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A Covid-19 e o papel das universidades na busca por respostas à crise capitalista (Parte 1)

Odete Assis

A Covid-19 e o papel das universidades na busca por respostas à crise capitalista (Parte 1)

Odete Assis

Nesse primeiro artigo centraremos a reflexão sobre como a pandemia impacta nos projetos de ensino a distância e na reestruturação do trabalho dentro das universidades, projetos que já vinham em curso com o golpe de 2016 e o governo Bolsonaro. Num próximo artigo, debateremos como a produção de conhecimento pode estar a serviço da resolução dos grandes problemas que o capitalismo gera, buscando a partir da aliança com a classe trabalhadora construir um projeto de superação desse sistema.

O mundo nunca mais será o mesmo depois dessa pandemia. Essa frase a princípio assusta, mas também nos leva a refletir: qual o mundo queremos construir depois que tudo isso passar? Qual o papel que nós, estudantes universitários, podemos cumprir diante dessa crise que mostra toda irracionalidade da produção capitalista, incapaz de usar a toda a tecnologia e desenvolvimento científico para salvar vidas? Nesse primeiro artigo centraremos a reflexão sobre como a pandemia impacta nos projetos de ensino a distância e na reestruturação do trabalho dentro das universidades, projetos que já vinham em curso com o golpe de 2016 e o governo Bolsonaro. Num próximo artigo, debateremos como a produção de conhecimento pode estar a serviço da resolução dos grandes problemas que o capitalismo gera, buscando a partir da aliança com a classe trabalhadora construir um projeto de superação desse sistema.

Duas ideias se tornaram muito concretas com o agravamento da crise que colocou mais de um terço da humanidade em quarentena, enquanto segue obrigando os outros dois terços a trabalhar, na maioria das vezes de forma totalmente exposta a contaminação pelo vírus. A primeira delas é que, como muito bem colocou Marx, a classe operária tudo produz. São os trabalhadores que movem o mundo e isso é inegável. Difícil imaginar como seria enfrentar essa crise se não fossem os bravos trabalhadores da saúde na linha de frente do combate ao coronavírus, muitos se contaminando pela falta de equipamentos de segurança necessários. Sem os trabalhadores da limpeza, na maioria das vezes terceirizados, mulheres negras invisibilizadas e precarizadas, responsáveis por um dos trabalhos mais fundamentais para a manutenção das nossas vidas. Sem os milhares de operários e operárias das fábricas de álcool gel, máscaras, equipamentos hospitalares, das indústrias alimentícias. A pandemia fez cair por terra as teorias que tratavam os trabalhadores uberizados e precarizados de aplicativos como “colaboradores”, e aquelas que defendiam que as máquinas poderiam substituir o valor gerado pela mais valia do trabalho humano. A outra ideia é sobre a irracionalidade capitalista e como isso pode nos levar a situações catastróficas, como diria Rosa Luxemburgo, trata-se de socialismo ou barbárie.

Em todo mundo a cada três horas é publicado um novo estudo científico sobre o coronavírus. O Brasil, mesmo com os profundos cortes no orçamento, ocupa a 16º posição na publicação desses estudos. Diversas iniciativas vêm sendo construídas em muitas universidades pelo país buscando auxiliar a população no combate ao vírus, organizando arrecadações de solidariedade para famílias carentes, produzindo álcool gel, máscaras, respiradores, realizando testes (imaginem como seria ainda mais subnotificado se não fosse essa iniciativa), pesquisando os caminhos do vírus e como combatê-lo. Iniciativas que mostram todo potencial que poderiam ter as universidades para ao lado dos trabalhadores, darmos uma resposta que pudesse resolver a crise que se aprofundou com essa pandemia, mas também, para transformar a sociedade que vai surgir depois que tudo isso passar. As universidades fazem tudo isso, no marco dos limites impostos pela lógica da administração capitalista, que transforma a educação em mercadoria a serviço do lucro. Se enfrentando com as políticas Bolsonaro, seu negacionismo obscurantista baseando em teorias terraplanistas e no fundamentalismo religioso, com todo legado deixado pelo projeto golpista da educação e os ataques que vinham desde os governos do PT.

