, mesmo aqui essa capacidade é limitada e o fortalecimento de um potente ramo de produção das possibilidades de destruição massiva certamente não deve ser visto como uma saída racional e que represente os interesses sociais em relação às crises criadas pelo irracional sistema capitalista.

“A longo prazo estaremos todos mortos”?

Essa famosa frase de Keynes mostra o quão pouco o economista britânico rompeu com os pressupostos da economia vulgar, aquela que não busca fazer uma pesquisa científica e aprofundada das características estruturais do sistema capitalista, mas que busca ser apenas expressão mais direta e acrítica dos interesses imediatos dos capitalistas.

A pesquisa econômica científica não busca apenas entender e responder as necessidades mais imediatas e conjunturais do sistema, mas suas características mais estruturais e orgânicas, suas possibilidades de desenvolvimento e seus limites históricos. Não é apenas a resposta mais direta aos problemas da conjuntura econômica, mas uma busca por compreender e dar respostas a suas características históricas mais profundas.

Os economistas clássicos, como Adam Smith e David Ricardo, do ponto de vista burguês, e Marx, do ponto de vista do proletariado, não estavam preocupados apenas em responder aos problemas mais imediatos da conjuntura econômica, mas estudar e compreender as bases para a criação de uma nova forma de relação social, uma nova forma de socialização e desenvolvimento das relações humanas; quais suas possibilidades de desenvolvimento e limites históricos.

Essa visão cruamente reificada das relações sociais, onde o pensamento “científico” se interessa apenas por buscar dar resposta às demandas mais imediatas e conjunturais é característica central do pensamento econômico vulgar que compartilha John Maynard Keynes.

As críticas neoliberais ao pensamento keynesiano

Sendo tão funcionais aos interesses dos capitalistas porque então as ideias de Keynes passaram a ser vistas como profunda heresia pelos sacerdotes da dogmática neoliberal, quase um sinônimo (vejam só) de socialismo?

Gozando de inconteste predomínio após o fim da segunda guerra mundial, sendo um dos pilares da construção dos acordos comerciais, econômicos e geopolíticos que reconfiguraram o mundo e garantiram a “pax americana” e os chamados 30 gloriosos de crescimento que seguiram a grande guerra, o pensamento de Keynes como elemento chave das teorias econômicas burguesas entra em crise com a crise desse modelo econômico.

A crise estrutural do capitalismo no começo dos anos 70, que põe em xeque o modelo econômico predominante no pós-guerra solapa as bases para o predomínio do pensamento keynesiano. A contraofensiva do liberalismo é assim radical e não admite nenhum compromisso. A necessidade de recompor a taxa de lucro eliminando todos os gastos não diretamente colocados na obtenção da mais-valia, todos os faux frais da produção capitalista, fazem com que qualquer gasto no setor público ou estatal seja visto como um sacrilégio.

A dogmática neoliberal retoma todos os erros do pensamento econômico burguês anteriores a década de 30, uma fé cega na auto-regulação do mercado, a crença igualmente cega em que esse consegue encontrar um metafísico equilíbrio, o horror a qualquer intervenção estatal, que um pensador com o mínimo de bom senso do ponto de vista burguês como Keynes buscou combater.

A crise capitalista que vivemos, que botou em crise também o paradigma neoliberal, sem reabilitar totalmente o pensamento keynesiano, posto não haverem mais bases materiais para as ilusões na onipotência anticíclica do estado, deixam o pensamento econômico burguês em crise a abrem espaço para a intervenção de uma economia crítica.

Conclusão

Esse artigo buscou demonstrar que apesar de uma aparência extrínseca e formal de proximidade, posto que ambos explicam as crises capitalistas pelos limites da demanda efetiva, os pensamentos de Rosa Luxemburgo e John Maynard Keynes estão em campos opostos e são contrários em seus pressupostos e resultados.

Isso não só porque ambos partem de pontos de vista de classe distintos, mas porque esses pontos de vista de classes distintos efetivamente se refletem em concepções teóricas marcadamente diferentes. Enquanto para Rosa os limites da demanda efetiva são limites estruturais do capitalismo não podendo ser superados a não ser com a conquista permanente de novos mercados e, como esses são limitados geográfica e historicamente, esses limites levam objetivamente a necessidades de crises cada vez mais agudas do capitalismo e a sua também necessária superação, para Keynes os limites da demanda efetiva são dados pelas escolhas subjetivas dos agentes econômicos, por sua propensão ao consumo e preferência pela liquidez, e esse limite da demanda pode ser superado pela intervenção estatal e suas medidas anticíclicas, não havendo assim nenhum limite inerente e intransponível ao continuo desenvolvimento do capitalismo.

Esse momento de crise do capitalismo, que é também uma crise de paradigmas, deve levar a um debate cada vez mais profundo sobre os projetos de sociedade e civilização que as diferentes classes e grupos sociais propõem. Um debate sobre as possibilidades da manutenção ou superação do sistema capitalista, de suas crises e possibilidades de sua superação se faz assim necessário. Esse artigo se pretende uma pequena contribuição.


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