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TEORIA | 40 anos de "Considerações sobre o marxismo ocidental" de Perry Anderson

Em princípio, foi uma polêmica. O que hoje conhecemos como Considerações..., na realidade, pretendia ser uma introdução a uma compilação que a equipe de redação da conhecida revista britânica, então dirigida por Perry Anderson, New Left Review (NLR), estava preparando. O projeto não pôde ser concretizado e o texto, escrito em 1974, foi publicado como livro em 1976 com um epílogo que refletia as discussões abertas nesse coletivo intelectual [1]

terça-feira 31 de janeiro de 2017 | Edição do dia

Em princípio, foi uma polêmica. O que hoje conhecemos como Considerações..., na realidade, pretendia ser uma introdução a uma compilação que a equipe de redação da conhecida revista britânica, então dirigida por Perry Anderson, New Left Review (NLR), estava preparando. O projeto não pôde ser concretizado e o texto, escrito em 1974, foi publicado como livro em 1976 com um epílogo que refletia as discussões abertas nesse coletivo intelectual [1].

A hard day’s night

As hipóteses do livro tinham muito do ajuste de contas com a agenda de sua revista. Há algumas coordenadas não mencionadas ali, mas que o motivam: Anderson vinha realizando um balanço nada lisonjeiro do marxismo britânico, para ele parte de uma intelectualidade presa a uma cultura nacional conservadora e empirista que não havia sabido construir nem uma sociologia nem uma tradição marxista sistemáticas [2]. Aquelas vertentes do que chamou de “marxismo continental” permitiam uma análise totalizante que faltava na teoria social britânica. A revista havia já iniciado o trabalho de publicação de textos da tradição marxista francesa, italiana e alemã; desde 1966 em diante publicaram Sartre, Lukács, Adorno, Benjamin, Althusser e Gramsci, entre outros. A linha editorial da NLR, no final de 1970, contava com mais da metade de seu catálogo dedicado a esses autores [3]. Isso significa que foi a NRL dirigida por Anderson a que havia introduzido na ilha os autores que agora ele criticaria.

Porém, além disso, se durante os 60’ a revista havia considerado como principais tendências do marxismo contemporâneo – no qual a diferenciação com o stalinismo tinha um lugar central – o marxismo ocidental, o maoísmo e o trotskismo, com os novos ares que trouxe a ascensão da luta de classes a partir do Maio Francês, para Anderson, havia chegado também o momento de ajustar contas políticas. O marxismo ocidental já havia sido caracterizado como “esotérico” em um de seus artigos; o maoísmo não parecia aplicável às condições europeias – e estava então em um franco giro à direita. Em contrapartida, Anderson advogaria por recuperar uma tradição que, via influência de Deutscher e Mandel, havia ganhado peso na NLR [4]. Considerações... é parte de uma etapa, que poderíamos estender até a publicação em 1983 de Nas trilhas do materialismo histórico, em que Anderson considerou o trotskismo como uma alternativa para o debate estratégico que a nova situação colocava. Contudo, isso não foi necessariamente compartilhado por seus colegas, abrindo uma série de debates internos que, a seu modo, Anderson tentará responder no epílogo que agrega, no momento de sua publicação, ao livro.

Let it be

Anderson resume as características do que vai denominar como “marxismo ocidental”, oposto ao que considera um “marxismo clássico”, assim:

Nascido do fracasso das revoluções proletárias nas zonas avançadas do capitalismo europeu depois da primeira guerra mundial, desenvolveu dentro de si uma crescente clivagem entre a teoria socialista e a prática da classe operária. O abismo entre ambas, aberto originalmente pelo isolamento imperialista contra o Estado soviético, foi ampliado e fixado institucionalmente pela burocratização da URSS e da Komintern sob Stalin. [...] O resultado foi a reclusão dos teóricos nas universidades, longe da vida do proletariado de seus países, e um deslocamento da teoria desde a economia e a política à filosofia. [...] Reciprocamente, marchou junto a um decrescente nível de conhecimento ou comunicação internacional entre os teóricos dos diferentes países. [...] levou a uma busca geral retrospectiva de antecessores do marxismo no anterior pensamento filosófico europeu e a uma reinterpretação do materialismo histórico à luz deles. [...] O método como impotência, a arte como consolo e o pessimismo como quietude: não é difícil perceber elementos de todos eles no marxismo ocidental. Porque o determinante dessa tradição foi sua formação pela derrota [5].

A definição do “marxismo clássico” e a crítica à divisão entre teoria e prática parece ter sido tomada de Deutscher, ainda que o biógrafo de Trotski a tenha colocado em contraposição ao “marxismo vulgar” representado pelo stalinismo [6]. A definição de “marxismo ocidental”, por sua vez, havia sido usada por Merleau-Ponty para destacar um marxismo alijado do economicismo mecânico que havia ganhado peso na socialdemocracia e na III Internacional stalinizada. Destacava as figuras de Korsch e Lukács e uma vindicação da herança hegeliana [7].

