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A Ucrânia entre as pinças de tiranos

André Barbieri

A Ucrânia entre as pinças de tiranos

André Barbieri

A escalada beligerante no Leste europeu deu origem à maior operação militar na Europa desde o final da Guerra Fria. Depois de ter o seu direito à existência nacional negado por Putin, a Ucrânia foi invadida por tropas russas. O objetivo, segundo Putin, é “desmilitarizar e desnazificar” a Ucrânia, o que implica incapacitá-la de qualquer iniciativa armamentista, destruir o tecido de suas instalações militares e possivelmente derrubar Volodymyr Zelensky. Kiev está cercada por soldados russos, que viram sua ofensiva parcialmente desacelerada pela resistência de setores da população ucraniana. Biden e a OTAN foram colocados numa situação delicada, sem poder responder à altura a agressão de Moscou. Putin, por sua vez, pode estar ingressando num novo exemplo de triunfos militares que se tornam grandes problemas aos conquistadores quando tornadas insurgências contra invasores. É assim que o Leste europeu atualizou em 2022 a época de crises, guerras e revoluções.

O conflito militar na Ucrânia ainda está em curso. Abre sequelas da Guerra Fria e tem um desenlace imprevisível para a debilitada ordem mundial neoliberal. Enquanto escrevemos esse artigo, as tropas de Putin se encontram nos subúrbios de Kiev. A Ucrânia ainda segura o exército russo nos arredores da capital, logrando tornar lento o avanço de Moscou. A chave do atraso foi o fracasso até então em tomar o campo aéreo de Hostomel, o aeroporto internacional de Kiev, defendido pelo exército ucraniano; a partir daí Putin buscava um ataque relâmpago na capital. De todo modo, a Rússia empregou menos da metade dos 190.000 efetivos divulgados nas fronteiras, e poderá adotar outras medidas para contornar o revés inicial. Do ponto de vista militar, o débil regime ucraniano tem pouca chance de resistir.

O ataque em pinça envolve três frente: a partir do leste, no Donbass, onde ficam Luhansk e Donetsk; a invasão ao sul a partir da Crimeia (dirigindo-se a Odessa e Mariupol); e a partir da Bielorrússia, ao norte, em direção a Kiev e Kharkiv. A estratégia está fundada num ataque rápido que corte as linhas de acesso entre o oriente e o ocidente da Ucrânia, isolando a sede central do governo, e incapacitando suas instalações militares. No sábado (26) houve combates nas cidades de Kherson, Mykolaiv e Odesa, ao Sul. Áreas próximas a Sumy, Poltava e Mariupol foram atingidas por ataques aéreos, enquanto Melitopol foi capturada pelos russos.

Zelensky convoca uma resistência desesperada para defender o seu pouco popular governo, enquanto Putin conclama as forças armadas ucranianas a amotinar-se e desistir de provocar “um banho de sangue”. Moscou havia divulgado intenções vagas de voltar à mesa de negociação com Kiev – em base à pressão do chefe da burocracia autocrática do Partido Comunista Chinês, Xi Jinping – mas a condição para isso seria a rendição da Ucrânia. Os EUA, a UE e o Reino Unido impuseram sanções duras às principais instituições financeiras russas, e diretamente a Putin e Sergei Lavrov, Ministro das Relações Exteriores da Rússia, mas sem poder fazer frente a ofensiva na medida em que se decidiram a não enviar tropas.

Situação do conflito nos arredores da região administrativa de Kiev

O expansionismo imperialista da OTAN, que encabeçada pelos EUA duplicou o número de seus Estados-membro na zona de influência da ex-URSS desde meados da década de 1990, havia soado as trombetas da histeria guerrerista desde o início do ano. A Rússia de Putin, procuradora permanente do poderio econômico perdido desde a dissolução da União Soviética, usou a herança nuclear recebida para bloquear manu militari a entrada da Ucrânia à OTAN e à União Europeia (como havia feito em 2008 na Geórgia), após perder muita capacidade de influência no Leste europeu. Dois bandos reacionários, o imperialismo da Aliança Atlântica e o nacionalismo bonapartista de Putin, justificavam-se a si mesmos em termos “defensivos”: a Rússia estaria interessada em “defender” a população do Donbass da agressão de Kiev, e a OTAN estaria apostada em “defender” a soberania estatal da Ucrânia. Parafraseando Marx, não se pode julgar Estados capitalistas por aquilo que eles pensam de si: assim como no século XX, cada um dos bandos apenas utiliza a Ucrânia para seus jogos de poder.

