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A 15ª edição da Flip nos tempos de Golpe

A 15ª edição da Festa Literária de Paraty veio anunciando que iria, enfim, dar resposta aos anseios daqueles que há muito apontavam a evidente necessidade de maior abrangência, tanto nos convidados quanto nos temas, e que seria a Flip da diversidade, das mulheres e dos negros. De fato, a Flip alcançou seu objetivo, e mais do que isso dialogou com um público que está sedento por mais do que apenas resistir.

segunda-feira 31 de julho de 2017 | Edição do dia

A Festa Literária de Paraty assumiu, principalmente na figura da curadora da edição deste ano Joselia Aguiar, a missão de pagar uma dívida histórica da festa, a ínfima participação de mulheres e negros, de suas produções literárias e intelectuais, bem como temáticas pertinentes a esses setores dentro da programação. Esse aspecto da festa, que como vitrine do mercado editorial e da produção intelectual, é apenas a expressão de um dado mais estrutural do machismo e racismo institucional da sociedade e da cultura brasileira.

O primeiro passo, no sentido de efetivar essa intenção de criar uma programação muito mais plural, veio com a escolha de Lima Barreto como a figura principal a ser homenageada na festa. Outro passo mais, os convidados das mesas, muitas compostas inteiramente por mulheres, e um percentual geral de 30% dos convidados negros. Houve quem achasse pouco, verdade seja dita, qualquer iniciativa no sentido de demolir os imensos pilares que são o patriarcado e o racismo, especialmente no Brasil, na sustentação da sociedade são, de fato, pequenas.

Na abertura da festa Joselia Aguiar disse que Lima Barreto podia nos levar a compreender melhor o nosso país. E de fato, a trajetória de Lima é a triste síntese do porquê demorou tanto tempo para um negro ocupar essa posição de protagonista na festa, e a defesa inequívoca da necessidade dessa posição ser ocupada por esses setores.

A biografia do autor é a prova material de que para um negro não basta ser bom, é preciso ser duas vezes melhor que o restante. Diferente de Machado de Assis, que gozou de prestígio ainda em vida, Lima Barreto somente hoje, tão tardiamente, começa a ter o reconhecimento devido. Durante a vida, enfrentou dificuldades até mesmo para ser publicado, retirando, inclusive, de seus limitados recursos o dinheiro para tal. Como Conceição Evaristo, outra autora grandiosa só recentemente descoberta, novamente uma autora negra, disse em uma das mesas sobre o porquê de ter sido tão tardiamente descoberta: “Algumas pessoas falam que é apenas por ser uma autora inédita, como qualquer autor inédito demora para ser publicado, mas alguns demoram mais que outros”.

Numa de suas primeiras anotações em seu diário, Lima Barreto declara:

“Eu sou Afonso Henriques de Lima Barreto. Escreverei a história da escravidão negra no Brasil e sua influência na nossa nacionalidade”

Esta singela anotação é a afirmação do caráter militante de sua obra, que crescentemente se aproximou do anarquismo; e mais que isso, é o testemunho do que durante muito tempo foi roubado da história dos negros, a consciência de nossa ultrajante condição social, e a, também consciente, organização de nossa resistência. Em outra mesa da festa, um historiador e uma romancista histórica, trataram justamente sobre a tradição de resistência negra, resgatando histórias de vida de inúmeros personagens que protagonizaram a Revolta dos Malê, antecedida por outras tantas insurreições, além da história de Xica da Silva, uma mulher negra que em meio a todo contexto da escravidão, viveu sua liberdade.

Outra nova e bem-vinda iniciativa foram as performances que introduziram algumas das mesas. Na atualidade, em que arte, e assim a literatura, não se conforma a modalidades pré-determinadas e retoma sua natureza performático, esta foi uma inovação. Denominadas como Fruto Estranho, as performances se constituíram de leituras, como a impactante leitura de Adelaide Ivánova e seu poema que expunha a tão numerosa e tão naturalizada realidade dos feminicídios, ou os vídeo-poemas, como a ambiciosa vídeomontagem de André Valias que entre trechos declamados de Lima Barreto e imagens tridimensionais, ainda conseguiu conciliar um dos tantos pedidos que se viu na festa por liberdade de Rafael Braga.

Como as muitas intervenções por Rafael Braga demonstraram, esta foi uma Flip com acentuado caráter político. E assim foi, também, com as inúmeras intervenções por “Fora Temer”. A associação entre arte e política é evidente, como na obra do principal homenageado Lima Barreto. Entretanto, o intuito da festa literária, patrocinada pelo banco Itaú e por inúmeras editoras, nunca foi dar vasão a essa vertente mais politizada da arte. Porém, essa foi exatamente a marca da 15ª edição da Flip, dar voz aos setores sufocados da sociedade, que gritaram: por liberdade a Rafael Braga, por “Fora Temer”, por “Nenhuma a Menos!”. A aposta dos organizadores da Flip de atendar a demandas de tal público pode ter sido arriscado, pois como bem disse Conceição Evaristo em sua mesa: "Daqui pra frente, não aceitaremos retrocesso!".




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