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LITERATURA SOVIÉTICA | A Revolução russa em verso e prosa (parte 2)

terça-feira 14 de março de 2017 | Edição do dia

Foi com palavras em brasa que o inverno russo teve a cultura degelada. A Revolução russa exala uma poesia destruidora, que não guarda semelhanças com a estrofe privada. O poeta revolucionário, que canta os acontecimentos de Outubro de 1917, é um trabalhador consciente, que esculpe o verso, martela os signos, constrói palavras que traduzem o sentido político emancipador daquilo que seria a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. O mesmo aplica-se ao ficcionista, que narra a luta operária, os seus dramas internos e desafios políticos. Antes mesmo do dilúvio revolucionário transformar a paisagem russa, escritores investigavam os problemas sociais, o universo dos explorados. Pensemos em Gorki.

Máximo Gorki estabeleceu um elo literário entre autores realistas/naturalistas e autores soviéticos. Este escritor autodidata , foi uma presença ativa nos debates estéticos da literatura soviética. Amigo de Lenin, Gorki teria suas ideias sequestradas pelo stalinismo para a criação da doutrina jdanovista. É verdade que ele foi um teórico do Realismo Socialista, mas o conjunto de sua obra literária não é um xarope burocrático. Como teórico Gorki apresenta um raciocínio frágil, que descamba para uma visão religiosa campesina completamente estranha ao bolchevismo. Mas como artista, Gorki enche os olhos de admiradores e inimigos: tanto quem defende quanto quem discorda do conceito de literatura proletária, há de convir que o autor russo é um pioneiro talentoso da questão.

Gorki deu um passo além na construção dos retratos de miseráveis e marginais da sociedade russa. Se as lições estéticas do Realismo e do Naturalismo (em suas respectivas diferenças)permitem traçar as linhas essenciais destes retratos, o autor russo não estabelece uma narrativa que fica do lado de fora: o escritor mergulha no submundo, na miséria, nas contradições do seu tempo. Seja no gênero do romance, como em A Mãe(1907), seja na esfera da dramaturgia, como na peça Pequenos Burgueses(1902), este ficcionista é um desbravador da escrita politizada. Evidentemente que os recursos estilísticos de Gorki não passam de um alazão perto da locomotiva estética das vanguardas. Certo, literatura não é corrida: qualquer autor estabelece o ritmo que satisfaz sua linguagem, sem prestar contas a ninguém. No entanto, são os autores atentos ao dinamismo das técnicas literárias, que conseguem lidar de modo mais ousado com os novos materiais culturais trazidos por uma Revolução política. Isaac Bábel, que foi apadrinhado por Gorki, conseguiu voar com mais ousadia: os contos reunidos na obra O Exército de Cavalaria(1926) representam a modernidade, a eletricidade da prosa invadindo as terras feudais da literatura russa(tive a oportunidade de comentar a obra de Bábel num artigo intitulado Isaac Bábel, um escritor revolucionário, publicado no ano passado neste mesmo jornal).

A questão da modernização artística não foi para a literatura soviética mero acidente histórico, mas uma necessidade que condiz com o caráter político específico da Revolução proletária: o melhor da arte de transição presente nos primeiros anos da Revolução, estava esteticamente entranhada na vida das cidades. O populismo dos narodniks, imerso na nostalgia campesina e no nacionalismo, ainda influenciava escritores que não prestavam atenção nas novas realidades culturais em que o trabalhador urbano estava. Logicamente não podemos cair numa simplória competição entre elementos culturais de origem rural e urbana. A aliança entre os trabalhadores da cidade e do campo, pressupõe um olhar atento do escritor revolucionário para as diferentes realidades sociais existentes em ambos os contextos: personagens operários e camponeses existem sob o signo da opressão, da exploração; evidentemente que a literatura revolucionária, movida pela crítica e denúncia social, deve dar conta do conjunto destes fatores históricos. Mas no caso do contexto literário soviético em particular, a ruptura expressa na Revolução reivindicava culturalmente o dinamismo econômico próprio das cidades: todo atraso representado pelo czarismo e por uma burguesia tardia e politicamente impotente, seria de fato revertido pela Revolução(a industrialização na Rússia começou pra valer com o governo soviético). A direção operária neste governo, apontava para um tipo de evidência cultural em que a arte revolucionária estaria impregnada de asfalto, máquinas, fumaça e burburinho.

