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DISTOPIA | 1984 de George Orwell vira Best-Seller da noite pro dia após posse de Trump

Fatos curiosos circulam pelas redes sociais envolvendo o novo presidente dos Estados Unidos. Um deles é o estouro de vendas do livro 1984 logo após a posse do crápula na sexta-feira da semana passada.

segunda-feira 30 de janeiro de 2017 | Edição do dia

Em menos de uma semana o livro subiu à primeira posição da lista de Best-Sellers da Amazon (no momento em que escrevemos, duas edições do livro ocupam a primeira e quinta posição dos 20 livros mais vendidos, junto à outras distopias como Admirável Mundo Novo, na 9ª posição e Farenheit 451, na 17ª). Segundo um dos diretores da editora Penguin, entre sexta-feira (20) e quarta (25) houve um aumento de 9.500% nas vendas.

O estouro mesmo foi dado após a entrevista com uma assessora de Donald Trump que, no decorrer da discussão, chegou a utilizar o termo “alternative fact” (fato alternativo) para descrever uma mentira proferida por um outro porta-voz do gabinete do republicano. A partir desse “detalhe”, as vendas estouraram (veja o video ao término da matéria). E não só nos Estados Unidos, na Australia e Reino Unido também estouraram, segundo matéria do New York Times.

Para além do simples fato de Trump ter chegado à presidência dos EUA realmente parecer uma distopia de mal gosto, outras razões explicam o fenômeno. A assessora de Donald Trump rememorou, em declaração infeliz, uma das características mais marcantes do mundo do Big Brother - a falsificação da realidade e dos fatos. Na distopia de George Orwell, o personagem principal, Winston, trabalha no Ministério da Verdade, órgão público responsável por controlar o passado. Sim, literalmente controlar o passado. O trabalho consiste em adulterar reportagens, manchetes, peças de literatura, tudo o que pode comprometer a realidade dos fatos a fim de fabricar uma nova verdade. Algo relativamente semelhante ao que Donald Trump fez como uma de suas primeiras ações ao presidir o cargo executivo mais poderoso do mundo - apagar toda e qualquer referência sobre mudanças climáticas do site oficial da Casa Branca.

Esse tipo de ação casa bem com uma frase do livro de Orwell que diz “quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o presente controla o passado” e ajuda a compreender um pouco das intenções do novo comandante do Império. Trump, ao apagar registros de mudanças climáticas promovidas pelo modo de produção capitalista selvagem, extrativista e insustentável, controla o passado, modificando-o ao seu bel prazer, a fim de satisfazer seus interesses de “reindustralizar” a América, a despeito das consequências ecológicas.

pós verdade e ’alternative facts’

Nas universidades norte-americanas e meios chiques do pensamento liberal, uma das palavras mais usadas neste último ano (frase também repetida diversas vezes por apresentadores da Globo News aqui no Brasil) foi a “pós-verdade”. Termo usado para relativizar qualquer coisa, como por exemplo apelidar uma mentira de um “fato alternativo”, no final das contas ele casa bem com toda a problemática abordada no romance de Orwell.

Winston, o personagem principal, se enfrenta com um aparelho de controle ideológico poderosíssimo que submete 85% da população (os 99% de hoje em dia) a um regime de trabalho alienado desprovido de qualquer liberdade. Publicado em 1949, a história faz alusão a regimes políticos autoritários e mecanismos de controle social e ideológico. Aqui repousa uma antiga polêmica (tosca aos que leem o livro de forma crítica e conhecem minimamente a trajetória política e ideológica do autor) sobre se o romance criticava a União Soviética ou a República democrática liberal.

As polêmicas envolvendo Orwell e seu pensamento

Resgatando o clima da Guerra Fria, até hoje vemos críticos, de universidades e de boteco, mais afeitos aos discursos de George Washington do que de Lenin, dizendo que Orwell fez uma análise perspicaz contra o totalitarismo dos comunistas. O ministério da verdade, na verdade, seria uma metáfora da inteligência de Stalin (que de fato é muito semelhante à descrição do personagem Big Brother) que chegou a literalmente apagar das fotografias oficiais (e isso é verdade) as imagens de Leon Trotsky. “George Orwell, no final das contas, é um democrata!”, dizem os liberais.

Do outro lado, os stalinistas defendem o romance de Orwell contra a indústria cultura norte-americana e a democracia liberal que, assim como o Big Brother, se veste de uma coisa para parecer outra. “Orwell, de fato, é um soviético!”, decretam os stalinistas. Em outros casos aprofundam o delírio de que ele seria um agente do imperialismo...

Nem um nem outro, ou ambos ao mesmo tempo, diria a crítica mais afiada. O fato é que interesses ideológicos distintos disputam o romance, justamente pela sua qualidade e capacidade de dialogar com a realidade de hoje em dia. Ambas as interpretações possuem pontos de verdade. Orwell, de fato, era um crítico de ambos os regimes, tanto o stalinista quanto o democrático burguês simbolizado na república norte-americana. Inclusive, contra os stalinistas e também contra os republicanos, George Orwell foi lutar na guerra civil espanhola da década de 1930, ao lado do POUM. Suas ideias não flutuavam no espaço como as de tantos escritores hoje em dia...Também simpatizava com ideais anarquistas. Seus livros conservam importantes relatos de uma época que tanto tem a nos ensinar.

Para além da resignação...

Para além da, também presente nos botecos e universidades, crítica niilista de Orwell, como se em 1984 ele narrasse uma realidade insuperável, o romance nos apresenta belos momento de esperança, como na passagem em que Winston escreve “se há esperança, ela está nos proles [proletários]”. Depois avança dizendo que 85% da população tem força para derrubar o Partido que se degenerou, e que não poderia ser combatido por dentro. As semelhanças com o programa de Trotsky para a URSS à época são impressionantes (assim como as semelhanças físicas entre o líder da resistência, Goldstein, e o arquiteto do exército vermelho). Trotsky defendia, na década de 1930, a necessidade de uma revolução política protagonizada pelos trabalhadores, que retirasse o regime stalinista do poder, a fim de devolver o poder aos trabalhadores. Tudo isso sem nunca deixar de defender as conquistas da revolução e a própria União Soviética. Em parte o romance de Orwell é contra o chamado período do Termidor stalinista.

Por fim, frases como essas aparecem como pontos de inflexão do romance, injetando ânimo nas novas gerações que hoje o leem e o utilizam como armas ideológicas contra as castas políticas, a indústria cultural, a democracia burguesa (que serve como mecanismo de controle e dominação de uma classe)... enfim, contra os poderosos. Dados como esses da Amazon são detalhes, mas esperançosos, de que já há e haverá cada vez mais resistência contra os planos dos governos neoliberais no coração do Império e de todo o mundo. Agora a questão é não tornar as palavras de Orwell em dissertações esvaziadas de significado real para avolumar os lattes, como boa parte da crítica literária faz hoje. Cabe a nós vermos as formas, assim como o próprio Orwell procurou, de transformar radicalmente o presente real e concreto, para que o passado não seja mais apagado e que o o futuro seja de fato nosso.


Video da assessora de Trump falando sobre "alternative facts":




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