A decisão pela opção militar é altamente arriscada para a Rússia. Unificando uma OTAN que vinha exibindo falta de orientação comum, dá aos aliados uma comunhão de propósitos que pode ser danosa para Moscou, que se verá enredada na possibilidade de insurgências internas. Mas ao mesmo tempo, a conduta da OTAN é reveladora de quantas diferenças existem entre seus membros, e dentro dos próprios países, a começar pelos Estados Unidos. Depois de ser criticado pela imprensa diante da desesperada saída do Afeganistão, que voltou às mãos do Talibã, Washington é criticado pela incapacidade de deter Putin na Ucrânia. Essa debilidade de fundo parece ter sido o motor da atitude de Putin: a conjunção da fraqueza da administração Biden, a crise bipartidária nos Estados Unidos que vê o refortalecimento do trumpismo, a dependência da Europa frente aos recursos energéticos russos, especialmente da Alemanha, a divisões internas na União Europeia.

Não se pode, entretanto, deixar de perceber as fragilidades de Moscou. A linha política de falcões Democratas, estampada em revistas como o Foreign Affairs, adverte sobre o erro de esquecer a Rússia como potência a ser enfrentada, em nome do foco na ameaça chinesa. Não há dúvida de que a Rússia não está mais na condição andrajosa em que se encontrava no imediato pós-1991, com a destruição de sua economia pela restauração capitalista. A debilidade econômica fruto do rentismo energético persiste, convivendo com a recuperação de certa influência geopolítica pelo arsenal militar e tecnológico herdado da URSS, embora sem o status desta. Mas é um fato histórico que a regressão à propriedade privada degradou as bases materiais sobre as quais se apoia a ambição Grã-Russa. A Ásia não ruma a um “século russo”, e sim chinês. Mesmo na eventualidade de ocupar a capital ucraniana, as dificuldades de Putin em tomar Kiev, Kharkiv e outras cidades chave – que poderia ser fruto de cuidados para não provocar uma reação desesperada de resistência – não deixa de transmitir os limites da força de um ex-império ressentido que não encontra meios suficientes para recuperar sua zona de influência das mãos da OTAN, muito menos desafiá-la diretamente para tal.

Aos atores, os papéis

Desde o início do ano passado, a OTAN incrementou sua presença nas fronteiras da Ucrânia começando uma série de exercícios militares como parte de um projeto conhecido como Defesa da Europa 2021, um dos maiores exercícios militares da OTAN em décadas, com 28 mil tropas de 27 nações, o que gerou mais críticas russas e a concentração de tropas na fronteira com a Ucrânia. Em dezembro, a Rússia apresentou dois recursos chamados “garantias de segurança” que deveriam obrigar legalmente a OTAN a jamais integrar Ucrânia e Geórgia, assim como retirar seus sistemas militares dos países do Leste europeu que foram incorporados à Aliança Atlântica desde a década de 1990. O imperialismo norte-americano não tem nenhum interesse em desfazer o caminho ao Leste, e negou as demandas russas. Putin ameaçou represálias militares, que apesar de pouco específicas foram suficientes para que o governo ucraniano pedisse que seu país fosse incluído na OTAN para evitar a invasão. No final de janeiro, os EUA enviaram cargas de armas e munições para a Ucrânia.

As tensões aumentaram nas semanas seguintes, e a 21 de fevereiro de 2022, o governo russo alegou que um bombardeio ucraniano destruiu uma instalação militar russa na região do Donbass. Nesse mesmo dia, Putin reconheceu formalmente as autoproclamadas Repúblicas Populares de Luhansk e Donetsk como países independentes, não apenas em suas áreas controladas de fato por Moscou, mas nos oblasts (regiões administrativas) sob a tutela de Kiev. Ato seguido, Putin ordenou que tropas russas, incluindo tanques, entrassem nessas regiões. Esta medida daria o direito legal a Putin de implementar instalações militares no território, sob a retórica de que a maioria da região teria conexão cultural com a Rússia. No dia seguinte, Putin declarou que os acordos de Minsk não eram mais válidos e, no 24 de fevereiro, ordenou a invasão do leste da Ucrânia numa agressão militar que foi além do inicialmente divulgado: além das tropas terrestres no Donbass, invadiu o país a partir da Crimeia e também da Bieolorrússia tendo a capital Kiev como alvo.