Não foi por acaso que a arte representativa da Revolução teve o peso do futurismo( movimento artístico condicionado pelo apetite urbano), chegando a ser confundida com ele. Ainda que na origem os artistas de vanguarda não tivessem os dois pés na fábrica mas nos cafés da boêmia, vários destes artistas sentiam-se atraídos pela Revolução: a hostilidade que a classe dominante possuía em relação a eles, mostrava que as rupturas estéticas encaixavam-se nas exigências históricas de uma nova cultura que só poderia nascer com o socialismo. O obstáculo para a aproximação entre vanguardistas e proletariado, que articularam-se de modo extraordinário nos primeiros anos do governo soviético, estava entre os quadros mais conservadores do Partido Comunista: espantosamente as referências artísticas de muitos comunistas não eram o futurismo ou o cubismo mas o academismo/arte clássica( toco nesta questão no artigo Os Comentários de Lenin sobre Arte e Literatura, publicado no ano passado neste mesmo jornal). Antes que a proposta artística burguesa prevalecesse na URSS(!!!) , literatura de vanguarda e literatura revolucionária eram sinônimos.

Os artistas de esquerda organizavam-se em coletivos e botavam pra quebrar. Bogdanov, escritor e intelectual louquíssimo que via a cultura socialista como uma ciência exata, era o principal teórico do Proletkult: surgido em setembro de 1917, este movimento apostava na ideia de que a possibilidade criadora da arte/literatura era muito mais fecunda junto ao proletariado. A burguesia havia esgotado as possibilidades históricas de contribuir com a criação artística: a arte só poderia se desenvolver livremente com a classe operária no poder. A chamada arte proletária e os movimentos de vanguarda, como o construtivismo, articulavam-se em vários momentos. A expressão realismo proletário era utilizada/defendida por vanguardistas da década de 20, numa acepção distinta daquela que prevaleceria com o imaginário do Realismo Socialista. A rapaziada do grupo Outubro, dizia em seu manifesto de 1928:

"(...) Aceitamos construir o realismo proletário que exprima a vontade da classe revolucionária ativa, um realismo dinâmico que mostre a vida em movimento, que abra de maneira planejada as perspectivas da vida, um realismo que produz objetos, que reconstrói, racionalmente, o antigo byt, que age, por todos os meios da arte, no cerne da luta e da construção “(...). Ainda que este coletivo estivesse particularmente envolvido com as artes do espaço(arquitetura, pintura, etc), sua noção de realismo proletário atinge a palavra escrita: a palavra também é um objeto dinâmico, que pode ser trabalhado, planejado, dissecado.

Óssip Brik, dramaturgo e teórico da literatura, frisou o caráter linguístico do poema: o som e o ritmo das palavras levam-nos a pensar que a Revolução proletária, e a profunda subversão política que ela abarca, podem ser expressas nas possibilidades fonéticas e espaciais da poesia. Maiakóvski, já em 1913, comprova este raciocínio:

Balalaica
[como um balido abala
A balada do baile
De gala]
[como um balido abala]
Abala[com balido]
[a gala do baile]
Louca a bala
Laica

Como podemos ver, os futuristas russos da década de 10 já anunciavam um mundo em desordem. Esta desordem atinge inclusive os objetos cotidianos. Khliébnikov, num poema de 1915, dá o seu recado:

"Lentamente,
Assustado,
O chapéu de um ponteiro
Erguia-se sobe o calvo cume dos tempos.
E de repente
Todas as coisas
Puderam-se
Dilacerando sua voz,
A destruir os trapos dos nomes estragados
“.

Entre o desbunde futurista e a racionalização dos construtivistas dos anos 20, existe um rastro de pólvora na cultura: a arte que liga-se ao proletariado revolucionário deveria ter suas estruturas dissecadas e reinventadas, a fim de desenvolver uma função social prática. O poema, por exemplo, seria tão útil ao cotidiano quanto um martelo, um maçarico ou um guindaste. Era isso que o pessoal da LEF(Frente de Esquerda das Artes) defendia: no campo literário tratava-se de recusar a fantasia, encarada como idealização da realidade. O que importava era o registro mecânico, o fato jornalístico. Um radicalismo estético condenava gêneros como o romance: este seria algo “ ultrapassado “, expressão cultural que deveria ser enterrada junto com a burguesia. Entretanto, vários autores soviéticos não abriam mão do romance como solo que poderia tratar das transformações políticas. Esta questão será abordada na terceira parte deste artigo.




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