O agrupamento que propõe Anderson, então, é ousado, porque inclui como parte de uma mesma tendência a tradição que destacava Merleau-Ponty e outros que melhor haviam se enfrentado com essa leitura de Marx: Althusser e Colletti embandeiravam-se, por exemplo, da necessidade de extirpar do marxismo seus flertes hegelianos. As críticas acirraram-se, desde então, por todos os flancos.

Não faltaram questionamentos pela ausência de marxistas que também ampliaram os horizontes do marxismo em terrenos como a arte, a filosofia ou a psicologia: Jay aponta que ignora Reich, Bloch ou Kosik [8]. Russel Jacoby menciona Lefort e Castoriadis [9].

Entretanto, mais debatidos ainda foram alguns dos que sim figuram, especialmente Gramsci: o mesmo Anderson o aponta como exceção tantas vezes que, terminado o livro, é difícil saber por que o convocou em primeira instância.

Suas próprias definições fizeram com que, por mérito, fosse incluído no marxismo clássico, como a participação nas insurreições dos anos vinte na Itália e a importância, ao redor de seus desenvolvimentos sobre a hegemonia, para o debate estratégico [10]. Sua inclusão parece estar motivada pelos desenvolvimentos que Gramsci fizera sobre os problemas da filosofia e da cultura. Anderson argumenta que a eleição desses temas foi uma forma como os marxistas ocidentais, incomodados com os PC, buscaram evitar um confronto direta com o stalinismo [11]. Mas, a partir desse atinado apontamento, realizará uma generalização ruim: não é que desdenhe os temas ideológicos e culturais – de fato reconhece muitas das inovações produzidas ali –, porém parece não levar em conta que, para além da oportunidade que tenham tido para abordá-las, foram estas também preocupações dos “clássicos”, sem ir mais longe, quando resgata Trotski, destaca seus Escritos militares e... Literatura e revolução.

Similares objeções têm sido feitas a respeito de Lukács, que também participou da experiência dos conselhos húngaros nos vinte e do debate estratégico na III Internacional. Sem dúvida, pode ser contado como aqueles marxistas que, influenciados pelos escritos juvenis de Marx, desenvolveram uma série de aspectos ligados à alienação e às formas da consciência de classe que fizeram escola; mas se com ele bastasse, Althusser seria o que deveria sair do grupo. Tampouco se aplica o haver feito um caminho “da economia ou da política à filosofia”, porque Lukács foi ganho para o marxismo quando já era um intelectual dedicado a esses temas. O critério temático, assim, muitas vezes balança.

Pelo lado dos posicionamentos políticos, Anderson apenas menciona um traço dos marxistas ocidentais da “primeira geração”: suas posições teóricas se forjaram à par de uma crítica ao crescente reformismo da socialdemocracia, alinhados com a III Internacional (embora enfrentados por Lenin ou Trotski). É que, se bem é certo que houve uma unidade entre a teoria e a prática socialdemocrata, seria difícil catalogá-la como unidade virtuosa. E se da distância com o stalinismo se trata, haveria de mencionar, disse Jay, que um Althusser influenciado pelo maoísmo por exemplo não foi, precisamente, um anti-stalinista [12].

[Help]

A visão que colocava Anderson sobre a tradição clássica foi um eixo das críticas que lhe dirigiram seus colegas da NLR, por apresentá-la como homogênea e sem contas pendentes. Essa será uma das lacunas que tentará emendar em seu epílogo, autocriticando-se por certo “ativismo irresponsável” e agregando uma série de problemas irresolutos que vê na tradição de Marx, Lenin e Trotski [13], os que destaca, de todas as formas, como base necessária para o desenvolvimento de um marxismo revolucionário.

Por outro lado, bem poderia se questionar a própria prática política de Anderson até então: a divisão entre teoria e prática que afetava a própria revista não é problematizada, apesar de que já havia sido reprovada por antigos colegas. A ruptura com o primeiro comitê editorial nos sessenta, quando Anderson se encarregou da publicação, havia significado também um apartamento da organização de estudantes e trabalhadores que havia sabido animar a NLR, especializando-se no debate exclusivamente teórico que lhes valesse por então o mote de “olímpicos” [14], habitantes de um panteão alijado da política terrena.

