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MOVIMENTO ESTUDANTIL | 4 estudantes da UFMG que deram a vida na luta contra a ditadura

Neste texto resgatamos as biografias de 4 estudantes que, como muitos outros, deram a vida pela luta contra a ditadura. Na UFMG, se encontraram na mesma época e entrelaçaram suas vidas. Walkiria Afonso Costa foi casada com Idalísio Soares Aranha, e José Carlos da Mata Machado compartilhou com Gildo Macedo Lacerda a militância e a amizade. Seus nomes e rostos são lembrados nos corredores e homenageados nas entidades estudantis. Perseguidos e assassinados, suas lutas não puderam ser apagadas por seus algozes.

Elisa CamposFilosofia - UFMG

domingo 4 de abril de 2021 | Edição do dia

Neste 31 de março de 2021, em que se completou 57 anos do início da ditadura militar no Brasil, vários militares do governo Bolsonaro, como Mourão e Braga Netto, comemoraram o dia como se fosse um fato histórico venerável.

Antes disso o próprio presidente havia recorrido à Justiça pelo “direito” de comemorar o golpe, com a intenção de realizar atividades alusivas àquela resposta reacionária contra os trabalhadores, camponeses, indígenas, estudantes, artistas, e uma série de outros grupos sociais que ousassem questionar a ordem capitalista.

Com os apoios fundamentais do governo estadunidense, de grandes empresas como a Volkswagen e da mídia hegemônica, os militares levaram a cabo o que consideram o melhor momento da história do Brasil: entidades estudantis e sindicatos perseguidos e proibidos de se organizarem, Congresso fechado, impossibilidade eleitoral, censura artística e política, prisões, torturas e assassinatos.

Porém, não foram poucos os que se recusaram a aceitar a ordem autoritária que vigorou de 1964 a 1985. Mesmo em meio ao risco de prisões e desaparecimentos, as duas décadas da ditadura foram marcadas por fortes levantes operários (como os de Contagem, Osasco, ABC Paulista), pelas batalhas indígenas pela terra, pela luta por reforma agrária dos camponeses, e pela organização dos estudantes em apoio a estes setores.

Neste texto resgatamos as biografias de 4 desses estudantes que, como muitos outros, deram a vida pela luta contra a ditadura. Eles foram estudantes da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), aonde se encontraram na mesma época e entrelaçaram suas vidas. Walkiria Afonso Costa foi casada com Idalísio Soares Aranha, e José Carlos da Mata Machado compartilhou com Gildo Macedo Lacerda a militância e a amizade. Seus nomes e rostos são lembrados nos corredores e homenageados nas entidades estudantis. Perseguidos e assassinados, suas trajetórias não puderam ser apagadas por seus algozes.

Seu período de encontro se deu em torno de 1968, quando em 13 de dezembro o Ato Institucional nº 5, o chamado AI-5, foi baixado durante o governo do general Costa e Silva, prevalecendo pelos 10 anos seguintes. Este período deu à ditadura militar um de seus capítulos mais violentos, em que histórias como as de Walkiria, Idalísio, José e Gildo se repetiram em diversos lugares do país, e permanecem ainda hoje sem respostas. Junto à impunidade dos torturadores permitida pela transição democrática pactuada com os militares, as ações criminosas foram escondidas por uma cortina de silêncio e censura, e maquiadas por relatos mentirosos.

Pela memória de todos que se arriscaram para se levantar contra os abusos do regime militar, como os estudantes que conheceremos em seguida, é preciso acabar hoje com os entulhos da ditadura, como a Lei de Segurança Nacional, utilizada recentemente por Bolsonaro para prender quem o chamasse de genocida, frente à tragédia criminosa da pandemia no Brasil.

Walkiria Afonso Costa, José Carlos da Mata Machado, Idalísio Soares Aranha, Gildo Macedo Lacerda, presentes!

Aviso: este texto contém passagens fortes de violência, ao relatar as circunstâncias em que as vidas de jovens estudantes foram ceifadas pelo regime militar. Preferimos não omitir tais passagens, visto que vivemos um momento de tanta banalização e naturalização sobre aquele período. Lembrar sempre, para não se repetir jamais.

Walkiria Afonso Costa

Wal ou Walk, como era chamada, nasceu em Uberaba (MG) em 1947. Inconformada com as injustiças sociais, Walkiria era conhecida como uma menina meiga e inteligente, que gostava de tocar músicas clássicas e populares em seu acordeon. Já trabalhando como professora, passou em segundo lugar no curso de Pedagogia na UFMG. No movimentado 68, Walkiria foi uma das fundadoras do Centro Acadêmico de Pedagogia, instrumento de luta política contra a ditadura e em defesa da universidades, contra o corte de verbas e o fechamento do restaurante universitário. Hoje, o Diretório Acadêmico da Faculdade de Educação (FaE/UFMG) leva seu nome.