Os imperialismos ocidentais agiram rápido, mas cautelosamente. Desde o início de fevereiro Washington estampava em suas declarações que não colocaria tropas em território ucraniano, o que foi seguido pela Inglaterra e demais potências. O objetivo já traçado havia muito tempo era impor sanções à Rússia, não traduzindo represálias econômicas em ações militares. Em 22 de fevereiro, em sintonia com isso, Estados Unidos, Grã-Bretanha e União Europeia adotaram medidas que incluíam restrições à venda da dívida soberana russa, o congelamento dos ativos de oligarcas russos, bancos e parlamentares. Os alvos mais importantes foram duas das maiores instituições financeiras da Rússia, VEB e Promsvyazbank, que apoiam o desenvolvimento econômico e projetos de defesa, assim como a oligarquia capitalista do país e seus familiares. Biden tomou cuidado, entretanto, para não remover a Rússia do SWIFT, o sistema mundial de transferência de dinheiro, que afetaria a economia global sensivelmente, embora tenha dele excluído alguns bancos russos.

Diante da invasão militar russa, Biden ordenou às tropas estadunidenses já estacionadas na Europa que se posicionassem na região do Báltico e na Polônia, para ajudar a reforçar as defesas dos países limítrofes da Ucrânia. Mas as promessas de força não são a própria força. O establishment bipartidário imperialista nos EUA sabe que, dificilmente, poderia fazer mais do que aplicar duras sanções econômicas. Democratas e Republicanos identificam na China, não na Rússia, seu adversário principal, independentemente da fixação em semicolonizar esta última. Como afirma Rafael Poch-de-Feliu, a linha que obedece os Estados Unidos é: conter a Rússia, somente na medida em que isso não impeça ou complique o principal, que é conter a China. A retirada atabalhoada das tropas ianques do Afeganistão tiveram o objetivo de concentrá-las na região do Indo-Pacífico, para a contenção de Pequim. As alianças militares mais importantes dos Estados Unidos passam a estar na Ásia (com o Quad, envolvendo Japão, Austrália e Índia, aproximando a Coréia do Sul) e não na Europa. Não à toa, a presidente ucraniana Volodymyr Zelensky, títere preposto no cargo após o Euromaidán de 2014 que levou à queda do pró-russo Viktor Yanukovich, busca por freios na retórica beligerante norte-americana, sabendo que pode arcar com o peso desmesurado de uma conflagração com a Rússia. A Ucrânia, para os Estados Unidos, é também moeda de troca, e está envolvida nos planos imperialistas da Casa Branca para alargar a linha de influência contra a China ao Leste europeu, e eventualmente disciplinar a Rússia a uma aproximação mais modesta com Pequim. Ademais, internamente, Biden é considerado fraco demais para conduzir operações arriscadas como a que se dá na Ucrânia.

As dificuldades surgem para Alemanha e França também. A União Europeia provavelmente se sai mal na contenda. O chanceler alemão, Olaf Scholz, e o presidente francês, Emmanuel Macron, encabeçaram as embaixadas presenciais ao Kremlin para “deter” a escalada militarista de Putin. Ambos trompetearam o êxito de suas visitas para convencer Putin. Macron anunciou que Putin e Biden haviam concordado, em princípio, em realizar outra cúpula para evitar uma guerra. Scholz foi no mesmo caminho. Ambos foram feitos de ridículo por Putin, que seguiu atuando segundo seus planos, afirmando por cima das declarações de Paris e Berlim que os Acordos de Minsk de 2014-15, que deveriam regularizar o status de Donetsk e Luhansk e que a França e a Alemanha haviam tentado revigorar, estavam mortos. Macron, assim, vive no período de poucos meses a humilhação combinada dos EUA (o caso AUKUS, em que Biden e o governo australiano cancelaram contratos militares com franceses para atuar entre si quanto a submarinos nucleares) e da Rússia. Scholz, que não tem a mesma aparência de firmeza que Merkel para o capital alemão, sofreu a humilhação de ter de agir contra seus próprios interesses, suspendendo o certificado de regularização do gasoduto Nord Stream 2, novo canal de transmissão da dependência alemã do gás russo. O certificado foi pausado, não eliminado; é provável que a Alemanha já esteja em tratativas com Moscou para diminuir os efeitos da retaliação, uma vez que mais de 50% do gás importado vem da Rússia. Não deixa de ser uma ironia: precisa agredir seus próprios interesses, antes que os Estados Unidos o faça por si mesmo. De fato, Bob Menendez, o influente presidente Democrata da comissão de relações exteriores do Senado, disse que os Estados Unidos tinham que parar de "equivocar-se" e iniciar sanções contra o Nord Stream 2 “para que ela esteja definitivamente morto”. Uma política que dificulta o entendimento entre Berlim e Washington.