Não se trata de ditar em que medida estavam equivocados ao tomar essa decisão, nem de desconfiar da genuína esperança de Anderson em que eles mesmos puderam ser parte de um fortalecer do marxismo que superara um divórcio. Porém, é difícil justificar que Anderson, tão perspicaz para colocar um problema que sem dúvida é central ao marxismo, seja tão descuidado em ver a viga do próprio olho. A omissão do marxismo inglês parece ser também uma forma de evitar uma discussão que o incluía especialmente.

Don’t let me down

Anderson considera que a esterilidade do marxismo ocidental no terreno da economia e da política tinha a ver com o pós-guerra, que trouxe, nos principais países capitalistas, uma consolidação do capital e da democracia representativa que pareciam contradizer algumas das teses manipuladas até então, obrigando a novas conceituações [15] que, apesar de algumas tentativas, nenhum marxista contemporâneo havia alcançado.

Porém, se as características apontadas por Anderson constituem uma dura crítica a essa tradição, não parece tanto uma censura como o reconhecimento dessa qualidade “oculta” que a delimitou: ser o “produto de uma derrota”.

O núcleo da interpretação é, então, uma leitura político-sociológica da relação entre contexto histórico e desenvolvimento teórico. Seguindo a mesma lógica, Considerações... está motivado pela esperança que Anderson tem em uma nova ascensão como condição para superar esse impasse, embora a realidade pouco depois o decepcionaria, como reflete seu livro, publicado pouco depois, Nas trilhas do materialismo histórico. Ali deixa assentado que, apesar de haver sido registrado pós-68, como esperava, o fortalecimento dos temas econômicos, políticos e históricos – deslocados da Europa latina à anglo-saxã –, seguiu primando a divisão entre teoria e prática, e a “miséria” de um pensamento estratégico que permitisse ao marxismo, como teoria sistemática, ser alternativa ao avanço do estruturalismo e do pós-estruturalismo.

A relação entre as derrotas na luta de classes e as modulações da teoria marxista não é nova. Lenin considerava que assim como da derrota podiam tirar lições para novas batalhas, também dela provinham as tentativas de combinação eclética do marxismo com teorias que terminavam o negando. Assim explicava que, por exemplo, assim que a Revolução de 1905 foi derrotada, um Bogdanov tentara combinar a teoria do conhecimento do marxismo com a de Kant. Embora não mencione explicitamente, algo similar parece ter em mente Anderson quando aponta que o marxismo ocidental está marcado por um ceticismo tão profundo quanto trágico [16].

De te fabula narratur, após o fracasso da ascensão dos setenta e da chegada do thatcherismo, a mesma característica poderia ser atribuída a Anderson. Em um artigo da NLR de 1990 admite que sua leitura do marxismo ocidental estava impregnada de um “triunfalismo teórico”. Uma década depois, o ceticismo havia ganho direito de cidadania em uma nova etapa da NLR que, com sua pena, proclamava: “já não se dão oposições significativas, ou seja, perspectivas sistematicamente opostas, no senso do mundo do pensamento ocidental” frente a um neoliberalismo que “como conjunto de princípios impera sem fissuras em todo o globo: a ideologia mais exitosa da história mundial” [17]. Keucheyan, que faz uma tipologia dos “teóricos críticos” contemporâneos, localiza-se sob o rubro dos “pessimistas”, mesmo que conceda que o animador da NLR tenha mantido também seu espírito crítico ao capitalismo [18] (assim como Anderson havia reconhecido nos marxistas ocidentais que o ceticismo os mantivera distantes da tentação de passar ao campo da burguesia, embora alguns deles o tenham feito).

Come together

Resta se perguntar por que as hipóteses de Anderson, que colheram tantas críticas, não caíram no esquecimento, mas foram tão influentes para defensores e detratores. Provavelmente porque, por mais que em muitos casos tenham sido unilaterais, foram sempre pertinentes para um marxismo que não pretenda ser um simples método de análise.

Os marxistas revolucionários têm apelado em muitos casos a uma definição da teoria como “guia para a ação”, não no sentido de um pragmatismo politicista que ofereça uma teoria para cada definição a tomar, mas no mesmo sentido que Clausewitz: a teoria não como receitas aplicáveis a toda situação, e sim como um desenvolvimento que possa servir de “ponte” entre a prática prévia e a atual e futura.

Trata-se de uma pergunta que ainda hoje está pendente de resolução. Keucheyan aponta que o marxismo ocidental foi muito pouco clausewitziano – alijado do debate estratégico – e que as teorias críticas atuais, herdeiras daquele, seguem essa orientação [19]. Na etapa de Restauração burguesa dos últimos 30 anos [20], essa tendência foi apenas contrabalanceada por débeis fios de continuidade.