Casada com o também militante Idalísio Soares Aranha, em 1971 se mudou para o sudeste do Pará e participou da Guerrilha do Araguaia, da qual muito pouco se sabe, além de que foi uma chacina marcada por uma investida decisiva do Exército na qual apenas um dos quase 70 guerrilheiros sobreviveu para contar sobre o período. “Ver, ouvir e calar”, era a ordem dos comandantes aos soldados que chegavam à região. Apesar do silêncio imposto pela falta de documentos e relatos, a poucos anos quatro soldados que atuaram na repressão deram depoimentos à revista Época, e as circunstâncias da morte de Walkiria estão presentes neles, junto de outros militantes executados.

Em uma tarde de outubro de 1974 (ano no qual o então presidente general Ernesto Geisel autorizou a execução de opositores ao regime ditatorial, de acordo com um documento publicado pela CIA) Walkiria foi encontrada pelos militares após 10 meses de fuga na mata. Foi presa na casa de um camponês aonde tinha ido pedir comida, pálida, cheia de picadas de insetos, manca, malcheirosa e descalça. Carregava apenas um revólver velho, um punhado de sal com farinha e uma cera para fazer fogo. O ex-soldado Josean Soares foi guarda de Walkiria nos poucos dias que esteve na base militar de Xambioá. Ele e um colega já falecido foram encarregados de abrir uma cova atrás do refeitório da base, e no mesmo dia foram dispensados junto da maior parte da base para farrear na cidade e só voltar depois de 1 da madrugada.

Ao voltar, Josean viu que Walkiria não estava mais no cativeiro. Encontrou, em seguida, a cova que abrira coberta de terra, e uma poça de sangue fresco brilhando ao lado. Soube mais tarde que Walkiria foi assassinada a tiros ao lado da cova com uma espingarda de cano longo, por um sargento paraquedista conhecido como Tadeu. Com o primeiro tiro no pescoço, Walkíria caiu e ainda ameaçou se levantar. Recebeu o segundo tiro. Mexeu-se de novo e levou o terceiro. Apesar do depoimento, os restos mortais de Walkiria não foram encontrados. Ela foi a última guerrilheira a ser morta no Araguaia.

Em 2018, a mãe de Walkiria, Odete Afonso Costa, ainda acreditava que a cada campainha da porta poderia rever sua filha desaparecida. O pai de Walkiria, Edwin Costa, faleceu antes que pudesse se ter alguma esperança de encontrar o corpo de Walkiria. Ele escreveu uma comovente mensagem para ser colocada no túmulo da jovem lutadora caso seus restos mortais fossem achados e sepultados: "Pensam que me mataram? Ressuscitaram um ideal. Pensam que me enterraram? Plantaram uma semente."

Idalísio Soares Aranha

Conhecido como Aparício, nasceu em Rubim (MG) em 1947. Era de pouca conversa, mas reunia muitos em torno para cantar e tocar violão. Em 68 se classificou no curso de Psicologia da UFMG e mostrou desde então sua disposição militante contra as injustiças sociais. De acordo com boletim da própria universidade, Idalísio organizou a “luta dos excedentes”, estudantes aprovados no vestibular que não foram convocados para ocupar suas vagas, e juntos conquistaram esse direito.

Participante ativo do movimento estudantil, em 1971 foi eleito como presidente do Diretório Acadêmico da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FAFICH), que hoje leva seu nome. Casado com Walkiria Afonso Costa, se mudou com ela para Araguaia, e morreu em resistência feroz segundo documento dos próprios militares, em data controversa, entre 13 de junho e 13 de julho de 1972.

Após se perder na mata na tentativa de encontrar alimento, Idalísio foi encontrado por militares e assassinado na troca de tiros. No livro “A Lei da Selva: estratégias, imaginário e discurso dos militares sobre a Guerrilha do Araguaia”, Hugo Studart, autor do livro, traz o embate que resultou na morte de Idalísio e no enterro feito pelos militares. De acordo com o autor, Idalísio levou 53 tiros de metralhadora, inclusive no rosto, e ainda assim conseguiu escapar na mata. Foi apanhado agonizante alguns quilômetros adiante, aonde foi executado com um tiro de espingarda na cabeça, que foi praticamente arrancada do tronco. Ele foi enterrado como indigente em um cemitério de Xambioá. Os militares mataram um cachorro e enterraram junto de Idalísio para dificultar a futura identificação.