A burocracia bonapartista da China tem uma política de apoio fático a Moscou que dificulta as ações da OTAN. China e Rússia são aliados que estreitaram laços nos últimos anos, tendo Xi Jinping e Putin realizado quase 40 encontros desde o 16º Congresso do PCCh em 2012, que abriu a era Xi. São duas potências que coincidem em se opor à ordem mundial dirigida pelos EUA, e em reprimir selvagemente qualquer expressão da luta de classes como fator político nos seus países e regiões de influência. Em janeiro de 2022, a China apoiou publicamente a intervenção militar da Rússia no Cazaquistão para reprimir mobilizações populares contra os altos preços do gás, mais abertamente do que havia feito com a repressão na Bielorrússia; trabalham juntos através da Organização de Cooperação de Xangai para apoiar ditaduras amigas na Ásia Central. Semanas antes da invasão russa, Putin e Xi Jinping emitiram um longo comunicado conjunto endossando os esforços para manter a influência dos EUA fora de suas proximidades no exterior, atacando as alianças dos Estados Unidos como relíquias da Guerra Fria, defendendo seus próprios modelos autocráticos de governo, e declarando que a amizade sino-russa “não tem limites”. Foi a primeira vez que a China se opôs oficialmente à expansão da OTAN. A China não reconheceu a agressão russa como uma invasão e muito menos a condenou, sustentando um discurso de que a Rússia “é a parte agredida” e acusando os Estados Unidos de “atiçar as chamas”. Em Nova York, horas depois, a China se absteve de votar uma resolução do Conselho de Segurança da ONU condenando a invasão russa. Zhang Jun, o enviado da China à ONU, repetiu as críticas veladas de Pequim aos EUA. “Contra o pano de fundo de cinco rodadas sucessivas de expansão da OTAN para o leste, as legítimas aspirações de segurança da Rússia devem ser atendidas e devidamente tratadas”.

Essa abordagem amistosa está estruturada em importantes e sustentados avanços na cooperação militar, econômica, diplomática e de transferência de tecnológica entre Moscou e Pequim. Como escreve Hal Brands no Foreign Affairs: “A convergência sino-russa dá a ambas as potências mais espaço de manobra ampliando o problema das duas frentes de Washington: os EUA enfrentam agora rivais próximos cada vez mais agressivos em dois teatros separados, Europa Oriental e Pacífico Ocidental, que estão a milhares de quilômetros de distância. A cooperação sino-russa, embora tensa e ambivalente, levanta a possibilidade de que os EUA enfrente seus dois rivais combinados em um único eixo autocrático. Mesmo antes disso, a situação atual reavivou o grande pesadelo geopolítico da era moderna: um poder ou entente autoritária lutando pelo domínio na Eurásia, o teatro estratégico central do mundo.”

Prevenimos contra exageros: há rivalidades importantes. Cada um persegue objetivos individuais ao atuar em parceria com o outro. China e Rússia tem disputas na Ásia Central, em que as duas potências não podem ser preeminentes simultaneamente. A Rússia não tem apreço pelo mundo sinocêntrico que Xi Jinping quer impor, e Pequim enxerga Moscou como um vulnerável ponto de instabilidade no Oriente Médio e no Leste europeu.

Mas embora os objetivos finais de Xi e Putin divirjam, seus objetivos intermediários os aproximam. A Rússia é mais importante no panorama global dentro da entente com a China do que sozinha. Não menos relevante nesses objetivos comuns é o interesse da China em ser apoiada pela Rússia num de seus maiores propósitos estratégicos, a reincorporação de Taiwan, e frear a luta de classes na Ásia, centro de gravidade do proletariado mundial.