Ensino a distância: quando a tecnologia é usada a serviço da precarização e mercantilização da educação

A adoção do ensino a distância por diversas instituições de ensino superior (IES) gerou um profundo debate sobre o papel das novas tecnologias e a serviço do que elas são usadas. Se por um lado a mudança brusca na rotina para milhares de pessoas colocadas em quarentena levou a um aumento no consumo da internet, por outro, a realidade brasileira é que 31 milhões de pessoas não têm acesso a água potável em seus lares, 5,8 milhões de pessoas que não tem banheiro nas suas casas, e 74,2 milhões (37%) vivem em áreas sem esgoto. Um país em que a desnutrição é uma das principais causas de mortalidade infantil, que os índices de pessoas com problemas cardiovasculares e diabetes são altíssimos, que a tuberculose é uma das principais causas de mortes nas favelas, o grupo de risco para a Covid-19 se amplia muito. Não são somente os idosos que estão em perigo, mas toda população vítima dos interesses neoliberais que foram aprofundados com o projeto golpista do qual Bolsonaro foi um fruto indesejado, ao mesmo tempo que segue sendo a expressão da face mais podre e odiosa contra os trabalhadores e toda população que o capitalismo pode chegar. Esse é o pano de fundo no qual se insere o debate sobre ensino a distância nas universidades.

Uma mudança em curso que também diz respeito a disputa sobre como serão as universidades no pós pandemia. O avanço das aulas de ensino a distância (EAD), coloca em questão se a tecnologia vai ser usada a serviço de melhorar o ensino-aprendizagem ou se vai ser um instrumento de aprofundamento da precarização da educação a favor dos interesses dos grandes empresários. Projetos que buscavam avançar na implementação do ensino a distância foram parte chave da política educacional do governo Bolsonaro, de Damares a Guedes, os interesses com o alto lucro advindo da ampliação em larga escala dessa modalidade de ensino era o motivo de fundo da defesa desses projetos pela extrema direita, apoiada também nos fundamentos conservadores e obscurantistas.

O Ministério da Educação de Abraham Weintraub aprovou no fim do ano passado uma portaria que permitia ampliar carga horária de ensino a distância dos cursos presenciais nas universidades públicas em até 40% de aulas na modalidade EAD. Uma sinalização do projeto mais de fundo que desejava consolidar. Essa medida foi antecedida por diversos cortes e políticas que levaram a um levante da juventude em maio de 2019. Sendo que já estávamos sob os impactos da EC 55, que estabeleceu um teto para os investimentos em saúde e educação, obrigando as universidades a funcionarem com uma redução drástica nos orçamentos em nome da manutenção do pagamento da dívida pública, um verdadeiro roubo das riquezas da população em prol dos grandes banqueiros e empresários imperialistas.

A crise com o coronavírus, ao mesmo tempo que revela o potencial das universidades se estas se colocam a serviço da classe trabalhadora e de toda população, também tem sido usada pelos empresários e governos autoritários para avançar com esse projeto golpista de forma ainda mais profunda contra a educação superior pública em nosso país. As modalidades de ensino a distância que passaram a ser adotadas em diversas IES pelo país trazem inúmeros problemas. O primeiro e mais elementar é a tentativa de que tudo funcione como se estivesse normal, enquanto somos bombardeados de notícias chocantes como as imagens dos corpos na Itália, Estado Espanhol e Equador, a imposição dessa modalidade de ensino por fora de qualquer debate com a comunidade universitária leva a naturalizar ainda mais os parâmetros meritocráticos de funcionamento dessas instituições. Não se importam se a quarentena leva a crises de ansiedades, se milhares de pessoas podem ser infectadas pelo vírus ou ver seus parentes em situação de risco, não consideram os impactos psicológicos e sociais desse novo momento.

Outro grande problema é como essa medida desconsidera o perfil de boa parte dos estudantes das universidades federais. Segundo pesquisa coordenada pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES, 2017) somente 10% dos alunos matriculados nas universidades federais vêm de famílias com renda bruta familiar de dez ou mais salários mínimos. Enquanto, 51% dos alunos das universidades federais pertencem a famílias com renda bruta abaixo de três salários mínimos. Se considerada a renda média per capita, 78% dos alunos são de famílias com renda per capita de até dois salários mínimos. Muitos desses jovens não têm condições de acesso a internet ou computador adequados para realização dessas atividades e serão duplamente prejudicados.