Em depoimento, Antônia Aranha, irmã de Idalísio, relatou que “ele dizia sempre pra gente o seguinte ‘Eles não me pegam vivo, eles não vão me trucidar vivo’”. Os restos mortais nunca foram encontrados e sepultados, mas sua memória vive na bravura e resistência da luta.

Confira aqui cartas de familiares de Walkiria e Idalísio, além de um escrito de Walkiria sobre as músicas de Geraldo Vandré.

José Carlos Novaes da Mata Machado

José Carlos nasceu no Rio de Janeiro em 1946, mas desde pequeno morou em Belo Horizonte (MG). No mesmo ano do golpe militar, em 64, José entra na UFMG em primeiro lugar no curso de Direito. Com 20 anos já era presidente do Centro Acadêmico Afonso Pena e vice-presidente da UNE (União Nacional dos Estudantes).

Na UFMG conheceu Gildo Macedo Lacerda, com quem compartilhou não só a militância, como também uma grande amizade. Infelizmente, compartilharam também a morte prematura. Em 68, José Carlos e Gildo, junto a outros milhares de estudantes e jovens, foram presos no Congresso clandestino da UNE em Ibiúna (SP). Esse fato marcaria cada um dos estudantes que foram a Ibiúna, pois seus nomes foram inscritos em uma lista de suspeitos de “subversão”, e foram permanentemente vigiados pelos órgãos da repressão política. José Carlos e Gildo se encontrariam de novo alguns anos mais tarde em circunstâncias horripilantes.

Por causa da posição na UNE, José Carlos ficou oito meses detido em São Paulo. Ao sair, casou-se com Maria Madalena Prata Soares, também militante contra a ditadura, com quem teve um filho chamado Dorival, além de apadrinhar o filho de Maria, Eduardo. Moraram clandestinamente em uma favela de Fortaleza (CE), quando em 1973 sentiram o risco iminente de prisão, pois diversos integrantes da organização que fazia parte, a APML (Ação Popular Marxista-Leninista), foram presos e mortos. Ao tentar conseguir ajuda jurídica em São Paulo, José Carlos foi preso saindo da cidade no final de outubro. Foi torturado no DOI-CODI/SP e transferido para o DOI-CODI/Recife, aonde reencontrou Gildo também preso, para serem acareados, ou seja, interrogados frente a frente, não sem práticas de tortura.

Carlúcio Castanha, preso político no mesmo período no DOI-CODI/Recife, declarou ter presenciado a chegada de José Carlos e Gildo Macedo, no dia 26 de outubro, algemados e encapuzados, e ter ouvido os gritos de ambos por toda a noite. Quando ele próprio, na madrugada de 27 de outubro de 1973, foi levado para a sala de interrogatório, sentiu um cheiro forte de vômito, fezes e sangue, e ouviu os gemidos de dor de José Carlos e Gildo. No dia seguinte, Carlúcio foi informado pelo companheiro de cela, Rubens Lemos, que os dois militantes não tinham resistido às torturas.

Rubens Manoel de Lemos também era mais um preso político. Ele declarou que viu José Carlos pouco antes de morrer, sangrando pela boca e pelos ouvidos, ao lado de outro militante que parecia morto (provavelmente, Gildo), quando ouviu do jovem: “Companheiro: meu nome é Mata Machado. Sou dirigente nacional da AP. Estou morrendo. Se puder, avise aos companheiros que eu não abri nada”.

Este relato, porém, é muito diferente da mentira veiculada oficialmente nas mídias pelos órgãos de segurança, e corroborada pelo relatório da Marinha enviado ao ministro da Justiça, Maurício Corrêa. A versão dos militares foi de que José Carlos e Gildo morreram baleados por outro colega de militância, de codinome “Antônio”, após terem confessado um encontro com o tal colega na Avenida Caxangá, em Recife, no dia 2 de outubro de 1973. Ao chegar no ponto de encontro, “Antônio” provocou um tiroteio ao perceber a presença de policiais à paisana, e fugiu em seguida.

Essa história ficou conhecida como “Teatro de Caxangá”, em alusão ao seu caráter fantasioso, e foi inventada para tentar encobrir de forma covarde não só o assassinato de José Carlos da Mata Machado e Gildo Macedo Lacerda, mas também o desaparecimento de Paulo Stuart Wright, o “Antônio” mencionado na história, e que se tornou mais um desaparecido político da ditadura militar.