O século XXI chegou, todavia, acompanhado da reacionária ideologia do neoliberalismo, sem aparente rival à vista, mas também em crise. A emergência de fenômenos políticos permitiu o esboço de novas tentativas teóricas alternativas, como as distintas variantes do autonomismo ou dos chamados “populismos de esquerda” que se desenvolveram em paralelo, nos países centrais, aos movimentos anti-globalização; na América Latina, às sucessivas crises dos regimes neoliberais; e na África, à Primavera Árabe. Porém, ainda com a diversidade de combinações que lhe deram origem e marcaram seu pulso, pode-se apontar como traço comum que em nenhum desses processos houve algum desenvolvimento de um movimento operário revolucionário no qual se pudesse apoiar um novo desenvolvimento do marxismo. A tarefa de forjar uma teoria que recupere essa unidade entre teoria e prática do marxismo clássico, que possa dar conta das condições em que se apresentarão as novas batalhas entre as classes, e que supere as variantes reformistas que buscam segurar um capitalismo em crise histórica, caiu por agora nas mãos de pequenos grupos marxistas revolucionários que deverão ainda preparar as bases para esse momento em que, ao dizer de Marx, ligando-se às massas, “a teoria torna-se poder material” [21].

Entretanto, a crise capitalista e a bancarrota do neoliberalismo, junto com a inexistência de grandes aparatos reformistas e burocráticos como a socialdemocracia ou o stalinismo, podem mudar essas condições.
Assim como as derrotas deixam suas marcas na teoria, também a ascensão da luta de classes transforma, frequentemente de maneira brusca, as subjetividades de milhões, e com ela as coordenadas do debate político e teórico.

Trotski dizia que a consciência teórica mais elevada que se tem de uma época, em um determinado momento, funde-se com a ação direta das camadas mais profundas das massas alijadas da teoria: “a fusão criadora do consciente com o inconsciente é o que se chama comumente aspiração. A revolução é um momento de impetuosa inspiração na história”. Mas toda “inspiração” histórica requer um trabalho preparatório de agrupamento de forças, de busca de ligação com o movimento operário e de transformação da experiência na teoria; aquelas tarefas que Lenin e Trotski entendiam como construção partidária. Uma tarefa que requeria, segundo Trotski, “uma capacidade gigantesca de imaginação criadora” [22].

Corresponderá a novas gerações de marxistas voltar a pôr em foco esse debate e desenvolver sua imaginação teórica. Os debates e elaborações do Ideas de Izquierda tentam contribuir com elementos e ferramentas para esse objetivo.

  •  A compilação será publicada finalmente em 1977 como Western Marxism. A critical reader.
  •  Ver Anderson em NLR 23, 1964; NLR 29, 1965; NLR 35, 1966; NLR 50, 1968.
  •  Gregory Elliot, Perry Anderson. The Merciless Laboratory of History, Minneapolis- Londres, Minesotta University Press, 1998, p. 54.
  •  Duncan Thompson, Pessimism of the intellect?, Monmouth, Merlin Press, 2007, p. 60-67.
  •  Anderson, Consideraciones…, México, Século XXI, 1998, pp. 115-6.
  •  Elliot, ob. cit., p.102.
  •  Martin Jay, Marxism and totality, Berkeley, University of California Press, 1984, pp.1-2.
  •  Ibídem, pp.4-5.
  •  Dialectic of defeat, Cambridge, Cambridge University Press, 1981, p. 108.
  •  Anderson, ob. cit., pp. 59 e 99.
  •  Ibídem, p. 53.
  •  Jay, ob. cit., p. 192.
  •  Anderson, ob. cit., p. 132. Hobsbawm disse então que, com esse epílogo, Anderson se retratava dos 90 % do livro (Elliot, ob. cit., p. 105). Também houve críticas do trotskismo inglês: Callinicos, por exemplo, reclamaria que os representantes do trotskismo que oferece (Deutscher, Rosdolsky, Mandel) requeririam também uma maior crítica (International Socialism 99, 1977).
  •  Duncan Thompson, ob. cit., p. 11.
  •  Anderson, ob. cit., pp. 57 e 61.
  •  Ibídem, p. 110.
  •  “A culture in contraflow”, NLR 180 y 182, 1990 e “Renewals”, NLR II-1, 2000.
    Razmig Keucheyan, Hemisferio Izquierdo, Madrid, Siglo XXI, 2013, p. 87.
    Ibídem, pp. 23-4.
  •  Matías Maiello e Emilio Albamonte, “En los límites de la ‘Restauración burguesa’”, Estrategia Internacional 27, 2011.
  •  “En torno a la Crítica de la Filosofía del Derecho”, Escritos de juventude, México, FCE, 1987, p. 497.
  •  León Trotsky, Mi vida, Bs. As., IPS-CEIP, 2012, p. 349 y 358.

    Tradução: Vitória Camargo


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