O avanço na adoção de sistemas de ensino a distância se dá com professores sendo obrigados a adequar todo conteúdo programático de seus cursos em prazos ultra apertados, utilizando plataformas precárias e sem a infraestrutura básica que garanta o mínimo possível para a realização das aulas, entre uma série de outros problemas relatados por vários estudantes, trabalhadores e professores. Especialmente nas universidades federais muitos se posicionaram abertamente contra essa mudança, no entanto, até mesmo nessas instituições tem acontecido aulas em EAD. Nas estaduais paulistas as reitorias vem utilizando tentando enfiar esse projeto goela abaixo, com canetadas de gabinete. Somos contra o ensino a distância e essa enorme precarização das universidades públicas que é diretamente associada a esses projetos de Bolsonaro e dos golpistas para avançar numa educação cada vez mais tecnicista e totalmente afastada não só do pensamento crítico, mas baseada inclusive na negação do papel da ciência, como estamos vendo na resposta da extrema direita diante da Covid-19. Esse avanço no ensino a distância, além de todos os prejuízos já relatados é abre um perigoso caminho para que o ensino a distância cada vez mais seja utilizado em substituição ao ensino presencial, também abre espaço para que os governos se utilizem desses métodos nas próximas greves estudantis, propondo o EaD como forma de punir os estudantes que estão lutando em defesa da educação.

As universidades privadas: EAD e mercantilização do ensino

O projeto neoliberal em relação às universidades no Brasil se deparou com uma contradição de classe, do ponto de vista da burguesia era necessário formar mão de obra qualificada e produzir ciência e tecnologia, consumindo o mínimo dos recursos do Estado; do ponto de vista da população existia um forte anseio pela democratização do acesso ao ensino superior. Em seu governo, Lula explorou essa contradição buscando conciliar ambas, aprofundando a relação das universidades com os interesses capitalistas. As políticas dos governos petistas deram as bases para o surgimento de um dos maiores monopólios de educação privada do mundo, a Kroton-Anhanguera, e para o fortalecimento desse setor empresarial da educação no país. As bases para um projeto privatista que o golpismo e Bolsonaro buscam aprofundar com a destruição das universidades públicas e da pesquisa, ampliando ainda mais a subordinação do nosso país aos interesses imperialistas. O aprofundamento da crise econômica internacional levava a que a burguesia pudesse abrir mão da formação de uma mão de obra qualificada, a chave agora era a reestruturação das relações trabalhistas em base a uma maior precarização do trabalho. Diminuindo dessa forma o papel das IES no projeto de país que querem consolidar.

Em 2016, as instituições de ensino superior privadas detinham 75% das matrículas em cursos de graduação. Se para a educação pública o golpe significou um aprofundamento na precarização dessas instituições, para as privadas até teve uma queda no número total de matrículas, mas isso não significava uma equivalência em relação aos lucros, que seguiram aumentando fortemente. Uma expressão de qual era o verdadeiro interesse por trás do projeto golpista: precarizar ao máximo a educação pública para favorecimento a educação privada. Segundo o Censo da Educação Superior do Inep (BRASIL, 2017) neste ano o ensino a distância representava 23% do setor privado na educação no país. Sendo o crescimento desse ramo muito maior na educação privada que na rede pública.

Em relação às universidades privadas, o argumento principal para seguir com os cursos de forma virtual diz respeito a que sem isso os empresários teriam que demitir todos os professores. Um argumento absurdo já que as mensalidades seguem sendo cobradas para o conjunto dos estudantes. O mínimo a ser feito era suspender todas as mensalidades, criar um comitê de crise com representantes dos estudantes, professores e funcionários que pudessem tomar as decisões sobre o funcionamento das instituições nesse momento. Esse comitê poderia em primeiro lugar abrir o livro de contas dessas instituições para que se possa ter uma dimensão da realidade de cada uma. Ou alguém acredita que os monopólios que sempre lucraram bilhões com a educação, agora simplesmente não poderiam manter todos os professores e funcionários sem nenhuma demissão? Trata-se de ver qual é a prioridade nesse momento, a manutenção das vidas ou dos lucros? Esse comitê deveria assumir o controle das universidades, debatendo de forma democrática com todos como deve ser o funcionamento dessas instituições enquanto continuar a pandemia e seus efeitos. O que para nós passaria por pensar como colocar em primeiro lugar a produção de conhecimento vinculado ao combate a essa crise, avançando também na necessidade de estatizar o ensino privado sob controle dos estudantes, trabalhadores e professores, sem nenhuma indenização para os monopólios privados. Possibilitando que tanto as universidades privadas como as públicas, pudessem garantir a formação de profissionais e a pesquisa necessária para junto aos trabalhadores responder os grandes problemas que estão colocados, realizando testes massivos, produzindo álcool gel, respiradores e pesquisas sobre o combate a doença, sobre a situação da população nas favelas, nas comunidades, sobre os impactos do isolamento social na vida das pessoas entre uma série de outras atividades fundamentais que colocam em primeiro lugar a prioridade nas vidas das pessoas em oposição a irracionalidade capitalista.

Uma reestruturação trabalhista nas universidades?