Problemas estruturais na questão ucraniana

A complexidade da solução do conflito obedece a problemas profundamente enraizados na história nacional de povos cujas vidas se entrelaçaram de um modo particular durante séculos.

Uma delas se refere ao status nacional do povo ucraniano, que ao contrário da reacionária afirmação de Putin, sustentou séculos de opressão de múltiplos impérios, como a Polônia, a Áustria-Hungria, a Romênia, a Rússia. A ideia de uma identidade nacional grassou sobre o atual território da Ucrânia já no século XIX, com a ascensão sob o tsarismo de intelectuais e escritores como Nikolai Gógol e Taras Shevchenko, contra o qual o absolutismo russo emitiu o Decreto de Ems, de 1876, proibindo qualquer publicação em língua ucraniana. Em colisão com o poder superior russo, o nacionalismo burguês ucraniano condenou sua população a padecer as arbitrariedades ora de uma, ora de outra potência. No século XX, seus governos de curta duração se afirmaram sob proteção militar alemã (a do atamã Skoropadsky) ou polonesa (Petliura). Assim, a burguesia ucraniana, tardiamente surgida no cenário histórico, constituía mais um elo da escravização do povo ucraniano às potências. As palavras de Trótski, que nasceu na província ucraniana de Kherson, são emblemáticas: “A Ucrânia é especialmente rica em experiências de falsos caminhos de luta pela emancipação nacional. Tudo foi experimentado: o parlamento [Rada] pequeno burguês e Skoropadski, Petlura, uma ‘aliança’ com os Hohenzollerns e combinações com a Entente. Após essas experiências, apenas os cadáveres políticos podem continuar a depositar esperanças em qualquer fração da burguesia ucraniana como líder da luta nacional pela emancipação. [1]

É grosseira a afirmação de Putin de que a Ucrânia não merece existir como país, um discurso similar em seus objetivos ao do sionismo contra o povo palestino. Isso colocou em pauta a política bolchevique de autodeterminação dos povos, motivo de ódio para Putin. A Ucrânia revolucionária, que em 1922 surgiu como uma das quatro repúblicas que deram origem à União Soviética, emergiu desse mesmo sentimento nacional que encontrou uma via de fusão com a política revolucionária de Lênin, Trótski e dos bolcheviques – criticado por Putin – de reconhecer o direito de autodeterminação de nações como a Ucrânia que sofreram não apenas a opressão tsarista, mas também a espoliação das potências europeus ocidentais (como a do império alemão, que cometeu atrocidades na região em meio à guerra civil russa). A burocratização stalinista na URSS separou os sentimentos nacionais das massas ucranianas do programa da vanguarda proletária, incorporando e asfixiando a Ucrânia Soviética à repugnante estrutura de opressão nacional grã-russa. A dissolução da URSS em 1991 e o ódio da população contra a burocracia stalinista que pavimentou o caminho à restauração capitalista facilitou o serviço do imperialismo ocidental, que restituiu à Ucrânia o status de Estado em chave de país capitalista submisso.

O desejo do imperialismo ocidental e da Rússia de apagar à força as disparidades sócio-culturais da população ucraniana, oprimindo-a nos marcos da subordinação capitalista, é algo que implica custosos riscos de difícil medição.

A outra questão é a da importância estratégica da Ucrânia para a estratégia de defesa nacional da Rússia. Em 2008 Putin advertiu que “se a Ucrânia aderir à OTAN, ela deixará de existir”, porque “se separaria”. A mesma advertência serve ao ingresso na União Europeia, vista como porta de entrada à OTAN (e confirmada segundo meios como o Foreign Affairs). Além de possibilitar o surgimento de governos pró-ocidentais na vizinhança da Rússia, a dissolução da URSS em 1991 permitiu aos Estados Unidos avançar a expansão da OTAN para o Leste, aproveitando o longo período de debilitamento da Rússia reconvertida ao capitalismo. Esta política de expansão das potências ocidentais por sobre a antiga zona de influência soviética arrebatou inúmeros países do Leste europeu: entre 1999 e 2017, ingressaram na OTAN a República Checa, a Hungria, a Polônia, a Bulgária, a Estônia, a Letônia, a Lituânia, a Romênia, a Eslováquia, a Eslovênia, a Albânia, a Croácia e Montenegro. Esse avanço foi visto como uma ameaça prometéica à existência da Rússia. Algo que era escrito pelos altos funcionários que definiam a planilha estratégica de Washington. Zbigniew Brzezinski, conhecido estrategista americano propôs em meados dos anos 90 desmembrar a Rússia em vários pequenos estados. Putin surgiu como o reordenador, no marco de sua decadência capitalista, para obstaculizar essa política, em nome da oligarquia restauracionista tornada burguesa na Rússia. Desde a década de 1990, muitos desses países têm sido o cenário de guerras de baixa intensidade. Geórgia e Ucrânia, que não aderiram e são vistos como “linhas vermelhas” por Moscou, também passaram por conflitos recentes. A Geórgia em 2008, onde a Rússia interveio a favor das repúblicas separatistas da Ossétia do Sul e Abcásia, após uma ofensiva do exército georgiano. E a Ucrânia em 2014, com a anexação da Crimeia após a revolta de Maidan que trouxe a facção pró-ocidental ao governo ucraniano.