A morte dos dois militantes e amigos ganhou ampla repercussão, dentro e fora do país. Após muitas burocracias, a família de José Carlos conseguiu recuperar o corpo, que havia sido enterrado como indigente em um caixão sem tampa em Recife, com a condição imposta pelo coronel Antônio Cúrcio Neto de não haver nenhum aviso fúnebre. José Carlos foi identificado pela irmã, e a advogada Mércia de Albuquerque acompanhou a exumação descrevendo o estado do corpo violentado, com diversas fraturas ósseas nos membros e na cabeça. José está enterrado no cemitério Parque da Colina, em Belo Horizonte, e seu nome reverbera como liderança estudantil na oposição ao regime reacionário da ditadura.

Gildo Macedo Lacerda

Gildo nasceu em Ituiutaba (MG) em 1949, mas aos 14 anos mudou-se com a família para Uberaba (MG), aonde seu nome é homenageado no DCE (Diretório Central dos Estudantes) da Universidade de Uberaba. Ainda secundarista, fundou o Grêmio Estudantil Machado de Assis no Colégio Cenecista José Ferreira. Radialista e participante de teatro amador, se correspondia com estrangeiros e tinha grandes inspirações artísticas do teatro, da música e da poesia.

Em 68 ingressou na UFMG no curso de Economia, mesmo ano em que foi preso no Congresso clandestino da UNE (União Nacional dos Estudantes) em Ibiúna (SP). Gildo foi liberado em seguida, mas não pôde concluir o curso por ter sido expulso da UFMG pela intensa militância, com base no decreto-lei 477 de fevereiro de 69 editado pelo general Costa e Silva, que ficou conhecido como o “AI-5 da educação”.

Ainda assim, entre 69 e 70 foi eleito vice-presidente da UNE, fazendo parte da última diretoria da entidade antes que fosse completamente desarticulada pela repressão militar, o que, aliado ao seu histórico, fez dele um procurado pela ditadura, obrigado a fugir de cidade em cidade da perseguição. Em Salvador (BA) casou-se com a jornalista Mariluce Moura, com quem teve a filha Tessa, que nunca chegou a conhecer, e cuja paternidade só pode ser reconhecida após 15 anos de sua morte.

Pois em outubro de 1973, Gildo, Mariluce então grávida de pouco tempo, e outros colegas militantes como o jornalista Oldack de Miranda, foram presos pelo Exército em Salvador. “Estava esperando um ônibus na parte baixa do Elevador Lacerda, por volta do meio dia, no centro de Salvador, quando cinco homens se aproximaram, me encapuzaram e me enfiaram num carro. Até onde eu sei, na mesma hora, o Gildo estava saindo de casa na Avenida Luiz Tarquínio e foi da mesma forma e mais ou menos no mesmo horário”, conta Mariluce Moura em depoimento prestado na 6ª Audiência Pública da Comissão Nacional da Verdade, realizada no dia 22 de outubro de 2012 no auditório da Reitoria da UFMG.

Desde então Mariluce não viu mais o marido, e só soube de sua morte em novembro de 1973, por meio de um oficial do Exército. Oldack declarou que no dia seguinte à prisão foi transferido, junto com Gildo, para o Quartel do Barbalho. Dois dias depois da prisão, ao voltar de uma sessão de interrogatório, viu Gildo sendo retirado da cela, empurrado violentamente por militares, e mancando devido a graves feridas nos pés. Foi quando ocorreu sua transferência para o DOI-CODI/Recife, aonde foi torturado até a morte junto do amigo José Carlos da Mata Machado.

Em uma última carta destinada à família em Uberaba, datada de 17 de setembro de 1973, Gildo contou sobre seu trabalho e seu salário, disse que sentia saudades de todos e manifestou preocupação pelo fato de não receber cartas da família, acreditando que estavam sendo extraviadas. Gildo disse ainda que pretendia visitá-los até o final do mês. A carta termina com um "até breve", interrompido pela sanguinolenta ditadura militar.

O corpo de Gildo nunca foi encontrado. “Tem a angústia de você não ter feito os ritos de passagem, não enterrou, não cremou. Você não despediu, não há uma despedida”, diz Mariluce, que junto da filha Tessa lutam ainda hoje por memória, verdade e justiça em relação aos crimes da ditadura militar.

Não esquecemos nem perdoamos.
Pela Memória, Verdade e Justiça!
Pelo julgamento de todos os torturadores!
Pela busca incessante dos desaparecidos.
Ditadura nunca mais!




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