Outro fator importante a se pensar é como ficam as relações de trabalho nas universidades, Em debate promovido pelo Esquerda Diário, o professor Ricardo Antunes, umas das principais referência sobre o mundo do trabalho em nosso país, deu inúmeros exemplos de como diante da pandemia se aprofundou um processo de reestruturação das relações trabalhistas, intensificando de forma ainda mais rápida e destruidora o projeto golpista e neoliberal contra a classe trabalhadora. Nas universidades essa reestruturação do trabalho se deu em primeiro lugar pela terceirização daqueles serviços que até ontem eram considerações não essenciais, principalmente às áreas de limpeza e alimentação (bandejões). Milhares de mulheres negras, impedidas de entrar no ensino superior pelo filtro social do vestibular, compõe esse exército de trabalhadoras precárias e foram as primeiras a serem ameaçadas pela demissão em massa quando as aulas foram liberadas. Em defesa dessas trabalhadoras, contra a demagogia das reitorias, patrões e governos que querem fazer com que essas mulheres paguem o custo mais alto dessa crise, nós da juventude Faísca-Anticapitalista e Revolucionária, impulsionamos desde as gestões de Centros Acadêmicos das quais somos parte uma forte campanha em defesa dessas trabalhadoras, em primeiro lugar para que aquelas que seguiam trabalhando pudessem ter acesso aos EPIs, defendendo o direito a liberação remunerada e a garantia do emprego, com a efetivação imediata dessas trabalhadoras que cumprem uma função essencial para a manutenção das universidades.

Um outro processo que já tinha começado com o golpe institucional e a aprovação da reforma trabalhista foi a precarização do trabalho docente. Enquanto nas universidades privadas o efeito automático da aprovação dessa nefasta reforma foi a demissão em massa de diversos professores, para contratar novos profissionais em regimes mais precários, com muito menos direitos e salários mais baixos. Nas universidades públicas a falta de verbas vinha levando ao congelamento nas contratações e a adoção de lógicas cada vez mais produtivistas, que estabeleciam parâmetros para os professores muito distantes da preocupação com o ensino, aprendizagem e a pesquisa, mas cada vez mais próximos da lógica mercadológica do sistema capitalista. O que levou também a um processo de contratação de pesquisadores da pós-graduação para dar aulas. Um exemplo disso, é como na maior universidade do país, a USP, pesquisadores do pós-doutorado foram contratados como professores precários recebendo cerca de um salário mínimo.

A crise do coronavírus e a suspensão das aulas acelerou esse processo de precarização das relações trabalhistas, seja diretamente com a ameaça de demissão em massa de trabalhadores terceirizados e professores de universidades privadas, ou com o aumento da carga de trabalho devido às adequações necessárias para também se levar adiante a implementação das aulas EAD, de forma totalmente apressada e na contramão das reflexões defendidas por muitos especialistas em ensino. Sob a justificativa de manter algo da normalidade da rotina anterior, se coloca uma disputa sobre como será estruturado o trabalho de técnicos administrativos, terceirizados e professores nas universidades pós-pandemia.

É nesse cenário que Bolsonaro expressa a face mais abjeta que os capitalistas podem chegar, elegendo como seus representantes um machista, racista, que despreza as vidas humanas, como vimos nas inúmeras declarações cínicas do presidente se referindo ao vírus como um “gripezinha”, cuja responsabilidade pelas mortes seria unicamente individual das famílias que não cuidavam daqueles que são parte dos grupos de risco. Como se todo projeto neoliberal e privatista em áreas fundamentais, como a saúde e educação, da qual ele e diversos golpistas, como Dória, Witzel e Maia sempre foram defensores, não fosse os principal responsável por chegarmos nesse crise totalmente despreparados para enfrentar o vírus. Apesar de aparecerem para alguns, como mais racionais frente aos absurdos de Bolsonaro, os governadores, Mourão, Braga Neto, o congresso e o STF são parte desse sistema podre, apoiaram todos os projetos que nos fizeram chegar até aqui. Com o agravante de que militares defensores do golpe de 64 estão cada vez mais ganhando um protagonismo nas decisões sobre os rumos do país, abrindo debates sobre quem de fato está a frente do poder executivo, Bolsonaro ou Braga Neto e os governadores? Mas o aprofundamento desse debate e a discussão sobre como colocar o conhecimento produzido nas universidades a serviço da transformação da sociedade, e o papel das nossas entidades estudantis como a UNE, são parte do tema que iremos abordar na continuação desse artigo, na próxima edição desse semanário.


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Odete Assis

Mestranda em Literatura Brasileira na UFMG
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