As exigências russas de que a Ucrânia (nem a Geórgia) jamais seja admitida na OTAN, e que a Aliança Atlântica recue do caminho traçado desde o auge do neoliberalismo não encontrarão eco no Ocidente, que aposta em semicolonizar a Rússia. Mas indicam até onde a reacionária oligarquia russa está disposta a ir na defesa de suas zonas de segurança e exploração capitalista. Nem tudo é negociável, e o ponto de não retorno está aproximando perigosamente adversários geopolíticos.

Os trabalhadores ucranianos, de um lado, e os bandos reacionários, de outro

Não há espaço para uma política “campista” na Ucrânia, ou seja, de que ou a OTAN ou a Rússia seriam um dos campos progressistas na disputa. Estamos diante de bandos reacionários com políticas que visam oprimir e degradar as condições de vida da classe trabalhadora ucraniana e de todo o Leste europeu. O imperialismo dos EUA e a OTAN tem um discurso hipócrita de “defesa da soberania ucraniana”, quando submetem os países do Leste incorporados à Aliança Atlântica à mais dura militarização, movendo esses países como aríetes de sua estratégia de cerco da Rússia. Os bombardeios e atrocidades de guerra cometidos na Iugoslávia, na Bósnia, no Kosovo, para além do Iraque e do Afeganistão, são mostras do que virá com a expansão da OTAN. Isso não torna a Rússia de Putin a “defensora dos valores soberanos” da região. Para além de suas declarações de “defesa nacional” contra o avanço das potências imperialistas, o regime de Putin é completamente reacionário. Está regido por um nacionalismo de direita que serve não apenas aos interesses capitalistas de oligarcas com os mesmos ideais, mas também aos objetivos contra-revolucionários em um sentido mais amplo (Cazaquistão, Síria, Bielorrússia, etc.).

A burguesia ucraniana segue atuando como correia de transmissão ora da política imperialista ocidental, ora do nacionalismo reacionário da Rússia. Não possui qualquer posição independente, e jamais poderia ser um veículo para a emancipação do país.

Décadas de opressão nacional, primeiro sob o tsarismo e depois sob o stalinismo, e agora com a negação direta de Putin do status da Ucrânia como Estado, alimentam um nacionalismo reacionário anti-russo na Ucrânia, usado pelo governo Zelensky, pelos oligarcas ligados aos negócios dos EUA e da UE, e pelas potências imperialistas. Ademais, as bandas paramilitares pró-russas são também característicos de um nacionalismo de extrema direita, alimentado por Moscou e com uma perspectiva completamente anti-comunista e reacionária. No contexto da II Guerra, Trótski dizia que “se não fosse por Stalin (por exemplo, a política fatal da Comintern na Alemanha), não haveria Hitler. A isso pode-se acrescentar agora: se não fosse a violação da Ucrânia soviética pela burocracia stalinista, não haveria nenhuma política hitlerista na Ucrânia.” Essa conclusão podemos tirar, num contexto distinto de uma Rússia capitalista, sobre a política de Putin. Quão reacionária é a posição do PCB, que adota uma postura de apoio envergonhado à Putin, exigindo apenas a saída das tropas da OTAN e fingindo que não há uma invasão russa (ou melhor, replicando Putin ao dizer que este estaria “protegendo a população que vinha sendo bombardeada por nova onda de ataques do regime ucraniano” [2].

Tudo isso permite ver que a emancipação da Ucrânia das garras de seus opressores não se pode dar nos marcos do sistema capitalista. As posições das correntes que se reivindicam trotskistas, da tradição de Nahuel Moreno, nutrem expectativas em ilusões sobre a possibilidade de independência ucraniana. Tanto a Resistência (que defende a “autodeterminação do povo ucraniano”, quanto o MES (que defende “a paz e a autodeterminação do povo ucraniano e de suas minorias nacionais” e o PSTU (que defende uma “Ucrânia unificada”, embora critiquem os bandos reacionários, consideram que a autodeterminação e a unificação independente da Ucrânia estariam na palma da mão dentro dos marcos do Estado atual. A burguesia ucraniana seria a garantidora dessa unificação? Um governo Yanukovych (pró-russo) ou um governo Zelensky (pró-OTAN) seriam os portavozes dessa autodeterminação? Nenhuma dessas correntes trata do aspecto central, que a autodeterminação e independência só poderiam vir nos marcos de uma Ucrânia operária e socialista. Não se trata de um dogma, e sim da realidade: o século XX mostrou que o direito à autodeterminação dos povos não pode ser conquistado pela burguesia, se encontra nas mãos da classe trabalhadora. Essa tarefa democrática se entrelaça com a revolução socialista.

E isso se torna mais importante para uma visão não meramente “geopolítica” ou de “luta entre Estados”, atendendo à realidade da luta de classes como fator fundamental. A ocupação russa pode levar a potenciais insurgências, não dos repudiáveis neonazistas alimentados pelos EUA e a Alemanha, mas da classe trabalhadora, desde a bacia do Donets, histórico bastião da indústria mineradora ucraniana, até mesmo Kiev e Kharkiv. A tradição de luta da classe trabalhadora ucraniana, apesar da paralisia imposta pela burocracia stalinista, pode ser um elemento surpresa no coquetel político imprevisível depois da invasão. Isso teria consequências na Rússia e em toda a Europa. As mobilizações contra a guerra em muitos países, como no Estado espanhol e na Itália, que se posicionam contra a OTAN e a Rússia, podem ser um fator para alastrar um combate a essa guerra reacionária.

Trótski insistia com a IV Internacional sobre o reconhecimento do essencial na questão ucraniana: “É um povo que provou sua viabilidade, numericamente igual à população da França e que ocupa um território excepcionalmente rico e, além disso, estrategicamente importante. A questão do destino da Ucrânia foi totalmente abordada. É necessária uma consigna clara e definida, que corresponda à nova situação. Na minha opinião, existe atualmente apenas uma consigna: Por uma Ucrânia soviética de trabalhadores e camponeses, unificada, livre e independente.” Esta posição se adequava ao combate contra o imperialismo, de um lado, e contra o bonapartismo stalinista, de outro. Trata-se de uma lição notável para nossa etapa histórica a ideia estratégica de que a questão nacional não pode ser resolvida com a ajuda de imperialistas, frentes populares com nacionalistas burgueses ou apoiando-se em oligarquias bonapartistas.

As tropas russas devem sair imediatamente da Ucrânia. Basta de intervenção militar: a Ucrânia não pode continuar sendo moeda de troca para a ingerência do imperialismo estadunidense e da OTAN, nem para a intervenção militar do reacionário nacionalismo russo. O nacionalismo capitalista russo encabeçado por Putin não é nenhuma alternativa ao imperialismo ocidental. A possibilidade de uma Ucrânia independente está inextricavelmente ligada à luta contra os capitalistas e oligarcas de ambos os lados. Somente os trabalhadores ucranianos autoorganizados, junto a seus irmãos de classe em todo o Leste europeu e na Rússia, podem encontrar uma saída independente e progressista para as atrocidades sofridas. Uma Ucrânia independente, operária e socialista, que seja a base para os Estados Unidos Socialistas da Europa. A possibilidade de parar as guerras reacionárias está em última instância ligada ao desenvolvimento da revolução socialista e ao fim da dominação imperialista em todo o mundo. Conclamamos uma grande mobilização dos povos do mundo contra essa guerra reacionária.


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André Barbieri

São Paulo | @AcierAndy
Cientista político, doutorando pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), é editor do Esquerda Diário e do Ideias de Esquerda, autor de estudos sobre China e política internacional.
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